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Teorias do Estado: ditadura inconstitucional

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24/04/2018 às 13:00
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PARTE VII

ESTADO DE NECESSIDADE NATURAL

Legislação abusiva ou de exceção

A partir dessa parte do texto, além de revisar alguns pontos do perfilhamento do conceito de Ditadura Inconstitucional, retrata-se a força de lei de algumas práticas de ilicitude – sobretudo do Estado de Direito – na vigência político-jurídica imposta pela realidade do poder concentrado em vigor na sociedade de controle. Para tanto, ainda se destacam algumas correlações entre documentos normativos/legais[219] sob o aspecto destacado do uso/abusivo de controle. Com destaque especial para a legislação que se aplica à comunicação, à troca de dados e que seja reguladora dos demais meios/veículos informáticos e de informação. Para tanto, é necessário fixar o que se entende aqui, em linhas gerais, por controle e uso excessivo/repressivo do texto normativo: a exceção legalizada. Nesse sentido, o cesarismo e o bonapartismo são análises precursoras. O cesarismo não é um conceito sociológico e, portanto, precisa ser investigado à luz da realidade política que o provoca ou é provocado por ela. Em todo caso, cabe um perfil do conceito.

Estado pós-moderno

No suposto mundo pós-moderno, um dos objetivos é patrocinar o Estado de Emergência como uma rotina civil, militar e política. E para isso é preciso naturalizá-lo, normalizá-lo, normatizando-o para todo o sempre.

A função estratégica do diagrama pan-óptico é traçar o perfil de minorias ‘indesejadas’. Suas três características são o poder excepcional em sociedades liberais (estados de emergência que se tornam rotineiros), traçar perfis, (excluir certos grupos, categorias de pessoas excluídas de forma proativa em função de seu potencial comportamento futuro) e normalizar grupos não excluídos (segundo a crença no livre movimento de bens, capital, informações e pessoas) (Bauman, 2013, p. 63).

Sobre o Estado Pós-moderno (Chevallier, 2009), a Vigilância Líquida decreta o fim da democracia liberal, pois os três poderes, no Estado de Emergência, estão contra a divisão de poderes e seus mecanismos de controle institucional: sistema de freios e contrapesos. Caminha uma destruição disruptiva e não, exatamente, criadora – como queria Schumpeter (1961). Na gerência da sociedade controlativa, condena-se por expor o poder e assim prosperam as prisões por crimes políticos. Qual foi o crime de Julian Assange – caso WikiLeaks? Invadiu sistemas de segurança, manipulou dados, chantageou agentes, comprou sigilos, ameaçou autoridades? Como só divulgou crimes cometidos pelo Império, publicizados por seus próprios operadores, inventaram um crime sexual[220]. A lei brasileira 12.850[221], já em 2013 – a fim de se debelar a revolta popular contra o descalabro de governança – definia o tipo penal de “organização criminosa” e dava “novos” contornos ao Estado de Necessidade que, aos poucos, iam se naturalizando no ordenamento jurídico. Como visto, a sociedade de controle – com manejo político-jurídico dos meios de exceção – atua tanto no plano virtual quanto no realismo político: Assange demonstra como os dois polos estão interligados. Antecipando-se a uma "nova" interpretação da Lei Antiterror, jovens que participam de protestos populares são condebados e obrigados a usar tornozeleiras eletrônicas. Diferentemente das torcidas organizadas, porque aí tiraria votos. É a suprema negação da regra, para se aplicar a exceção do direito[222].

Naturalização do Estado de Emergência

No plano internacional, no século XXI, o principal tipo de exceção é o Estado de Emergência. A tipologia das formas autocráticas, autoritárias do Estado é longa, mas uma das diferenças entre a exceção e a regra está em que o Estado de Necessidade, por exemplo, tem uma tendência de se expandir, tornando natural a invasão e o controle do espaço público (“naturalização” da negação do Político) e de perpetuar o uso da força para além do fato que supostamente a originou. Vale lembrar algumas dicotomias entre o Estado de Exceção e a norma social comum e aceitável como regra moral e jurídica, visto que essas regulam o cotidiano da vida comum do homem médio. Essa manipulação do argumento da violência é oportunista (fascista), uma vez que alonga o uso da violência (descontrolada e aprovada por leis de exceção) e que jurou combater. Quer dizer, utiliza-se a violência antissocial como desculpa para se implantar a negação do direito e depois se institui a mesma violência como prerrogativa do Estado.

Regras do “eixo suportável” e da exceção

A violência de origem que desafiava o Estado, presentes no crime e no terrorismo, é também um desafio à sociedade. Porque não só a Razão de Estado é ameaçada na prerrogativa do uso sistêmico da força; muito mais do que isso, a sociedade perde seu eixo comum de convivência possível. A regra comum, a norma social ou jurídica procura normalizar as relações humanas, ou seja, aproximá-las de uma “normalidade” que possa ser (com)partilhada. É um princípio da interação social: a urbanidade, a civilidade e a convivialidade só são possíveis a partir de um eixo suportável de obrigações comuns. Esse efeito ocorre com certa “naturalidade” aceitável (como a gentileza), até porque as regras foram, em sua maioria, fabricadas socialmente há anos. Tudo isso, herdado (exterioridade, anterioridade) juridicamente, pode ser chamado de legitimidade. Há uma espécie de desejo de comando (dominação) dentro de uma “normalidade” aceitável e em que as normas sociais e as regras morais também possam ser expressas como regras jurídicas. Nesse caso, se as regras sociais e morais são mediadoras da vida civil, o Estado, por sua vez, detentor do “poder de decisão”, será seu instrumento imediato. Assim, o “eixo suportável” torna-se obrigação de fazer ou de não fazer (direito positivo).

Então, a regra geral do “eixo suportável” é plausível e não há necessidade, obviamente, de nenhuma prática de exceção; visto que a exceção é acionada quando a regra está em desajuste com a realidade. Na interveniência de instabilidades grandiosas no sistema, por outro lado, irrompem reações dentro e fora do comando legal, moral, racional. A sistematicidade e o descontrole institucional diante do crime e do terrorismo, por exemplo, abalam o “eixo suportável” das regras morais e sociais e incutem em alguns o desejo da exceção. Como o “antigo” sentido de normalidade deixa de ser aceitável – pois, o “eixo suportável” não é mais comum – o desejo da exceção prospera e, além do conteúdo legal/racional ser severamente questionado, cresce o apelo por medidas de intervenção cada vez mais demarcadas pelo uso da força física: embrutecimento do cotidiano. Esse sentido/sentimento será replicado dentro e fora do sistema político-jurídico e, por isso, assiste-se placidamente o linchamento público de “marginais” (brutalizados, não são mais humanos), bem como fermenta uma autorização prévia para que o uso da força possa ocorrer ao largo da legalidade. Diante do “eixo suportável”, esse conjunto de ações/reações cotidianas e sistêmicas seria a expressão de uma irracionalidade. Contudo, se o desejo da exceção autoriza tal uso descontrolado da força, logo se vê que a irracionalidade do passado (a que estava presente no crime e no terrorismo) transmuta-se agora em racionalidade da exceção.

Por fim, a “nova” racionalidade da exceção – dado seu apego e apreço cotidiano e sistêmico, e que se volta contra o “eixo suportável” – apresenta-se como legitimidade da exceção. De certo modo, isso também consubstancia uma cultura de exceção, quando há internalização e aceitação acrítica das regras de exceção. Porque, em suma, o outrora irracional – atentados à racionalidade do “eixo suportável”, provocados pelo crime e terrorismo – converte-se na “nova” normalidade. Ou seja, na cultura da exceção, o que era normal passa a ser insuportável (o próprio Estado de Direito) e o que era aberrante, ao sistema e à vida comum do homem médio (ações violentas do crime e do terrorismo), agora se manifesta como normalidade requerida, desejada. A violência, condenada no passado, é agora aplaudida e é, dentre outros, um dos mecanismos que mantêm operantes tanto o fascismo quanto o Estado de Emergência Política. Outras formas/fórmulas – como cesarismo (política de Júlio César) e bonapartismo (medidas de Napoleão III) – identificam o modus operandi da ação cotidiana e sistêmica que anula/aniquila o “eixo suportável”; diga-se, por tal eixo, a correspondência da civilidade e do processo continuado de humanização. Como a violência incontida pela legalidade é agora a tônica da cultura da exceção, é perfeitamente normal, dentro do desejo manifesto de se controlar por meios de exceção, por que não prolongar indefinidamente o uso institucional dos mecanismos de poder abusivo/ilegítimos?

Aceitação acrítica do Estado de Emergência

Observa-se que tal aceitação acrítica ocorre com pequenas alterações de parte a parte. O Estado de Exceção se torna permanente e globalizado: estranhamento e desejo do fim do Político. Na França, depois dos atentados promovidos pelo Estado Islâmico, a “extensão” da força, tendência à perpetuação do Estado de Emergência[223], confirma a lógica geral de que há um uso/abusivo a fim de se naturalizar a exceção e assim agregá-la como ordem natural da política. O cesarismo constitucional foi aqui apelidado de latente porque o próprio Texto Constitucional assegura a promulgação de leis de exceção, desde 1988; isso é, não houve necessidade de nenhum aporte de poder estranho ao nascedouro da Constituição. Estavam, pois, previstas. O cesarismo institucional foi denominado de manifesto porque se revela/age por iniciativa ou inércia (proposital) do Poder Político. Nesse sentido, a edição ou a recusa de leis que ferem o Estado Laico – como a não criminalização do crime de homofobia, pois pastores seriam presos – denotam que a exceção é vigorosa, ainda que esteja em condição de não fazer, nesse caso, não promulgar leis de amparo a direitos fundamentais de determinados grupos sociais. Em outras situações, até mais evidentes – porque, exatamente, permitir-se-ia a mutação constitucional – direitos igualmente fundamentais são removidos da noite para o dia: os direitos trabalhistas, a PEC 215, a Lei Antiterror, a tentativa legislativa de se criminalizar o MST, o manuseio do Estado de Direito de acordo com os grupos de poder dominantes, o coronelismo recalcitrante. Por isso, no todo do conjunto, verifica-se que existem os efeitos do Estado de Emergência em plenitude política, institucional e jurídica nos dois modelos do cesarismo aventados:

  1. Sob a negação de se criar direitos especiais ou, ao contrário, na criação de leis hediondas e na ofensiva de todas as demais frentes de deslegitimação constitucional (cesarismo jurídico-constitucional latente).

  2. Na condição de se acobertar nas brechas da lei o próprio abuso legal (prorrogação das prisões preventivas e temporárias), a manutenção de privilégios de estratos sociais (magistratura, Ministério Público), o apoio institucional ao “arrepio da lei”: no caso das polícias treinadas para matar (cesarismo político-institucional manifesto).

Assim, os direitos humanos fundamentais (vida, liberdade) de pobres e negros são violados todos os dias em todas as cidades – e de índios, quilombolas e trabalhadores rurais ou assentados no campo – sem que se precise da decretação de um tipo qualquer de Estado de Emergência social ou política.

Rotineira cultura popular fascista

Também não há necessidade de tal decretação porque a cultura da sociedade violenta (e historicamente violentada) autoriza, legitima a ação violenta e letal dos aparelhos repressivos de Estado. Ainda que, de outro modo, os mesmos grupos sociais violentados pela repressão estatal possam agir de igual forma no encontro com as polícias. Ação e reação extremamente violentas e letais. O cidadão age/reage diante de uma espécie de lei de ação e de reação; a polícia e a política sofrem do mesmo mal: total descrédito social. O que, por sua vez, gera ainda mais violência. Esse também poderia ser considerado um dos pilares institucionais da guerra social (eufemismo para guerra civil) que devasta/devora a sociedade brasileira. Por fim, tudo ocorre em certa “normalidade” porque há um entranhamento do desejo de exceção; mais exatamente onde viceja a descrença de que o secular processo civilizatório pudesse obter êxito na formulação de um “eixo suportável” e regulador da vida comum do homem médio. Por isso, a “última razão dos reis” (ultima ratio), que é a capacidade de o Estado mobilizar todas as forças possíveis para (re)agir em seu proveito (burocracia) e dos grupos que o manejam, torna-se, em verdade, a primeira escolha do Poder Político (prima ratio). Assim, com a prorrogação indefinida do Estado de Emergência, a exceção se converte em regra duradoura; visto que a regra anterior (democracia) é tida agora como malefício social. Lembrando-se de que se trata da mesma regra que garantia a humanização do processo civilizatório. Portanto, do ponto de vista humanitário, todo Estado de Exceção é desumano, criminoso e antinatural, posto que é antissocial. Tal modalidade de controle societal, exercida pelo Estado de Emergência – e que é um dos tipos de Estado de Exceção – e exercida no mundo real, pode, perfeitamente, ser estendida/replicada no realismo político que se projeta no “mundo virtual”. No Brasil, dentre outras, há a proposta legislativa de criminalização da ofensiva popular, nas redes sociais, contra os políticos profissionais desonestos: uma vez que os honestos não são objeto de ironia e sátira política.

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Estado de Emergência Econômica

Uma das modalidades aproveitadas do termo genérico Estado de Emergência é sua aplicação diante do boicote/blecaute econômico enfrentado pela Venezuela. As razões são muitas e se trata de mais uma modalidade da forma Estado de Exceção, quando são viabilizadas condições jurídicas e institucionais não usuais para debelar um problema também não-convencional. Portanto, uma medida de exceção para um problema excepcional. Também é comum sua aplicação nas situações de epidemia, pandemia, desastre natural ou grave crise social ou de insegurança pública localizada. No Brasil, como há guerra civil ou social intensa e extensa, na medida de exceção, sugerem-se mudanças constitucionais que permitiriam, imediatamente, o maior emprego das Forças Armadas na contenção da guerra generalizada, como um tipo de Estado de Emergência societal. Ou, no combate ao mosquito causador da Dengue e do Zika, ou em outro caso em que a entrada à força nas residências é autorizada[224]. Na mesma linha do descontrole da saúde pública, mas em modalidade um pouco mais inusitada, percebe-se um Estado de Emergência mundial, decretado pela OMS, no "combate" ao Zika vírus[225]. São medidas de exceção. O problema é quando, de exceção ou de transitoriedade, tornam-se regras impositivas e permanentes. Também é possível falar de uma espécie de Estado de Emergência Preventivo, uma fórmula que pode se tornar global – de todos contra um – caso se diagnostique uma ameaça possível. No caso do Brasil, a crise do Zika vírus despertou esse interesse em pré-candidatos à eleição presidencial nos EUA[226], como se o país estivesse infectado com a Treva Branca que provoca cegueira e paralisia política (Saramago, 2008). Antes era só miopia; portanto, agravou-se muito o quadro clínico do Político. Além do bloqueio econômico imposto a Cuba, por décadas pelos EUA, destaca-se o boicote econômico imposto ao governo de Salvador Allende, no Chile de 1970 a 1973, especialmente no corte da distribuição de bens, produtos e mercadorias básicas à vida de milhares de pessoas. O que agravou a crise social e “motivou” forte reação de civis e de militares para perpetrar um Golpe de Estado e implantar uma ditadura sanguinária. É óbvio que todas as forças que se prestam a golpes dessa natureza tiveram e têm ampla participação nos preparativos que agravam uma suposta crise já instaurada. Isso é, criam instabilidade para propor o golpe.

No caso da Venezuela, a crise de desabastecimento, a derrota das eleições proporcionais e o enfrentamento ao sistema capitalista esgotaram as vias de manutenção econômica. Fosse um regime político alinhado ao poderio dos Estados Unidos, certamente, a economia seria estável. Como faz oposição cerrada ao Império, enfrenta bloqueios econômicos internos e externos. Sua reação política à economia que agoniza, agora, conhece um novo desfecho: o Estado de Emergência Econômica[227]. No Brasil, a Carta Política de 1988 não reconheceu tal estatuto jurídico, pois trata da “situação de emergência”. O suposto Estado de Emergência – na verdade, situação de emergência – é regulamentado pelo Decreto Nº 7.257, de 4 de agosto de 2010:

“Art. 2o Para os efeitos deste Decreto, considera-se: III - situação de emergência: situação anormal, provocada por desastres, causando danos e prejuízos que impliquem o comprometimento parcial da capacidade de resposta do poder público do ente atingido”.

Tal anomalia jurídica – visto que não se dirige a situações de normalidade cotidiana – deveria servir para proteger ou assegurar a sobrevivência das pessoas atingidas. Em todo caso, o governo federal poderá ser invocado para repatriar verbas ou aditivos de socorro emergencial. Sem licitações, para ganhar tempo, o dinheiro público deveria minorar o sofrimento dos que perderam quase tudo. E aí começa outro problema, o da salus publica, uma vez que a saúde do erário já é comprometida havendo controle apertado, imagine-se com regras frouxas. Note-se, por preciosismo, que o decreto não retrata um Estado de Emergência, empregando-se somente a expressão composta de “situação de emergência”, bem como prevê o “estado de calamidade pública”. Sendo a situação de emergência mais extensa e sem tempo determinado. Porém, como os institutos da situação de emergência e da calamidade pública, em regra, são manuseados pelo mesmo Poder Público que deu origem ao problema a ser debelado – por incapacidade, improbidade ou negligência – o Decreto 7.257/2010 acaba tendo efeitos muito mais políticos do que socorristas e humanitários. Propositalmente, o Texto Constitucional também não emprega Estado, em maiúsculo, para que não haja confusão com o Estado de Defesa (artigo 136 da CF/88) e o Estado de Sítio (artigo 137 da CF/88), visto que são institutos propriamente políticos, voltados à segurança das instituições públicas e à integridade nacional. No caso da Venezuela, impõe-se mais um capítulo no encerramento da democracia liberal-representativa. E sobra a lição, recuperada da história, de que a luta contra o capital hegemônico não é isenta de duras represálias.

O Estado Ludita

Pelo texto aprovado da chamada Lei Antiterror, continua-se sem entender qual é o tipo penal específico de se "praticar ações de terrorismo", o que resulta num certo "tipo penal em branco" a ser regulamentado pelo gosto do repressor ou "intérprete do medo" (soberano-suserano). Além de não haver referência acerca do Terrorismo de Estado praticado todos os dias por autoridades nacionais, é óbvio que a lei será dirigida contra os movimentos sociais. Basta ver que a greve e o piquete podem ser enquadrados como ações terroristas. Será coincidência o fato de o projeto original do Executivo vir assinado pelo Ministro da Fazenda? De acordo com outro projeto (ao que pode ser fundido), a punição social é explícita. O Projeto de Lei (PL) 5.773/2013 modifica a redação que confere ao artigo 288 – B do Decreto-Lei n° 2.848, de 7 de dezembro de 1940, em seu Título IX - Dos crimes contra a Paz Pública:

“Saquear, incendiar, depredar bens públicos ou particulares, extorquir, impedir o funcionamento de serviços públicos ou particulares, assaltar, explodir bombas ou artefatos similares, sequestrar, manter em cárcere privado; praticar atentado ou sabotagem, com dano ou perigo efetivo a vida, integridade física e liberdade de locomoção (grifo nosso)[228]”.

Os negros escravos que promoviam sabotagem (do francês sabotage: tamanco) também eram terroristas e não sabiam, pois jogavam pedras nos moinhos de engenho. Isso ainda permite pensar que, no século XXI, redescobrem-se tipos de penas escravistas. Exemplo antepassado curioso é de um americano com sólidos conhecimentos em reatores nucleares, denominado pela polícia de “Unabomber” (1995) e que por muitos anos mandou pacotes-bomba para universidades, centros de pesquisa, pesquisadores. O terrorista pregava um estado de caos social, valendo-se de seus conhecimentos científicos. Mas, o mais curioso é que defendia o “irracionalismo” baseado na razão científica e que aparecia inclusive no nome do “grupo anarquista” a que dizia pertencer. Posteriormente, cresceu nos EUA um movimento conhecido por “neoluditas”. O movimento estava (ou está) embasado nas revoltas de trabalhadores a partir de 1811, no século 19, que destruíam máquinas (mas não promoviam atentados pessoais) como sinal de protesto. Seu líder, Ned Ludd, batizaria o movimento.

No caso brasileiro, pela inércia – incapacidade ou desprezo – que impede a promoção do processo civilizatório, o Poder Político brasileiro se dedica à criminalização das condutas políticas como forma de controle social: “o inimigo político de Schmitt está institucionalizado e a guerra civil é cotidiana, ainda que sob o argumento de manutenção da ordem social e da própria ordem democrática”[229]. A única ressalva a ser feita é que, no Estado Capitalista, a exceção é a regra do controle político e social. Movido por esse fluxo repressivo e regressivo, da forma Estado Ludita – como modalidade de Estado de Exceção – age diretamente por meio da tentativa de controlar os movimentos sociais. A ameaça à laicização do Estado, por óbvio, é uma ameaça desproporcional à racionalização das relações sociais e, nesse aspecto, dirige-se contra o ideário renascentista[230]. No Estado de Exceção típico do século XXI (Egito), falar que a junta militar que dirige o país é uma ditadura e que toda ditadura é autoritária (autocrática em seus fins) é crime punido por Lei de Antiterrorismo. Os jornalistas, por exemplo, não serão mortos, apenas presos. Essa é uma das sutilezas da modernidade política (e que não tem nada de líquida)[231]. Nesse contexto, ganham destaque o cesarismo e o bonapartismo como categorias de análise político-institucional. Em Ditadura Inconstitucional, a naturalização/conversão do estado de necessidade em Estado de Emergência, por derradeiro, investe na subsunção do Político.

O Político ou a política?

A política brasileira está sem substantivos. Em todos os níveis e esferas reina a adjetivação. A não ser pela estética do fascismo – manifestantes clamam a volta dos militares e apanham da PM – só se ouve nas casas e nas ruas o mesmo timbre de lamento: safados, corruptos, vagabundos, golpistas, estelionatários. Em todo caso, o realismo político seria o plano substantivo por onde transitam as mazelas e a falta de esperança, sendo essa extremamente perigosa porque pode levar a um beco sem saídas: com a perda da sintaxe política (a relação lógica com o mundo dos homens e das coisas), o fascismo religioso, legislativo e militar coloca pela frente apenas a redenção dos convertidos, ou seja, dos próprios fascistas. O “bom fascista” quer nos fazer acreditar que se é “apolítico”, como se o Homem prescindisse da política para ser o que é. Em outros termos, equivale a supor homens e mulheres sem inteligência, uma vez que é a relação política – impondo-nos restrições nos desejos e nos quereres – que aguça nossa capacidade de requerer com mais qualidade e assim superar os obstáculos. E para completar o non sense geral, dos “sem razão” que predominam no senso comum, ao misturar a política e “seus” políticos com o Político, bane-se o espaço público das referências. Nesse caso, abdica-se da liberdade, dos direitos e das garantias mínimas do Estado de Direito. De outro modo, quanto mais política se faz, mais sociáveis e inteligentes se é. O contrário, o “não querer a política”, induz a uma abstinência da razão. Se a política é emoção – concorda-se ou discorda-se – o Político é razão, lógica, capacidade de articulação mental e societal. O ser humano é feito de “pura” política, para o bem e para o mal. Pois, o Político é o palco da experimentação humana; é para além do verbo da política – “roubam demais!” – a inteligência social, a interação qualificada, a sociabilidade que se faz carne na cultura política. É o político que produz o ser sociável e inteligente, aquele que quer e requer; portanto o oposto do “robô alegre” (Mills, 1975) do fascismo que se contenta com o consumo da política diária e mesquinha. O Político vem de Polis – civilidade – e de convivialidade política, como constante troca de valores, oposição de interesses; ou, mais exatamente, argumentação com base na isegoria (discurso) e na isonomia (igualdade): não se faz política entre senhores e escravos. Assim, a política é resultado direto do nível de argumentação do Político na vida comum do homem médio. O Político significa a passagem do aneu logou, idiotes à cidadania ativa (Benevides, 1991). Quanto mais denso o diálogo com o Político e com a essência humana, mais profundas e articuladas são as capacidades cognitivas, intelectuais e relacionais do sujeito politizado. Como negação do Político, a crise na política se alimenta da perda de reflexão política, por medo ou desgosto. O Político é a instância da efetivação do ser político como humano genérico, quer dizer, do Homem que é distinto dos demais animais pela capacidade de realização política (Arendt, 1991). Quanto mais se confunde a política (rasteira, adjetivada pejorativamente) com o Político, menos os cidadãos se reconhecem como humanos dotados de capacidade política: consciência e vontade autônoma. Quanto mais a política consome as ações e repulsas, menos se percebem como humanos. Quanto mais presentes os adjetivos da política – “indecentes” – ao revés da condição humana ditada pelo Político, mais inumamos, mais aberrantes, primários e embrutecidos são os homens e mulheres do século XXI. Com a crise do Político, perde-se o humano que se faz na ação política. Por outro lado, quanto mais atuante o Político, mais os sujeitos da política são conscientes da realidade e dos desafios políticos, ou seja, capazes de tomar a política para si (autarquia). Quanto mais viceja o Político – em que pesem as contradições do realismo político – mais se evidencia o homem politizado.

O zoon politikón é o animal político que se reconhece e se (re)afirma no “pensar e fazer política”. A crise da política – aprofundada pelo fascismo no cotidiano do senso comum do homem médio – conduz ao pior sentimento humano: a descrença, não só na política, mas, sobretudo, na capacidade humana de dirimir os maiores problemas políticos. A crise da política, portanto, leva diretamente à crise do Político. A crise dos “desqualificados da política” impõe uma crise no interior de cada indivíduo e sujeito, que, em crise existencial/real, duvida cada vez mais de si mesmo. Enfim, desse modo, é fácil o caminho político dos usurpadores, hipócritas, tiranos e mentirosos contumazes. O poder sem o Político – quer seja sem a adesão consciente, quer seja sem a manifestação do contrário (princípio do contraditório) – equivale ao poder dirigido pela máxima corrupção. Nesse caso, não se trata apenas da corrupção do erário, da República, mas acima de tudo a corrupção do sentido humano que só se faz enquanto tal no Político. A política pode ser a excrescência humana, mas o Político é a essência, é o que faz dos humanos pensantes e requerentes de um mundo melhor. Por tudo isso, não se pode mais confundir as coisas, o político nojento não pode “acabar” com o Político. O poder de alguns, por mais nefastos e diminutos moralmente que possam ser, não terá a grandeza de aniquilar o Político. Nenhum político pode receber a chancela para questionar e subjugar o Político. No entanto, a crise global da política põe em xeque a condição humana e política. Esse é o desafio, no Brasil e no mundo: ao salvar o político que há em cada um, se salva o Político, se salva a Humanidade dos políticos corruptos. Esse, sem dúvida alguma, é o pior desafio colocado pela Ditadura Inconstitucional: formular a consciência política crítica e atuante de que o Político está em sérios riscos de deslegitimação.

Notas para retomar o conceito

O Estado de Sítio denota uma configuração política e moral negativa, além de ter uma regulamentação espacial (funcionalidade) e temporal (durabilidade) definida. Ainda pressupõe uma condição grave de guerra ou de ameaça iminente às instituições regulatórias da República. Indica, enfim, que o país “em sítio” ou está enfraquecido ou em vias de perder a possibilidade de gerenciar sua soberania – inclusive porque o sítio pode ser uma imposição externa, como faziam os antigos castelos que se viam obrigados a levantar as pontes, colocando-se em isolamento por meio de poços. Na Ditadura Inconstitucional o poço cavado é jurídico-político, bem como as trincheiras morais são salvacionistas, miraculosas, à espera do redentor que aniquile o direito em nome do dinheiro. Por sua vez, no Estado de Emergência, "o governo se torna o poder soberano[232]", confundindo-se governo e soberania, Poder Político com política e não raramente com o fim do próprio Político. A relação que antes pertencia a uma vaga (ou não) noção de soberania popular pertence agora a quem detém o direito de excluir os outros. O denominado Estado Legal – no pós-Revolução Francesa – é um bom exemplo de ajuste entre Estado de Direito, soberania popular e Razão de Estado. Porém, os vários golpes institucionais, na cola da naturalização do Estado de Emergência – desde a CF francesa de 1793 – ilustram que a França da fraternidade foi apenas o mangedouro da legalidade dos meios de exceção. Desde então, o jacobinismo é suportado contra o Outro. Nesse reino do poder antidemocrático (em que são incutidas regras de controle e de exceção), sob a égide do poder do establishment, fulgura um poder sagrado e intangível à própria democracia. Todos os Estados democráticos possuem a mácula da exceção constitucional e, assim, Domine e seu domínio surgem equivalentes e partícipes de Deus no seio do Estado Laico (Domine = Deus). Como consequência direta, há uma profunda despersonalização do indivíduo frente ao Político; como consequência também direta do estranhamento jurídico, a despersonalização/estranhamento da vida comum assemelha-se à institucionalização provocada no prisioneiro da masmorra jurídico-social[233].

Tudo é prisão à minha volta. Reconheço o cárcere sob todas as suas formas: sob a forma humana assim como sob a forma de grade ou de ferrolho. Esse muro é prisão de pedra; essa porta é prisão de madeira; esses carcereiros são prisão em carne e osso. A prisão é uma espécie de ser horribilíssimo, completo, indivisível, metade edifício, metade ser humano (Hugo, 2002, p. 82).

De todo modo, segue-se pelo caminho oposto de uma sociedade aberta, pluralista, participativa e inclusiva[234]. Assim, sem espaço público para maneabilidade no enfrentamento de interesses políticos, a seara da convivialidade se enfraquece e, por fim, toda pretensão de civilidade. Sem a Polis do Poder Político reflui, igualmente, a civilidade – consoante a urbanidade: visto que esse é pressuposto ontológico do Político (Aristóteles, 2001).

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Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Teorias do Estado: ditadura inconstitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5410, 24 abr. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65594. Acesso em: 26 abr. 2024.

Mais informações

O presente trabalho é resultado de uma pesquisa de Pós-Doutorado em Ciências Políticas, realizada no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da UNESP/Marília, sob a supervisão de Marcos Del Roio, professor titular em Ciências Políticas pela mesma universidade.

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