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Teorias do Estado: ditadura inconstitucional

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24/04/2018 às 13:00
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PARTE IV

DITADURA INCONSTITUCIONAL

Um conceito inicial

No país, atualmente, vive-se sob a marca de uma sofisticada Ditadura Inconstitucional e que supera em refinamento e complexidade o(s) modelo(s) mais celebrado(s) de ditadura convencional ou de ditadura constitucional (Schmitt, 2006) que antecederam ao nazismo alemão. Assim, primeiramente, retome-se à origem do problema e da terminologia. Ditadura deriva do latim dictatura – como sinal de dignidade e cargo do ditador – conferindo-lhe poderes supremos, mas somente como “governo de emergência”. A ditadura constitucional – que nutriu o Reich alemão – por seu turno, é bastante distante do sentido romano e busca amparo legal.

Situação que se produz quando a Constituição autoriza a suspensão do funcionamento normal de instituições políticas e direitos dos cidadãos por encontrar-se a população diante de uma situação de exceção e o Poder Executivo assume poderes extraordinários (Rojas, 2001, p. 352 – tradução livre).

A ditadura convencional, na prescrição de Norberto Bobbio – além da herança grega clássica, em suas várias formulações antinômicas: autocracia/democracia – também pode ser sintetizada na forma do instituto romano do dictator – um magistrado de poderes extraordinários, mas com missão específica e dias contados. As características dessa Ditadura Comissária (dentro dos limites da “comissão”) eram pontuais e distintas das atuais formas (in)constitucionais. A missão recebida era clara: “a) estado de necessidade com respeito à legitimação; b) plenos poderes com respeito à extensão do comando; c) unicidade do sujeito investido do comando; d) temporariedade do cargo” (Bobbio, 2014, p. 159-160). A ditadura moderna, ao contrário, tem eficácia duradoura e poderes auto-atribuídos.

Isso significa que se pode estabelecer certa hierarquização entre os regimes de força, segundo o grau de centralização do poder e do desrespeito demonstrado aos direitos humanos. Em ordem descendente, esta hierarquização é: → tirania → despotismo → autoritarismo, ditadura → governo de fato (Borja, 1998, p. 298).

Comparativamente, a ditadura moderna está mais para a autocracia85 ou tirania (grega) do que para o dictator romano. Se, no sentido antigo, a autarquia poderia ser definida como realização da felicidade (Mora, 2001, p. 232), na Modernidade Tardia (Giddens, 1991) geradora da Ditadura Inconstitucional pode-se, reunindo os significados, dizer que a autocracia equivale a retirar a autarquia de seu espírito democrático. Na tradição da Ciência Política ainda subsistem diferenças técnicas, instrumentais, normativas e propriamente políticas, entre o que se poderia denominar de ditadura constitucional – com previsão constitucional, que mais se assemelharia ao Estado de Emergência, Lei Marcial ou Estado de Sítio – e do que se poderá entender por Ditadura Inconstitucional.

E mesmo essa tradição analítica não comporta o fenômeno que ora se assiste, pois, costumeiramente, a anterior ditadura inconstitucional era (ou é) uma forma de governo que tendia a se prolongar no tempo, desconstruindo-se a base legal. A "ditadura constitucional" requer o emprego de meios excepcionais derivados dessa forma de governo. O que remete a entender que se clarifica como quebra institucional ou Golpe de Estado – a democracia liberal seria um exemplo. Desse modo, essa antiga nomenclatura de ditadura inconstitucional a referencia(va) como um tipo classificatório dos sistemas políticos. Já, o segundo tipo, como ditadura legal – o mais correto seria legalizada, pois a Constituição não prevê “ditaduras esclarecidas”– enquadra-se “na fenomenologia dos meios extraordinários” empregados por regimes políticos que enfrentam situações de grave crise (Bobbio, 2000).

A clássica Ditadura Constitucional ou Soberana, a referendada no passado como inconstitucional por Bobbio (2014) – e de amplo poder monocrático, como a desenhou o jurista alemão Carl Schmitt (2006) – apresenta-se na forma de legitimação de leis injustas que servem, exclusivamente, à Razão de Estado86. Em nome do Estado, o antidireito pode ser coroado. Para salvaguardar a República, acaba-se com a democracia. A justiça se minimiza diante da relação amigo/inimigo. Na Alemanha nazista, exemplo maior do vigor da precursora Ditadura Constitucional, empregou-se a própria lei constitucional contra a mesma matriz que outrora fora a segurança jurídica da democracia. Interpretou-se que a Constituição em seu art. 4887 (Miranda, 1990) abriria brecha jurídica para a constituição da figura do kaiserpresident: um dictator moderno e sem limites de ação. E assim pôs-se fim, formalmente e materialmente, à democracia de Weimar.

A diferença entre o kaiserpresident (Hitler) e o dictator romano – como celebrado por Caio Júlio César (1999) – refere-se à circunstância determinante de que o Kaiser, do III Reich, era o intérprete supremo da legalidade e o autor/fautor do Poder Político. Daí se valer da outorga de uma Lei de Plenos Poderes (Fest, 1976). No entanto, não é somente isso; pois, o kaiserpresident seria mais audaz e afortunado de muitos outros poderes, sem os entraves burocráticos que – por exemplo – colocavam “objeto determinado” e datação prévia para o fim do mandato de exceção romano.

Nesse quesito da tomada de poder implica entender que a Constituição autorizaria a entronização do kaiserpresident como déspota, a fim de salvaguardar a República (desculpa para a Razão de Estado) na exata proporção em que se destruía a democracia. Daí a presença marcante, como se viu sob o nazismo alemão, do Golpe de Estado seguido de um Estado de Sítio. Como no Brasil, em 2016, não se viu um tradicional Golpe de Estado em que os poderes são amordaçados por grupos de poder civis/militares, recusa-se a nomenclatura mais direta e objetiva de que vige um regime ditatorial a partir de 2016.

Uma diferença crucial ante esse modelo brasileiro de Ditadura Inconstitucional está na configuração permissiva de que os atuais procedimentos anticonstitucionais, violadores da Constituição Federal de 1988, possam ser utilizados contra a ordem jurídica democrática até então determinante. Por sua vez, as denúncias da assim chamada “ruptura institucional” são questionadas judicialmente porque não se admite, pelo desconforto da ilegalidade perpetrada, a expressão “golpe”. Ou seja, nem mesmo a Ciência Política inaugurada por Carl Schmitt pode ser admitida nesse modelo inaugural e refinado de ditadura. Com essa ousadia, o Judiciário nacional passa a ocupar o polo ativo na censura judicial; espaço onde a liberdade de expressão e a publicidade não têm foro democrático88. Na Ditadura Inconstitucional ainda se faz uso/abusivo de ações e de interpretações ilegítimas, ilegais e injustas: são atividades antijurídicas que se voltam contra o Princípio Democrático. Sobretudo se observar que a CF/88 – se é que ainda está em vigor – não pode comportar medidas que a afrontem diretamente em seu âmago. Num caso concreto, sob o império do Princípio Democrático, não se pode aniquilar o Estado Laico; nem demitir ou aprisionar professores por opiniões ou desenvolvimento de análise crítica sobre o real.

É sabido que a lei não pode ser dúbia e ainda mais a lei penal, por ser restritiva da liberdade. Portanto, em razão da segurança, não se pode abrir mão da liberdade; em nome do direito não se pode ignorar a Justiça, sob pena da prática de injustiças incorrigíveis. Enfim, não há choque de princípios norteadores, não se escolhe um valor em desfavor de outro (desvalorizado). Não há segurança fora da liberdade (somente opressão) e a liberdade requer a proteção e a inviolabilidade da intimidade e da privacidade. Não se tem liberdade no “mundo da vida” com servidão voluntária (La Boetie, 1986). Em suma, não há contradição entre direitos fundamentais. Quando se tem de escolher um, é porque nunca foram fundamentais. Por esse prisma, destaca-se ainda a reversão do direito em antidireito: controle do Legislativo por Grupos Hegemônicos de Poder promulgando leis injustas. Literariamente falando – e parodiando Albert Camus (s/d), escritor franco-argelino – o cidadão está colocado entre a versão (hermenêutica, interpretação) e a aversão ao direito imposto e atravessado pela deslegitimação moral e social89.

No entanto, ainda que muitas outras nomenclaturas pudessem ser agregadas, como fascismo (Poulantzas, 1972), bonapartismo (Marx, 1978), cesarismo (Gramsci, 2000), Soberania de Conquista90, governo forte ou bonapartismo soft (Losurdo, 2004), Estado de Exceção (Agamben, 2004) e a própria Ditadura Inconstitucional, esse tipo de categorização nunca deve ser exaustiva.

Perfilamento do conceito

Então, o que é ou o que se pode entender por Ditadura Inconstitucional? Em linhas gerais, trata-se de uma complexa articulação entre os três poderes constituídos minimizando a própria separação dos poderes, uma hábil e ardilosa hermenêutica constitucional regressiva do Estado de Direito e amplamente seletiva diante da relação amigo-inimigo e que se posta no atual realismo político nacional. Some-se a isso a imposição da legalidade que atende aos interesses predominantes do capital especulativo (rentista, disruptivo) e que se expressa na pronta adesão personificada pelos Grupos de Poder Hegemônico: além do fenômeno do estatismo, há de se recuperar os interesses corporativos assegurados pelo regime de castas ao Judiciário. Seguindo-se a isso, uma das principais características da Ditadura Inconstitucional é a apresentação de uma estética do Judiciário91 penalizador que, apenas, pode parecer revigorante. Pois, se essa estética tem dia e hora determinada para a reverberação final de seus atos judiciais, implica, no mais, que a seletividade é somente agressora do Estado de Direito e da justiça. Tem-se a impressão de que as avaliações judiciais tinham ou têm objetivo(s) específico(s). Outra consequência residual apresenta-se na confusão, revogação de competências. Nunca se saberá ao certo, sem auditoria e accountability, se há preocupação com abuso de poder de autoridade investigativa ou, se ao contrário, reflete-se apenas a possessão do Judiciário pelo realismo político de acordo com a relação amigo/inimigo92. Por seu turno, procuram-se meios judiciais – ainda que inócuos – como meio de atemorização dessa mesma confusão de competências e que também revelam outros supostos abusos de autoridade93.

Em perfeito paralelo a esse estado de coisas, como esforço cristalino de controle social para que vigorem privilégios de castas incrustadas no Poder Público, também a geopolítica da barbárie global acaba por trazer ainda mais combustível repressor às autoridades já abusivas. A suposta presença do Estado Islâmico94 no país seria a senha autoritária para que entrasse em vigor um poderoso receituário jurídico-policial, assoprado há tempos. A aprovação em caráter específico da Lei Antiterror, por sua vez, seria apenas um degrau na escada da contenção dos direitos, das liberdades e das garantias. Ou seja, há um sentido próximo que se denominou de Estado de exceção interpretativo, quando se possibilita a ponderação de recebimento ou de exclusão dos direitos fundamentais nas decisões judiciais; próximo de uma versão do Estado de Exceção manietado pelo Poder Judiciário95.

A Ditadura Inconstitucional, todavia, não se limita a uma interpretação restritiva dos direitos fundamentais; pois, trata-se de forma de governo autocrática, fascista e com amplo amparo no regime de castas. De acordo com o modelo nacional ainda é patrimonialista (Faoro, 1984): o Poder Público é patrimônio dos Grupos Hegemônicos de Poder e o Judiciário, na hierarquia societal, nivela-se como casta social dotada de privilégios pré-capitalistas. A partir de 2016, de certo modo, se reencontram esses dois caminhos, unificando-os, mas superando-os em delimitação conceitual. Posto que, tanto se nota a “quebra institucional” (o impeachment, em si, já seria isso) quanto há o surgimento de uma forma de governo que se prolongará por muito tempo – na contramão do acirramento do Princípio Democrático. Entretanto, como tudo se recria, o modelo nacional é herdeiro de muitas outras facetas e que, como visto, refina-se em racionalidade e não se limita mais à violência física; sem dúvida, um degrau acima de Weber (1979). Para tanto, é preciso recorrer ao “método a contrapelo” (Benjamin, 1987, p. 225-6).

O direito-poder em Benjamin

Em tempos de terrorismo avançado, de Estados ou de “lobos solitários”, é preciso pensar o poder, o direito, a política, o Político fora além dos paralelos do domínio político-jurídico (potestas) ou da dominação racional: lógica, “processo civilizatório”, ética, teleologia. Em tempos de profunda recessão dos padrões civilizatórios, especialmente a orquestra badalada pela Bancada BBB (boi, bala, bíblia + bancos), é urgente se pensar o direito que cerca o cidadão e que advirá. Nesse exato momento, até mesmo a rotina do Congresso Nacional é regulado por uma mentalidade fascista. Portanto, a formulação política de Benjamin (2013) volta-se contra o capital e o Estado repressor, especialmente os movimentos retrógrados que se sentiam sob o avanço do nazismo. O fato é que se movimenta largamente uma cultura da exceção.

As ações só se transformam em violência quando interferem em relações éticas, ou seja, quando são designadas como Direito e Justiça. A etimologia germânica para o conceito de Direito é expressiva: KRITIK – "delimitação de limites". Sendo ainda derivada do verbo KRINEIN (grego) para expressar os sentidos de "critério" e de "crise". O poder-direito (GEWALT) com origem na violência (fonte privilegiada do direito) e no bojo da luta política pelo direito transparece na oposição entre Estado e lutas sociais (na requisição de direitos políticos); na contradição inaugural do Estado de Direito, entre o "poder-como-violência" – do Estado ("monopólio jurídico do uso legítimo da força física") e do Direito (Poder Extroverso: gestão dos aparatos administrativos, ideológicos e coercitivos do Estado) – e a "violência-como-poder": Poder Constituinte; greve geral. Neste último sentido, GEWALT personifica o verbo-conceito arcaico WALTEN (imperar, reinar, "ter poder sobre"): no processo civilizatório equivale à passagem da dominação patriarcal à dominação racional-legal. Na forma de potestas (GEWALT), refere-se à dominação pelo Poder Político, também perceptível no substantivo composto STAATSGEWALT (autoridade ou poder do Estado); como vis, implica no uso/abusivo da força/violência.

Desse modo, trata-se da crítica do poder como violência, retratando-se a crítica do Estado (KRITIK, GEWALT) e do Direito (a coerção como VIS). É uma crítica que recupera a tradição clássica de que "direito é poder"; pois, referencia-se no poder fundamental e instaurador. Sob o Poder Constituinte - poder instituinte da "violência organizada" (Poder Político) - deriva o Direito como ordenamento jurídico que corresponde ao Estado (POTESTAS). Portanto, a origem do poder (GEWALT) e do Direito (VIS) é a violência inaugural: URSTAAT ou Estado Primordial de que fala Deleuze (1992)96. Diz-se que o Estado de Direito deve regular a violência: controle social, império da lei. Contudo, se o Estado de Exceção é parte integrante do Estado de Direito (pois, a exceção figura como regra de direito) – e se a exceção é a pura violência (GEWALT) – não se apresenta aí uma contradição nos termos?

Afinal, se o direito é a violência (“direito sem coerção é como arma sem munição”) e se o Estado de Direito está inoculado de meios de exceção, é de se concluir que o direito não é o meio mais adequado para conter a violência (dada sua origem: KRITIK). Diante dos pressupostos anunciados nas questões, como definir (juridicamente) um sentido para o Estado de Direito que esteja livre dos meios de repressão/coerção, especialmente quando embalado pela Ditadura Inconstitucional? Se de fato houver um conceito válido juridicamente de Estado de Direito – submerso na exceção – por outro lado, não será a contraprova de que o direito é capturado pelo realismo político designado pelo próprio Estado de Exceção que lhe assegurou a origem ou a sobrevida? E, neste caso, não será concludente o fato de que não haverá direito de exceção (ainda que sob a marca legalista do Estado de Direito) que possa ser legitimado? Em conclusão parcial, pode-se admitir que toda exceção serve ao poder (realismo político) e que, por definição, é ilegítimo e injusto – posto que serve tão-somente aos Grupos Hegemônicos de Poder.

O Estado de Direito guarda as ferramentas do poder adicional requerido pelo Estado de Exceção e, após sua decretação (Lei Marcial), instaura-se outro tipo de Estado de Direito – tutelado, juridicamente, é claramente regressivo quanto às garantias dos direitos fundamentais – assim, submerso em regras típicas e precisas do Poder Político se torna absoluto no manejo do direito – retraindo-se, portanto, a ação do Legislativo e do Judiciário, suspende-se a autolimitação do poder – o Estado de Direito define-se como repressivo (política e juridicamente). Validado como Estado de Direito de Exceção (para além do Estado de não-Direito: lastreado por leis injustas), o medium que daí decorre comprova o fato de que o direito responde à violência dominada pelos Grupos Hegemônicos de Poder; o direito exarado corresponde ao embate sob o manto do realismo político. Por fim, estabelece-se a natureza da lógica jurídica do Estado de Direito: submerso em regras constitucionais (anteriores) e em leis de exceção (positivadas posteriores). Ou, dito de outro modo: a natureza jurídica do Estado de Direito responde ao comando do soberano que edita leis de exceção (Schmitt, 2007). Essa é a precisão de uma lógica jurídica exarada da lógica política de conquista ou de manutenção do poder absoluto. Sob o (co)mando da exceção, o Estado de Direito é absolutista – e talvez esta tenha sido a maior engenhosidade do liberalismo político: conter os reclamos populares por participação política com a recuperação e o manuseio dos meios de controle social editados pelo Absolutismo (ou cesarismo).

De toda forma, resta convicta a conclusão de que o Estado de Direito não é uma fórmula vazia, pois, preenchida de poder de exceção, não interroga ao poder que lhe deu vida e manifestação pela via forma absolutista. A única regra absoluta no Estado de Direito de Exceção é, (in)justamente, a obrigação de o Estado de Direito não admoestar o Poder Político (STAATGEWALT). O modelo em tese da ditadura brasileira responde, então, à ontologia e por isso é preciso revistar a história e seus “recolhos” (Benjamin, 1987).

Semelhanças na Modernidade Tardia

No contexto da Modernidade Tardia (Giddens, 1991), a Guerra da Argélia – como tantas outras medidas de intervenção excepcional – pode ser compreendida como um misto de colonialismo, apartheid, Estado de Exceção e Estado Penal (Wacquant, 2003). A Ditadura Inconstitucional, por sua vez, pode nutrir de objetivos comuns – por exemplo, seletividade na vida e na morte de jovens negros e pobres – entretanto, terá sutilezas além do próprio Estado de Emergência decretado na França em combate ao terrorismo. Em comum, há o lema de que a legalidade pode ser inconveniente97 e esse modelo de governo se projetou no tempo. Além do processo político institucional de naturalização do Estado de Emergência e da extensão dos efeitos por meses seguidos, a partir de 2016, o governo francês quis aprovar sua total inclusão na Constituição. Uma vez previsto, não necessitaria mais do Parlamento para sua renovação, seria um moto-contínuo de poder de exceção. Seria como nivelar por baixo, em termos de controle jurídico, estado de calamidade com Estado de Emergência. O que, em tese, tornaria desnecessário acionar o Estado de Sítio, para situações talvez mais graves, uma vez que a exceção seria uma condição regular da cena social e da vida pública. Como complemento, quer ainda retirar a cidadania francesa dos que forem condenados por terrorismo98. As denúncias de abusos e de graves violações de direitos civis – depois que uma emenda à Constituição permitiu vigor maior ao instituto do Estado de Emergência – são cada vez mais manifestas: das 3.336 buscas, apenas 28 tinham motivação de suspeita esclarecida de envolvimento com o terrorismo99 e os demais podem até ser considerados atos de invasão ao espaço político da cidadania. Dessa maneira, o caminho para o Bonapartismo não estaria distante.

... o “estado de emergência”, ainda que temporário, na verdade cria precedente para uma intensificação do estado de segurança. As questões debatidas na televisão incluem a militarização da polícia (de que modo “completar” esse processo), o espaço da liberdade, e a luta contra o “islã”, este último entendido como uma entidade amorfa. Hollande, ao nomear isso como “guerra”, tentou parecer másculo [...] E no entanto, é esse agora o bufão que assume o papel de cabeça do exército [...] A distinção entre estado e exército se dissolve em um estado de emergência [...] Não há toque de recolher instaurado, mas os serviços públicos foram reduzidos e as manifestações, proibidas – inclusive os “rassemblements” (encontros) para lamentar os mortos foram considerados ilegais [...] o inimigo precisa ser total e uno para ser aniquilado, e as diferenças entre muçulmanos, jihadistas e o Estado Islâmico vão ficando mais difíceis de discernir nos discursos públicos [...] Sarkozy agora está propondo campos de detenção, afirmando ser necessário prender qualquer um suspeito de ter ligações com jihadistas. E Le Pen advoga pela “expulsão”, ela que há pouco chamou de “bactérias” os novos imigrantes [...] Parece que o medo e a raiva poderão se transformar em um feroz apoio ao estado policial (grifo nosso)[100].

Além de imiscuírem segurança nacional com segurança pública – inclusive porque o objetivo de um (eliminação do inimigo) é o oposto do outro (prevenção do conflito) – outro fato gravoso está entre a legalidade e a ilicitude. Não há toque de recolher, mas os encontros e as reuniões públicas estão proibidos, por exemplo. Cresce o racismo e a islamofobia. O passado e o arcaico assombram a modernidade, o Estado hobbesiano se faz atuante. Se há naturalização do Estado de Emergência, é óbvio, não há mais questionamento acerca do uso continuado e desmedido da força física. Desse modo, a revolta de milhares de pessoas contra o Estado de Emergência francês é a exceção que confirma a regra, pois a tendência geral é de todos(as) requerendo o uso da força excessiva – com evidente mitigação de direitos – para que se consolide como regra impositiva e determinante. Em termos exatos, a extensão do Estado de Necessidade equivale a banir o Político da vida comum do homem médio, desumanizando-o, pois o Político, a luta pelo direito, a ocupação popular do espaço público são a origem do longo processo civilizatório e de humanização. (A necessidade deve estimular a criatividade e não a repressão). A exceção provoca, em síntese, o desejo (inconsciente) do fim de si mesmo, posto que se requeira o fim da atividade política e humanizadora. Há de se reportar, ainda, que é da política que surge a normalidade e a legalidade: legitimidade.

Por seu turno, no Brasil, não há recipiente constitucional para o Estado de Emergência nos moldes do instituto jurídico francês. Contudo, se o Judiciário e o Ministério Público não são ativos na investigação e no combate à violência institucional – do Executivo – ou de suas polícias, em um exemplo concreto, é porque já está mergulhado na exceção. As leis para crimes hediondos e que aditivam as penas de restrição de liberdade, bem como anulam outras garantias fundamentais – são imprescritíveis e inafiançáveis – são, claramente, leis de exceção. Basta-nos pensar que estão em sentido reverso à humanização da pena prevista na CF/88. Também não se necessita do instituto perfeito do Estado de Emergência (há o Estado de Defesa, no art. 136 da CF/88) porque existem, de fato, dois tipos de “cesarismos” em andamento, ou seja, conta-se com a aplicação de medidas de exceção (coerção adicional) que se baseiem em regimes não-democráticos e até pré-capitalistas: cesarismo constitucional (latente), cesarismo institucional (manifesto). No plano estritamente jurídico, observa-se que, além da ineficaz divisão de poderes – como forma de bonapartismo soft (Losurdo, 2004) – a estrutura interna de funcionamento do Judiciário o força à conjuração de outras forças. Não ter um poder isento ou ter um Judiciário desconexo à democracia, implica em exceção – inclusive pela regra republicana básica da necessária divisão de poderes – freios e contrapesos que impeçam o uso/abusivo do poder.

Não há Poder Judiciário

O subtítulo é uma sentença! E tal sentença foi proferida pelo cientista político e pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Luciano Da Ros ao El País, em 19-06-2016: não há Poder Judiciário. O país tem 17.000 magistrados, mas não a organicidade necessária a um poder de fato. “Um dos efeitos dessa enorme autonomia individual dos magistrados é que cada juiz decide da forma que entende e, desse modo, é impossível ter posições claras de como o Judiciário, institucionalmente, decide”. O Supremo Tribunal Federal (STF) também não é uma corte, mas um apanhado de 11 juízes – na expressão do professor Conrado Hübner Mendes, da Universidade de São Paulo[101]. Por sua vez, feitos políticos incógnitos, na atualidade, lembram as “forças ocultas” de outrora. O chamado “temor reverencial” é só o terror do poder? Se ministros do STF antecipam votos – na corte maior da judicialização da política – e depois atenuam a ocorrência de crime de responsabilidade, isso não comprova a ilegitimidade do Golpe de Estado[102]? Se mudam o voto reconvertendo a consciência do julgamento, isso não esclarece a politização do Judiciário?

Além disso, o Judiciário brasileiro é o mais caro do mundo: com custos fixos e distribuição de privilégios chega a 1.3% do PIB. E quando se observa mais atentamente o processo de institucionalização de uma Ditadura Inconstitucional – que se projeta no impeachment, mas que decola na casta do Judiciário – aí, então, a questão ganha contornos inauditos à legalidade democrática aposta à CF/88. Exemplo contundente está no fato de o jornal Gazeta do Povo/PR já ter sofrido mais de 45 ações de magistrados incomodados com a divulgação de seus supersalários. Vencimentos muito acima do teto constitucional indicam privilégios que têm efeito de casta social. Sobretudo, se na luta por manter os privilégios, o Judiciário se voltar contra a liberdade de imprensa. Como se sabe – e como acentua Da Ros – sem liberdade de imprensa e Judiciário independente, não há democracia, não há coisa pública. Sem esse conjunto articulado, entre Princípio Democrático[103] e República, o Estado de Direito[104] não passa de um nódulo vazio e autocrático. O Direito Democrático deveria seguir as bases dos princípios democráticos, deveria ser dirigente e não se confundir com a capacidade controlativa do Estado, bem como está muito além do direito de voto – é mais cultural do que opressor/repressor.

Em tal caso, há de se remontar a atual Ditadura Inconstitucional à condição de casta social, com privilégios (privi legem: privilegiem as leis privadas) que não condizem com o próprio capitalismo. O que resulta em efeitos históricos e pernósticos da autocracia como forma de governo, poder e sistema político. No país, sob os privilégios da casta, a autonomia (“dar normas a si”, participando de sua elaboração) se converteu em autocracia. Por isso, o Judiciário não admite auditoria: de audire, ouvir, transformou-se em perscrutar, investigar. A conversão da autonomia em autocracia, como forma insólita de “governo de si” – ou “por si próprio” (autos) e tão ao gosto de “déspotas esclarecidos” – é possível quando um grupo, casta ou classe social não se submete às mesmas regras de controle do poder abusivo. Nessa conjunção fatal – autonomia transmutada em autocracia e imune à auditoria do poder – têm-se, simplesmente, que o poder de promulgar normas reguladoras (soberania democrática) é aprisionado por privilégios de casta social. Nisso que, talvez, esteja o âmago da Ditadura Inconstitucional, ao passo que ainda inspira a criação de mais um subtipo de Estado de Exceção. Portanto, sem que o Judiciário receba o mesmo tratamento republicano que os demais poderes, Executivo e Legislativo, sem que suas contas, cotas e abusos sejam auditorados e submetidos em accountability para apreciação pública, de fato, não será um poder genuíno, mas sim uma casta social com muito poder e capaz de atentar contra a soberania popular e a democracia. De modo amplo, não há Poder Judiciário autônomo porque vigora uma Ditadura Inconstitucional. Os efeitos residuais (ideológicos) perduram em outras dimensões, como prática e exegese de um direito que não se inclina a ter no povo o hermeneuta da Constituição. Por isso, as práticas judiciais são resilientes (pragmáticas, instrumentais) ao capital e ao poder de comando.

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A Ditadura Inconstitucional e a revolução burguesa

No modelo iniciado em Honduras (2009), passando pelo Paraguai (2012), no Brasil instituiu-se a partir de 2016 um nível de refino jamais visto. Pode-se alegar que se chegou ao quarto patamar da definição de ditadura: 1) distorcendo-se um pouco a autocracia da Grécia clássica; 2) o dictator romano; 3) a Ditadura Comissária (de Carl Schmitt e do nazismo); 4) a Ditadura Inconstitucional do século XXI. Por fim, pode-se dizer que o prognóstico nacional para o aprofundamento da Revolução Burguesa – notadamente República e democracia – não é salutar. Ao se observar com mais de atenção o Pragmatismo Jurídico – eivado de ativismo judicial – ver-se-á que o processo civilizatório nacional, em que pesem os discursos pro societas, é involutivo.

O que é Pragmatismo Jurídico?

Herdeiro do chamado Realismo Jurídico, nos EUA das décadas 1910-1920, tem ou tinha três eixos: contextualismo, consequencialismo e antifundacionalismo. Em nosso caso, orienta-se pelo viés instrumental do direito. Ou seja, o direito deixa de ser um fim norteador (como princípios fundamentais) em seguimento a um rito instrumental. Sob a ditadura legal, faz-se (in)justiça com menos direitos. Portanto, sob o Pragmatismo Jurídico, o Judiciário metamorfoseia a autonomia em autocracia e fica imune à auditoria do poder, o Estado de Direito é indiferente à justiça e, assim, atua como grave ameaça à democracia e ao direito justo. Nesse sentido sistêmico e global, afirma-se uma Ditadura Inconstitucional, com ação voltada à autopreservação e à manutenção do establishment e do status quo.

O que é Ativismo Judicial?

De origem estadunidense, sumariamente, a expressão significa uma tendência para agir (sentenciar) fora e além dos limites legais e institucionais previstos como limitadores da própria competência judicial. Por exemplo, seria a decisão do magistrado em confronto com a jurisprudência firmada, ou mais especificamente, em desacordo com a hermenêutica democrática. Dessa somatória enviesada – ainda que em sua origem tenham sido propostas como alianças éticas para uma Sociologia Jurisprudencial – com o jurídico subsumido ao realismo político (poder + capital) decorrem os epítetos da Ditadura Inconstitucional. No país, há um legado político autoritário que conforma o jurídico: patrimonialismo. O público é aninhado pelo privado; os privilégios (leis privadas: privi legem) submetem o direito e subsumem a justiça; o direito é fruto direto da origem dos pecados políticos. Se fosse aplicada a “teoria da árvore do fruto podre”, pouco do ordenamento jurídico seria salvo; sobretudo, se pensar que a árvore está podre e não apenas seus frutos. Com raízes profundas, o patrimonialismo coloniza todo o realismo jurídico. O quadro de formação de casta social, do Judiciário, remete ao passado/presente do Estado Patrimonial em que a Oligarquia é uma forma de poder e de governo. O passado não é apenas presente, como determinante. A Semana de Arte Moderna (1922) e a Revolução de 1930, industrializante, não foram eficientes. Os egos e as psicopatias também derivam disso, mas – como golpe de Estado que (re)cria um direito antiético – o processo é mais complexo. Ativismo e pragmatismo resultam em oportunismo instrumental do direito.

O conjunto desvela um poder do direito-meio, um medium da exceção, como caixa de ressonância do Oportunismo Jurídico.

Ante a avassaladora crise intestina do poder, com toda sorte de artifícios (i)legais, (i)morais dos que brigam pelo poder – no que se inclui a derrocada da luta pelo direito – reafirma-se a máxima política de que “os fins justificam os meios”. De contrabando, vigora um Oportunismo Jurídico: o Judiciário deve regular o Político (alargando os limites da própria judicialização da política), responder de imediato, substituir a qualidade pela quantidade, prontamente mergulhar nas fissuras do poder, abandonar a defesa da Constituição para ter suas ações voltadas à Razão de Estado. Como não poderia ser diferente, nesse ambiente em que se imiscuem o direito-meio (poder) com o direito-fim (justiça), prevalece a regra antijurídica do “poder a todo custo”. No Oportunismo Jurídico instrumental não se professa o interesse pelos fins: como se o direito-meio (medium de poder) fosse a única verdade possível e uma mensagem que se devesse levar a todos, especialmente, ao custo da própria justiça. No vínculo do direito-meio, como medium de poder, não há uma ética da responsabilidade. Afinal, em meio à exceção, quem é responsabilizado pelo uso excessivo do poder?

Pelo mesmo lado da questão, alegando-se a segurança jurídica, uma pretensão de justiça pode se arrastar por décadas, quase indefinidamente. E todo atraso desmesurado, logicamente, afasta a definição do justo e assim se traduz como injustiça. Por isso, o direito precisa ser retido como dinâmica social, não como equilíbrio indefinido, mas equilibrando-se diante das necessidades e das demandas sociais. Não reduzido ao meio, mas atuante para o fim, o direito leva a pensar nos objetivos, no que se quer para si e para os outros com a imposição do próprio direito-fim. Como meio, historicamente, o direito se vê como refém do poder dominante. Como fim, como alegação das conquistas que se unificam na consciência humana (condição humana), o direito é um instrumento de afirmação de classe, de grupos oprimidos. Como justiça, o direito é um instrumento da Teleologia: direito-fim. Como composto, o direito se presta à libertação de todos que se sentem oprimidos. Como componente, o direito é um poder político da opressão; como composto, é um poder social da emancipação. Como equilíbrio do poder estabelecido, o direito é um componente ideológico, pois no fundo somente se equilibram o status quo e a durabilidade das injustiças presentes. Como desequilíbrio social no meio social injusto, por exemplo, o direito pode ser precisamente um meio de justiça, porque desequilibraria a fonte geradora da injustiça.

Entretanto, a (in)justiça não é um objeto de retórica da ciência jurídica ou da sociologia do direito, mas sim um dado da realidade, um fato insofismável e produzido/regulado pela luta das classes sociais fundamentais. Assim, a legitimidade está na fabricação, no momento inaugural da dominação (escolha dos fins) e na delimitação dos meios: descrição do médio-direito (meio) a ser utilizado como instrumento de dominação de alguns/muitos sobre todos. Quando há somente alguns na origem do direito, opera-se sob o manto da exceção de poder; quando se nutre o direito do fazer de muitos (do máximo possível) recorre-se à socialização do direito. Em síntese, o direito-meio (mais ainda se dotado apenas de força) implementa a violência como fim e instrumentaliza o direito: servil ao poder. Do contrário, a violência como meio de legitimação (a vontade não manipulada) substitui a violência-fim (direito = força, coerção): quando prevalece o direito da maioria sobre os mais fortes. De certo modo, essa utopia pode ser compartilhada por democratas, liberais lúcidos, socialistas e comunistas; sobretudo, se o cidadão entender que não há sociedade, por mais perfeita que seja, sem uma intrincada relação entre direito-meio (instrumento) e direito-fim (justiça).

A dialética direito/poder permanece atinente ao processo civilizatório, ora prolongando-o – como direito-fim da justiça – ora retraindo-se diante da instrumentalização do direito-meio: atuando como longa manus do poder mandatário. Portanto, para a solução da Ditadura Inconstitucional que assola o país, o direito-fim (legitimação) deveria ser imposto ao direito-meio (força). Pois, só assim poderá renascer o direito-fim de fato, como direito praticado pela Humanidade e como segurança jurídica contra o direito-meio de todas as formas de exceção. Especialmente porque, outra característica do Estado de Exceção, sobretudo no século XXI, é criar carapaças de “normalidade administrativa do poder”, sobretudo para que o cidadão mediano não reconheça a submissão do direito-fim aos usos/abusivos ditados pelos operadores do direito-meio. Mas, como se vê no cenário político nacional, é o exato contrário do que ocorre na relação tripartite do poder – e que, um pouco mais, poderá se apresentar como um só soberano. O resultado é um Decisionismo Jurídico, em que há metas a serem cumpridas, independentemente da (in)justiça alcançada.

O que ainda confirma a tese do Decisionismo Jurídico

A partir de 2016 há uma inteligência política negativa que associa ordem ao militarismo (progresso). Em casos de grave crise política – e que se resolveriam pelo aprofundamento dos mecanismos democráticos e populares, fazendo atrofiar o fascismo constitucional – as Forças Armadas são lembradas e invocadas em primeira instância. A ultima ratio se torna a prima ratio. Como se trata de processo ideológico continuado, em determinados momentos há uma pregação clara de golpe militar (tanto hoje, quanto em 1964); em outros ensaios, quando a opinião pública ou as forças políticas internacionais são desfavoráveis, fala-se de uma suposta “intervenção militar constitucional”. Não há nenhuma inserção constitucional que possa legitimar tal pensamento e, por isso, trata-se de pregação de golpe constitucional sem disfarce jurídico. Esse pensamento antidemocrático e inconstitucional, no fundo, não passa de um arremedo histórico que remete ao cesarismo, qual seja, invocar-se a figura jurídica do dictator – poder judicial de exceção – atribuindo-se condições de excepcionalidade política a um magistrado. César no passado e, no caso atual, poderia ser qualquer general com conhecimento sistemático da Lei Marcial.

A tese decisional do poder é simples de se entender, pois tem poder quem decide sobre todas as outras formas de poder. Trata-se, especialmente, de quem decide sobre o poder de exceção, quem tem soberania (poder absoluto) para legislar sobre novas formas de poder e de contenção de outros poderes (democráticos e) não atinentes aos Grupos Hegemônicos de Poder. Poder decisional implica na dominação hegemônica sobre a legislatura dos poderes de exceção e, é obvio, acerca do seu manuseio. A dominação hegemônica coincide, portanto, com a homogeneidade entre poder e direito de exceção. Trata-se da expansão do “monopólio legítimo do uso da força física” (Estado) para uma sequência de força política que se baseia no uso/abusivo dos poderes excepcionais de controle social e de dominação integral da ideologia, da política, da capacidade legislativa.

Assim, combinam-se adequadamente poder autocrático e direito de exceção – sob o olhar do soberano – no exercício do monopólio legislativo da força física: violência institucional. Nessa fase, já com o apoio das ruas, o processo legislativo – populismo jurídico – não precisa mais das fontes legítimas da justiça. Trocam-se rapidamente – uma vez legitimado o poder de exceção – a equidade, a liberdade e a igualdade pelo justiciamento que as ruas requerem e que a Constituição de Exceção já autorizaria. A Constituição brasileira de 1937 – apelidada de Polaca, instituindo o Estado Novo sob o comando de Getúlio Vargas – e o AI-5, de 1968, após o golpe militar, são exemplos claros do passado que ainda atormentam. A Constituição Federal de 1988 guarda instrumentos que ilustram a ação explosiva do poder, como a previsão de pena de morte em caso de guerra (Artigo 5, XLVII). Diferentemente desse passado/presente, o Estado de Direito atual se curva ou é amoldado de acordo com a decisão dos grupos de poder (dictator) que se hegemonizam com os recursos da exceção. Em certos casos, ainda que não se instaure uma ditadura tradicional – golpe civil/militar, fechamento das instâncias legislativas superiores, intervenção político-administrativa nos Estados-membros – há evidente concentração de Poder Político e esse é tendente ao absoluto.

Como quer a summa potestas, o Estado de Direito de Exceção não reconhece, efetivamente, os sistemas de freios e de contrapesos às manifestações de poder. Diante de toda a mitigação dos direitos fundamentais, o poder decisional torna-se autocrático. Essa é, sucintamente, a ocupação que se deu, sobretudo no século XXI, à fórmula weberiana do Estado Racional. O Poder Político conta com um corpo técnico-administrativo estável (burocracia, sistemas peritos), controle social legitimado e impessoal (direito), mas que estão a serviço dos grupos de poder que anulam a heteronomia desconfortável à “melhor” racionalidade produtiva. A meritocracia empresta sua inteligência técnica para que o poder não sofra com os avanços da autonomia requerida por outros setores políticos. O César, na Ditadura Inconstitucional, está imantado num poder específico.

Há, então, um Cesarismo Inconstitucional

Sob esse cesarismo inconstitucional, os laivos democráticos perduram; o sistema produtivo e político do capital globalizado precisa de oxigênio, além de que a mínima participação inibe o requerimento da liberdade e do direito de revolução: este que sempre fora preservado como a fonte de todos os poderes, como Poder Constituinte Originário. Nesse caso, contudo, ocorre que o astuto sistema tratou anteriormente/preventivamente de aprimorar suas fórmulas secretas (arcana imperii), a fim de assimilar o próprio ideário democrático e participativo. Sociologicamente, o sistema faz uma fagocitose societal – mediante a capacidade de promover a “mudança esperada” – das proposituras globais de poder elaboradas por seus desafetos. A contracultura do movimento hippie, com a proposta anticapitalista do trabalho artesanal, por exemplo, foi capturada (como trabalho vivo, criativo) e se converteu na mais lucrativa indústria dos acessórios e das bijuterias. Por fim, nesse exato momento, a assim chamada dominação racional-legal (racionalidade + impessoalidade) e agora manipulada pelos Grupos Hegemônicos de Poder, transfigura-se como dominação hegemônica de exceção. Por tudo isso, a expressão bíblica, como chamamento à razão da prudência política, nunca foi tão perfeitamente profética, na potência máxima, e contraditoriamente negada em sua lição original: “Daí a César, o que é de César”.

Pois bem, para melhor confrontar a dimensão do regime ditatorial instaurado em 2016, vale retomar três acepções fundamentais, decorrentes da ética norteadora dos direitos fundamentais: 1) o processo civilizatório é dependente da Ética, muito mais do que do direito positivo; 2) “não se faz justiça com menos direitos”; 3) a Razão de Estado não é superior, em grandeza jurídica e ética, ao Princípio Democrático. Expressões que não estão distantes dos proclamados Princípios Gerais do Direito: honeste vivere (viver honestamente), alterum non laedere (não prejudicar ao próximo), suum cuique tribuere (dar a cada um o que lhe pertence). Por sua vez, esse conjunto da obra opera um instrumental privatismo jurídico.

O Privatismo Jurídico trata com o binômio direita e esquerda

Em tal forma e fase de operacionalização do Político, os direitos sociais/socialistas relacionados com a esquerda do pensamento societal são combatidos com todos os meios regulares (de exceção) disponíveis pelo Judiciário. Sob a ação da impactante ditadura legal, o Estado de Direito que prometia a liberdade e a segurança (CF/88), acabou inerte e liquidada diante do intransigente direito à propriedade. A sociedade moderna dormiu iluminista e acordou com os donos de um Estado de Direito injusto.

Entretanto, nem todo direito é de direita. Nem todo direito é patrimonialista ou se presta à manutenção dos interesses dos grupos hegemônicos. Observa-se isso em inúmeros vetores: da criminalização do assédio sexual à ação revolucionária direta. Está no Poder Constituinte ou na resistência à mitigação do próprio direito: desobediência civil, sedição, direito à revolução. Tanto se aplica à crescente racionalidade das relações humanas, quanto surge na fala da democracia em meio à ditadura. Entende-se melhor essa adjetivação política do direito quando se olha pela história, posto que há um miolo que eleva o padrão civilizatório. No cotidiano, ao contrário, vigora uma confluência degenerativa dos direitos conquistados. Nesse momento, tanto os poderes aparecem articulados para esse fim (remoção de direitos civis, trabalhistas, sociais) quanto o homem médio em sua vida comum clama por medidas autocráticas e de antidireito: exceção climatizada no cotidiano. Assim, pelo que já se perdeu em termos de direitos ou dos que estão sob fortes ameaças, pode-se ver que o direito ameaçado (e que antes era parte do direito posto) é um bem jurídico inolvidável. Veja-se o caso de se criminalizar a ironia contra políticos profissionais, fato que se alinha à contenção/negação de direitos políticos. A simples defesa desses direitos, em meio à cultura fascista de exceção, é em si revolucionária.

A luta pelo status quo ante dos direitos humanos fundamentais, neste sentido, já é uma postura política de enfrentamento à cultura popular (legislativa) de exceção. A mudança também pode se apresentar na “restauração do direito”, se o direito a ser reposto for legítimo, democrático, popular e socialista no alcance de seus benefícios. Ou seja, a militância pelo reconhecimento, defesa e promoção dos direitos humanos fundamentais tanto se dá na garantia do que se assegurou quanto na luta por conquista e efetivação de novos direitos. De todo modo, sob o escopo do processo civilizatório, a luta pelo direito é revolucionária: “As palavras escravidão e direito são contraditórias, excluem-se mutuamente” (Rousseau, 1987, p. 29). A luta pelo direito é revolucionária porque convulsiona o status quo ambientado na manutenção de privilégios e de injustiças. Se praticamente o mundo todo enfrenta retrocessos no plano moral, econômico, político-jurídico, isso indica que se trata de uma exceção: um passo atrás. A regra histórica indica sempre dois passos à frente. O certo é o fato de que “não há justiça com menos direitos”. No momento retroativo (exceção institucional e legislativa) há dois caminhos na luta pelo direito: positivo, resistir a fim de se assegurar o que foi conquistado; propositivo, fazer avançar o padrão civilizatório com mais direitos.

Tem-se como exemplo mundial e angular que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, foi o último instituto jurídico global a garantir o direito à propriedade. O que se entende, de certo modo, analisando-se a espoliação comandada pelos nazistas de todos aqueles em que puderam colocar a mão. De lá para cá, os direitos civis/individuais – já libertos da condição restritiva da propriedade, opondo-se proprietários e não-proprietários – transmutaram-se, (onto/nomologicamente), em “direitos individuais homogêneos”. Isso é, o direito individual que antes fora aprisionado por um/alguns (proprietário/s) foi, historicamente, elevado a uma potência superior, com mudanças profundas na sua natureza jurídica. Hoje, juridicamente, a propriedade atende a fins sociais. O direito civil/individual, em nova potência, permite agora que muitos/diversos (deficientes, idosos, gestantes, crianças) sejam agasalhados pelo “direito individual homogêneo”. Esses e outros grupos são diferentes entre si, com especificidades e necessidades próprias, mas são homogêneos em necessidades especiais de cuidados no espaço físico e nas relações humanas, como ocorre diante da acessibilidade e da permanência com conforto: sentados, seria o caso. Ou no atendimento prioritário. Isso tanto esclarece como o direito é revolucionário na ação (libertação dos escravos) quanto no avanço sistemático da racionalidade humana: o direito como mediação de conflitos. Pois bem, é disto que se trata neste país hoje: assegurar o que se conseguiu a duras penas, com sangue, suor e lágrimas. Como se sabe, “o direito não socorre a quem dorme” e muito menos cai do céu. Ao revés da garantia dos direitos humanos, a racionalidade política mudou, evoluiu, enfim, para se reposicionar de acordo com a máxima racionalização do poder e do direito; todavia, sob o mando de uma gestão técnica da forma-Estado de Exceção, o direito não reconhece a legitimidade que não advenha do poder controlado. E, novamente, o Poder Judiciário está no ápice da exceção institucional.

A Ditadura Inconstitucional nega os princípios do direito ocidental

A própria Lei Maior deve ser adaptada ao suposto realismo dos fatos, no que se inclui a deslegitimação de direitos fundamentais, como o direito de ir e vir e a negação de habeas corpus patrocinado em situação de prisão preventiva e que é uma ação cautelar, isso é, de per si, uma exceção ao procedimento ordinário. No entanto, o pior é que, mesmo antes da revisão legal/jurisprudencial, as normas em vigência deverão ceder à interpretação restritiva de direitos – e ainda que se saiba que as reformas jurídicas (ou meramente interpretativas) não podem ser in pejus, apenas in mellius, ou seja, para desagravar a condição do acusado/detido. Em caso concreto:

A 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região negou pedido de Habeas Corpus e manteve a prisão preventiva do empresário Marcelo Odebrecht [...] Em seu voto, o relator afirmou ainda que, devido às dimensões da "lava jato", é necessária uma releitura da jurisprudência, sendo necessário estabelecer novos parâmetros interpretativos para a prisão preventiva [...] "A singularidade do presente caso está a exigir que se estabeleça um novo standard quanto à aplicação do instituto da prisão preventiva e das demais medidas cautelares [...] A originalidade e dimensão do caso impõem que todos os operadores do Direito — e de um modo especial os julgadorespassem para uma compreensão singular, sem olvidar dos direitos fundamentais", afirma o relator (in verbis – grifo nosso)[105].

Negar provimento de habeas corpus, contra uma medida excepcional (prisão preventiva), alegando-se uma mudança necessária no foco judicial, portanto, implica em aplicar uma interpretação de exceção (e que viola a jurisprudência) a uma restrição de direitos que é de exceção em sua natureza (prisão preventiva). Acontece, na prática, que negando a soltura, sob uma “necessária” reinterpretação da jurisprudência, há evidente cerceamento de direito fundamental e, nesse caso, decide-se judicialmente com o manejo de uma exegese de exceção: a lei infraconstitucional é reinterpretada para obstruir preceitos constitucionais: presunção de inocência e ampla defesa. É notória a adoção de perspectiva judicial que invalida direitos fundamentais, com violação da Carta Política, e isso é uma das medidas excludentes do Estado de Exceção. Contra qualquer punitivismo, e em favor da Justiça, não se pode aplicar o antidireito: primitivismo judicial. Pela lógica da Ditadura Inconstitucional, primeiro se muda a jurisprudência que segue a CF/88 – ao sabor do nosso senso de oportunismo/populismo jurídico – para depois, como efeito consagrador da política que inoculou a exceção no direito, mudar, definitivamente, a Constituição já violada pelos atos de reinterpretação judicial autocráticos. Não é possível usar o direito para mitigar os Princípios Gerais do Direito; não há lógica jurídica – a não ser a da exceção –, na alegação da defesa da liberdade futura, negar-se a liberdade presente. Marx (1978) retratou essa manobra já no século XIX e que salta aos olhos presentes.

O inevitável estado-maior das liberdades de 1848 [...] as liberdades [...] receberam um uniforme constitucional que as fez invulneráveis. Com efeito, cada uma dessas liberdades é proclamada como direito absoluto do cidadão francês, mas sempre acompanhada da restrição à margem [...] Como resultado, ambos os lados invocam devidamente, e com pleno direito, a Constituição: os amigos da ordem, que ab-rogam todas essas liberdades, e os democratas, que as reivindicam [...] isto é, liberdade na frase geral, ab-rogação da liberdade na nota à margem (p. 30 – grifo nosso).

Na decisão da 8ª Turma do Tribunal Regional Federal, da 4ª Região, a liberdade não só está negada por “restrições à margem da lei” e por aqueles que seguem a disciplina do direito patrimonial, como também atuam em seu socorro – como excesso de “Força da Lei” – as interpretações judiciais/inconstitucionais produzidas pela visão de mundo prenhe de antidireito. Uma vez que se nega a consagrada jurisprudência (a prudência com foro de lei), a fim de se atender ao interesse estacionado na mentalidade de quem não pode interpretar os direitos fundamentais para menos. Nesse processo de exceção, no passado e no presente, o Poder Constituinte Derivado deve ser interpretado à luz de um futuro processo constituinte. Numa espécie de teleologia ao contrário, do futuro para o presente, a lei deve ser reavaliada sob uma exegese de poder que quer desesperadamente se legalizar. No caso em tela seria buscar as regras do recall político ou judicial – inexistente no Brasil – para obter os efeitos do impeachment. Certamente, os efeitos dessas manobras sacramentariam uma fantasmagoria político-jurídica. Por isso, essa é a fase em que, de fato, a exceção está em vias de se tornar regra definitiva, com natureza jurídica de Poder Político, legitimando-se diante do poder soberano em atos de constrição da legitimidade democrática que supostamente foi alardeada em sua origem. O fato de estar em “vias de se legitimar”, no entanto, é suficiente para que o “cesarismo regressivo” (Gramsci, 2000, p. 76-77) declare o fim das instituições democráticas e republicanas. Como exceção, esse “novo” pensamento (anti)jurídico já presente nos tribunais muito em breve será regra constitucional, haja vista que segue a Lei de César será para todos.

Um conceito à parte

Quanto à Ditadura Inconstitucional strito sensu que aqui procura o melhor entendimento – anuladora dos Princípios Gerais do Direito, com lastro no fascismo evangelizador e no abate do Estado Laico, e ainda mais distante da nomenclatura romana clássica – pode-se dizer que deriva de uma interpretação oportunista[106], absolutista[107], pragmática[108], antiética[109], antipopular[110], antidemocrática[111] do ordenamento jurídico e da hermenêutica constitucional com intuito claro de violar o Princípio Democrático que dava contorno e forma à Constituição Federal de 1988. Com o glamour gerado em torno da caçada aos “corruptos”, o povo celebra toda ação midiática sem considerar a herança do Direito Ocidental que carregamos na CF/88. Diviniza-se a autoridade estatal sem questionar – ou se aceita complacentemente – os recursos empregados. Como linha mestra do fascismo, há uma divinização do Estado repressor: “elogios desmedidos da instituição estatal, considerando-a como algo sobrenatural, à qual se atribui veneração e submissão indiscutível” (Rojas, 2001, p. 373 – tradução livre). Tal processo instaurador da Ditadura Inconstitucional não se inicia com o impeachment de 2016, mas se fortalece substancialmente, materialmente, com o uso/abusivo do instituto político-jurídico. Na ofensiva de resistência ao Golpe de Estado, que sacramenta os meios de exceção, movem-se indivíduos e instituições. É o caso do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), motivando-se contra os atos de exceção que violam o artigo 85 da CF/88 e o artigo 4º a Lei 1.079/1950.

“O parecer foi elaborado sem quaisquer defesas ideológicas ou político-partidárias, se limitando ao exame da constitucionalidade e da legalidade do processo de impedimento, com o propósito de contribuir para o fortalecimento do estado democrático de direito e dos princípios republicanos” [...] “As chamadas pedaladas fiscais e a utilização de decretos não autorizados para abertura de créditos suplementares podem ser decisões administrativas reprováveis, por conta do objetivo de maquiar as contas públicas e majorar o déficit primário, mas não constituem crime de responsabilidade”, afirmou. Para Manoel Peixinho, “as razões deduzidas pelo Tribunal de Contas da União, pela Câmara e o Senado são desprovidas de fundamentação jurídica, porque as pedaladas e os decretos não violam as leis orçamentárias nem a Lei de Responsabilidade Fiscal[112]”.

Do mesmo modo, juízes de tribunais na ONU (Organização das Nações Unidas)[113] manifestam-se apreensivos quanto aos episódios judiciais mais recentes da quebra institucional e esperam que o organismo internacional manifeste-se contrariamente aos atos de exceção. Porque, em suma, é o Princípio Democrático – motor do processo civilizatório – que está ameaçado e, consequentemente, toda a estrutura do Direito Ocidental. Viola-se a Convenção de Montevidéu (1933), a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948), a Convenção Americana de Direitos Humanos – ou Pacto de San José da Costa Rica (1969) e o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (1976)[114]. Em plano mais amplo, a “versão”[115] da Ditadura Inconstitucional alinha-se ao contexto repressivo fascista internacional[116] – regressivo quanto ao uso dos meios político-institucionais excessivos (Gramsci, 2000). O clima de terror, ora gerado internamente ora com justificativas internacionalizadas[117], anima o exceptio[118]. O animus dessa fase do Estado de Exceção é a tomada institucional (por dentro) do poder; faz-se uso de forças repressivas, inclusive militares, mas não com forças militares convencionais. No caso, além do emprego das polícias – atuando como aparelhos repressivos de Estado – ilegalidades, inconstitucionalidades e arbitrariedades são apresentadas e conduzidas pelo Estado, que atua como propulsor ideológico (nomológico: editor de leis injustas) e institucional dessa forma sofisticada de ditadura legal. Para um sistema político-jurídico em que vige um regime de castas para um dos poderes, é perfeitamente legal que se apresentem condições absolutamente distintas nos atos judiciais finais, partindo-se de casos absolutamente semelhantes.

A nomologia da Ditadura Inconstitucional

Por que, para um empreiteiro são oferecidas as benesses da delação premiada – leia-se, liberdade – e para outro resta a masmorra? Ambos cometeram o mesmo crime. Nessa condução dos meios para os fins que se projetam distantes da justiça – em que, efetivamente, direito e justiça não comungam a mesma cartilha – “a coerção é o método de ação”. Com base, por exemplo, na delação premiada, quem confessa primeiro – ou é escolhido pelo julgador – tem a vantagem do direito premial e, nesse caso, significa a liberdade. Ao(s) outro(s) restará a prisão. Não há como não ver que aí se aplica a lógica da relação amigo/inimigo; não há como não ver que também os “fins não estão para os meios”, como requer o direito. Posto que, ao contrário disso, “os fins (nem sempre justificáveis) justificam os meios”. Afinal, do contrário, o tratamento seria paritário, equânime, com isonomia e imparcialidade. Vê-se, em consequência, que a neutralidade/imparcialidade não é um método, que esta é uma exigência super-humana na exata relação de valores que se apoderam de cada agente público aplicador da lei. Vê-se que ao positivismo jurídico cabe a hermenêutica provinda do realismo/dualismo político: amigo/inimigo. Os interesses e as pressões externas são superiores, em grandeza de direito, às convicções pessoais ou nomológicas da justiça.

Realmente, direito e ética nunca estiveram tão distantes, incomunicáveis por decisões políticas que – a não ser que se convença, em razão de argumentação muito mais convincente – escapam à lógica da razão jurídica, quando esta era presumida pela ética dos negócios públicos, mais especificamente, pelas ações das transações judiciais. Por esses feitos, pode-se aplicar a coerção como método. A uns implica em direito premial, liberdade, a outros, no entanto, as piores penas possíveis[119]. Fora do discrímen desejado e necessário (discriminação positiva), quando, diante do procedimento judicial, os iguais são diferentes, entretanto eles não são diferentes, mas sim desiguais. Prender um e soltar outro, pelo mesmo crime cometido, não há de ser um avanço conceitual que aprimore o direito. Criar um exemplo, do que permanecerá preso, não está longe do senso comum do homem médio em sua vida igualmente comum, quando sentencia que se trata do “boi de piranha”. Desse modo, se a questão ética (legitimidade) nem é presumida, porque passa longe do direito aplicado, restaria que se discutisse sua legalidade. Mas, como se sabe, inclusive pelos olhos brandos das cortes superiores, a hermenêutica da Ditadura Inconstitucional é direcionada contra a Constituição. Temos, na confissão das provas improváveis dessa nomologia ditatorial e inconstitucional, condenações presumidas e delações não confiáveis. Essa é a Ciência do Direito que se projeta em distopia contrária à teleologia como contribuição ao processo (in)civilizatório. Ainda que a nomologia seja Ciência apenas no sentido de que revela uma ciência, um conhecimento agregado à conveniência, substituição das normas jurídicas, os esforços têm graves erros de origem: vícios redibitórios insolúveis. Ou simples erro crasso na premissa maior. No caso específico das normas aplicadas à Ditadura Inconstitucional, ou de suas interpretações draconianas, vê-se que a nomologia resulta da subsunção da ética, em desfavor da justiça, para foros que empobrecem o senso mínimo da Humanidade.

Ditadura Inconstitucional: condições propícias

Também do ponto de vista jurídico, observou-se o fim do Estado Democrático de Direito. Em suposta alegação de que se quer resguardar a República, aviltam-se os Princípios Gerais do Direito. O próprio Direito Ocidental, em suas condições estruturais, está em fase de negação. Quem tem por volta de 50 anos e viu a instalação da Assembleia Nacional Constituinte, em 1986, sente-se no olho do furacão da história novamente. Porém, os efeitos são contrários: lá, sabia-se das dificuldades, mas era tempo de se construir o direito; hoje, todos os esforços empenhados sofrem ataques regressivos. Se houve uma Constituição Cidadã – em que pese a existência de exceções provindas do militarismo de 1964 –, atualmente assiste-se à degradação sistemática dos direitos fundamentais. Quando o Supremo Tribunal Federal (STF) aplica um drible no Princípio da Ampla Defesa, acelera ou empaca julgamentos – na cola do realismo político – é sinal de que já colou o direito de exceção[120]. Se magistrados são atemorizados, repreendidos, afastados de suas funções por assumirem posições contramajoritárias às suas cortes – sobretudo em defesa dos direitos humanos fundamentais – é porque o tempo do Princípio Democrático está findo[121]. Quando o mesmo STF ameaça coibir o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), retirando-lhe as funções de analista e de julgador dos membros do Judiciário é porque, além do coronelismo renitente ao Estado Patrimonial, está adotando meios de exceção[122].

O probo não pode se impor pela via da seletividade, porque a República não pode ser refém do direito de ocasião[123]. E porque todo embate em defesa do juiz honesto, defensor da justiça com moralidade pública, é uma luta pela democracia. Quando se tem a prisão decretada de um senador da República – por obstrução da justiça – diferentemente de outras autoridades, e igualmente carimbadas em gravações de réu confesso, é sinal (para além dos indícios) de que “forças ocultas” vaticinam o Estado de Exceção sob a bandeira da Ditadura Inconstitucional: é sua prova robusta[124]. A tese jurídica segue sendo a mesma, uma vez que, ainda com respaldo na Constituição Federal de 1988, as desventuras do STF – e de quebra do Judiciário, salvo honrosas exceções – reportam-se à Ditadura Inconstitucional. Contudo, ao rigor da interpretação mais positivista, é apenas inconstitucional, pois que a CF/88 assegura direitos fundamentais e proíbe, terminantemente, tratamentos desiguais para casos equivalentes nas ações danosas de sujeitos igualmente equiparados em juízos e em condições reais (e similares) de sua existência política.

Dura lex, sed lex

Para nunca se esquecer: quando o Supremo Tribunal Federal escolher quais amigos/inimigos da República devem ser presos, é porque a seletividade jurídica mostra seu caminho pelos descaminhos do realismo político. Se acusadores do “golpe” de 2016, sobretudo sua principal vítima, têm de se reportar ao Judiciário, explicando-se a origem e o embasamento da expressão – “na Ciência Política, ruptura institucional e antidemocrática é Golpe de Estado” – é sinal evidente de que a sociedade está coberta pela espessa capa da Ditadura Inconstitucional[125]. Inerte e/ou refém da própria judicialização da política, a Corte Superior revela-se politizada, mas como quem escolhe partidos em ação. Independemente de haver interesses outros, até mesmo pessoais, quando a política judiciária se torna partidária, sucumbe o Político, a democracia, a dignidade como princípio maior do direito. No mesmo pleito, se o Judiciário e o Ministério Público querem calar a imprensa, quebrando a economia de jornais, com ações por dano moral, é indício material de uma Ditadura Inconstitucional[126]. Em todos os exemplos emprestados, o prisma não muda, antes, acentua-se o uso arbitrário do sistema contra aqueles que se colocam em favor dos direitos fundamentais. Se um só juiz é atemorizado por cumprir rigorosamente o direito que preserva a dignidade do cidadão, o que esperar para o homem comum?

De todo modo, ao se perder sob o impacto da politização do Judiciário[127], estrapolando-se toda e qualquer devida judicialização da política – em vias de se institucionalizar a cultura da torpeza –, igualmente, o cidadão perde o referial do direito ético. A cultura da torpeza que alimenta a Ditadura Inconstitucional não é um fenômeno nacional, mas aqui se nutre do que há de pior no capitalismo transnacional e no chamado “presidencialismo de coalisão”. No fascismo, de colizão frontal com os privilégios de classe ou casta social, o povo é quem sofre a perda total. Também os preclaros defensores da República querem o fim das operações tapa-buracos na corrupção da política nacional. Espera-se sensibilidade do Judiciário para que não atrapalhe, em denúncias, o governo interino[128]. Observar na prática a seletividade jurídica (“sensibilidade”), já é realidade para o homem comum, pobre e negro; mas, talvez, queira-se mais algum tipo de incômodo institucional que proteja a Razão de Estado. Por isso, é possível asseverar: não se atropela o direito fundamental, nem mesmo com o anseio de se proteger a justiça. Simplesmente, porque "não há justiça com menos direitos". Ou há o direito para a democracia ou é injustiça. Não há meio-termo. Aprende-se essa dura lição com os antigos e na leitura das falácias construídas sobre a Constiuição de Weimar/1919. Dura lex, sede lex: sim, a lei é dura, mas que não seja só para os inimigos do poder constituído em establishment. Assim, mais do que nunca, se por sua defesa intransigente aos princípios da democracia, do Estado de Direito, dos direitos fundamentais e da dignidade humana magistrados são perseguidos, é porque o Direito Ocidental – como se conhece desde a Roma antiga – curvou-se aos ditames do dictator[129]. Quando o Judiciário, além de todo o interposto Estado de Exceção, alimenta-se de machismo e de misoginia aguda, sem contabilizar os efeitos do racismo e do elitismo, é sinal claro que o direito não respeita a justiça[130]. Pode-se, portanto, asseverar que há muitas incostitucionalidades perpetradas em nome da tomada de poder – sob a vestimenta da Razão de Estado. Esssas formas variadas de manipulação consitucional, obviamente, acarretam inconstitucionalidades.

A inconstitucionalidade da Ditadura Constitucional

Para efeito de registro na história ocidental do Estado de Direito – baluarte republicano do século XIX – é fato que, enquanto houver um respiro da Constituição Federal de 1988, o que se faz e fizer em detrimento da legalidade acostada, será ilegítimo, injusto e inconstitucional. O processo de mutação constitucional, para fins permissivos de interpretações absolutistas, nos moldes da hermenêutica fascista do direito, é inconstitucional – no sentido de se chocar com a moral jurídica internacional construída desde 1949, na Alemanha – e, assim, coloca-se na permissividade ou é consorte à ocorrência das mais graves violações dos direitos humanos. Um fim para o qual, certamente, o Estado de Direito não fora planejado, especialmente desde a Revolução dos Cravos, em Portugal, e que está na origem da Constituição Federal de 1988. No entanto, sob o refluxo fascista, mesmo os membros do Judiciário – que não se curvam à exceção – são atemorizados com abusos de poder[131]. Desse modo, a condição evidente da Ditadura Inconstitucional é a progressiva – mas voraz – repressão do Princípio Democrático pelo Estado de Exceção; atribuindo-se poderes excepcionais para os poderes constituídos, na exata proporção em que ocorre crescente mitigação dos direitos fundamentais. Busca-se salvar a Razão de Estado – justificativa para se aprimorar os poderes de exceptio –, com a “finalidade de preservar a ordem constitucional”[132]. No presente pretexto, é evidente que o contexto expansivo, inclusivo e coletivo dos direitos humanos é albergado, fazendo-se refluir todo o processo civilizatório que se havia em curso. Pode-se, ainda, asseverar que sempre houve majestas na Razão de Estado, mas sem potestas in populo não há poder que se sustente. Porque, para a luta pelo direito nunca haverá direito findo e por mais que sejam severas as condições de poder opressivo, as respostas são individuais e coletivas[133], institucionais ou políticas. A realidade política não cessa, bem como as barreiras de contenção do abuso de poder e de seus meios de exceção. O direito não pode ser isso, mas, hoje, serve como chicana da justiça mais elementar – como nos romances de Balzac, Kafka, Camus, Gabriel Garcia Márquez. Diferentemente das maquinações constitucionais de Carl Schmitt (2006) – que serviu de ideólogo, querendo-se ou não, ao nazismo – não se vive propriamente num quadro de Ditadura Constitucional. Houve algo assim com o AI-5, de 1968, mas hoje – enquanto perdurar o mínimo Princípio Democrático tatuado na Constituição Federal de 1988 – o que se faz, com o beneplácido do Judiciário, é consorte a uma ditadura ilegal e ilegítima. Hoje, há uma Ditadura Inconstitucional.

O clássico ocultismo e abuso de poder

Observando, ainda, juridicamente, o Senado Federal volta a examinar projeto de lei sobre crime de abuso de autoridade[134]. Primeiramente, resguardando-se a formação mais clássica, pode-se pensar que autoridade é um termo aplicável exclusivamente à magistratura. Isso é, interpretar-se-ia de forma mais restritiva o termo e a aplicação desse instituto legal. Por uma razão simples: autoridade é quem exerce o poder legal de interpretar, julgar e punir ações discricionárias dos demais agentes do Poder Público. Assim, restritivamente, autoridade é quem detém o poder de julgar a todos que têm capacidade ou competência técnica de manifestar atos de poder. Denomina-se sociologicamente de “sistemas peritos”, pois são sistemas operacionais geridos por agentes de poder capacitados ou instituídos de legitimidade. No caso específico, seriam os magistrados que interpretam, interpelam, ações de agentes/servidores dos três poderes em instâncias judiciais e jurídicas distintas. E seriam interpretações legítimas se ocorressem não apenas em face da lei que prevê, autoriza e disciplina esse mesmo poder legal de julgar inclusive a seus pares; mas, sobretudo, se viessem calcadas no Princípio Democrático. Submersos em caos institucional, vale dizer, em plena era de Ditadura Inconstitucional, as autoridades pululam sem distinção e os crimes de abuso se somam e se somatizam, o culto à personalidade é multiplicado ad infinitum. E quase todos se locupletam de um descontrole democrático-republicano.

Então, nesse contexto, resulta que submerge na flagrante a impunidade dos abusadores do poder: incluem-se, aí, os julgadores que prezam sua autonomia, mas que repudiam qualquer auditoria nas suas ações julgadoras e punitivas. Em tese de primeira conclusão, os (e)feitos/defeitos do poder abusador teriam motivado o legislador a ampliar o escopo da dita “autoridade”, a fim de abarcar outros agentes da lei e do poder constituído. Porque, de forma direta, o poder de todos – de agir, investigar, legislar ou de julgar – está sob a tutela do descontrole perpetrado por meios/mecanismos de exceção: da corrupção à caça aos corruptos. No exemplo concreto, ainda resta dizer que se passa uma fase tão estranha, complexa e contraditória dessa particular Ditadura Inconstitucional que um projeto de lei sobre abuso de autoridade pode suscitar medos e problemas descomunais para o bem e para o mal. No nosso caso, o bem serve ao mal – porém, o vice-versa não é atento ao presente da negação democrática. Se a história recente fosse de respeito ao Direito Ocidental, o próprio projeto da lei sobre abuso de poder só seria recebido se viesse embalado pelo Princípio Democrático; pois, do contrário, seria rechaçado de pronto por considerar-se uma afronta inconstitucional aos direitos fundamentais funcionais do poder investigador.

Entretanto, como perdemos a face democrática da CF/88, a partir do impedimento de 2016, projetos autoritários, reacionários e suspeitos de albergar interesses fascistas e escusos chegam e são lidos todo dia no Congresso Nacional. Desconstrói-se a democracia, tanto quanto o Estado Laico. Em consequência dos abusos da Ditadura Inconstitucional, num primeiro plano, deveria ser motivo de celebração o recebimento de um projeto que viesse a punir abusos (seletivos) das autoridades investidas – e se houvesse, obviamente, clima progressivo no processo civilizatório – num segundo momento, revela-se, ao contrário do pressuposto democrático, uma existência perturbadora na exata medida em que o projeto pode/deve beneficiar investigados poderosos de atentar contra o erário. Nesse caso, as autoridades investidas seriam revestidas por um cordame imoral que os impediria de investigar corruptos da República. Cabe ressaltar que o país já tem uma lei para isso, apesar de antiga e desatualizada (Lei nº 4.898 – 9/12/65)[135]. Entretanto, o “novo” projeto, de 2009, prevê[136]:

Art. 2º. São sujeitos ativos dos crimes previstos nesta lei:

I – agentes da Administração Pública, servidores públicos ou a eles equiparados;

II – membros do Poder Legislativo;

III – membros do Poder Judiciário;

IV – membros do Ministério Público.

(....)

Art. 12. Ofender a intimidade, a vida privada, a honra ou a imagem de pessoa indiciada em inquérito policial, autuada em flagrante delito, presa provisória ou preventivamente, seja ela acusada, vítima ou testemunha de infração penal, constrangendo-a a participar de ato de divulgação de informações aos meios de comunicação social ou serem fotografadas ou filmadas com essa finalidade.

Pena – detenção de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa, sem prejuízo da pena cominada à violência.

Art. 13. Constranger alguém, sob ameaça de prisão, a depor sobre fatos que possam incriminá-lo (grifo nosso)[137]:

Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas quem constrange a depor, sob ameaça de prisão, pessoa que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, deva guardar segredo (grifo nosso)[138].

Pelo mesmo lado da moeda, mas, observando-se pelo ângulo contrário dos que querem plena autonomia – o que inclui “dar normas a si mesmos” (auto+nomos) como se fossem os únicos intérpretes autorizados da lei e da Constituição – e sem sofrer do constrangimento legal e do embargo legítimo dos pressupostos democráticos que embasam a auditoria (audire: ouvir, ouvidor), sendo esta necessária e urgente ao “poder que interpreta o ordenamento jurídico”, é preciso ressaltar, muitas vezes, que o referido projeto de lei é de 2009. Portanto, não foi exatamente uma medida legislativa a fim de combater de pronto as ações da conhecida Lava Jato. Quanto a isso, as debatidas autoridades julgadoras veem-se revestidas da capa patrimonialista que as protege com privilégios constitucionais imorais. E demonizam tudo e todos que as contrariem em seus interesses de casta/estamento social. De todo modo, como o país está mergulhado em corrupção endêmica e motivado por Estado de Exceção, todo cuidado em se posicionar diante desses fatos é obrigatório. Pelo simples fato de que nessa “solução” repousa a salus publica e a sobrevida da democracia. Simplificadamente, o fator em causa destaca que: se há o perigo de corruptos temerários quererem barrar investigações sobre o malfeito, há, pelo reverso, o receio dos “operadores do direito positivo e dos aparatos ideológicos e repressivos de Estado” em se submeter ao controle previsto na divisão dos poderes. De um lado corruptos com medo gigantesco da prisão-masmorra, de outro, “autoridades no exercício do poder de exceção” escondidas, protegidas, sob a capa da impunidade do poder que abriga os mesmos corruptores do poder democrático. Em comum, há o andar de cima do fascismo em pleno século XXI e que se move impregnando todos os veios institucionais. Por isso, continua latente a questão inicial: a lei ameaça juízes ou apenas os abusadores convictos do poder de exceção?

Ilegalidades da Ditadura Inconstitucional: a suposta situação de emergência

Entre o político e o jurídico, uma das características do Estado de Emergência, além da obstrução dos direitos fundamentais, é o ocultismo: Arcana imperii do poder ex parte principis. Com o ocultismo (Bobbio, 2015) gera-se o caos, o terror, o medo insistente da morte violenta (Hobbes, 1983) que “legitimam” o Terrorismo de Estado. A prisão de supostos terroristas pela Polícia Federal, às vésperas da abertura das Olimpíadas, abriu brechas evidentes para a ação afirmativa/confirmativa do Estado de Exceção. Nessa fase aberta da Ditadura Inconstitucional, as ilegalidades são claramente expostas. Além dos direitos fundamentais, ou incluindo-se neles, as prerrogativas da advocacia são negadas, bem como o mínimo direito de representação e de defesa de suspeitos que, talvez, nem chegarão ao status judicial de réus. O Golpe de Estado[139], instituidor da Ditadura Inconstitucional, abriu uma fenda inerente – ou nova fase – no Estado de Exceção. Clareia-se, portanto, uma nova etapa do poder abusador e que, até então, se procura(va) disfarçar[140]. Caiu, assim, a máscara sob a qual velava-se uma interpretação seletiva do ordenamento jurídico, e que outrora servira à democracia e à soberania popular. Por definição de obviedade, não pode haver Estado de Exceção abusador de direitos fundamentais alinhado ao potestas in populo. O poder soberano é do povo.

No caso concreto, os terroristas nacionais, em verdade, não passam de pretextos ao Terrorismo de Estado, em que as próximas vítimas serão os movimentos sociais populares e os cidadãos comuns rebelados contra a Ditadura Inconstitucional[141]. O próprio Judiciário, ao menos a parte ativa no caso das prisões de supostos terroristas “amadores”, colocou-se receoso quanto às investidas oportunistas do Poder Político que fez (faz) uso/abusivo dos meios de exceção[142]. O que está por trás da ação anti-terror[143], além da quebra da soberania nacional – uma vez que as agências internacionais já controlam os “mecanismos de segurança[144]” – é o invólucro necessário a fim de que se perpetrem projetos de anulação constitucional (CF/88). Impõem-se, com esse substrato político-jurídico e eletrônico, a necessidade de um Estado de Necessidade. Para o modelo nacional, pode-se esperar que permaneça entre os moldes aplicados na França e na Turquia: algo entre os dois, talvez combinando-os num sentido mais aterrador quanto à negação de direitos fulcrais à democracia, à República, ao Estado de Direito que se construiu a partir do século XIX. Portanto, o golpe é real. Mas, tem ou tinha artimanhas de surrealismo[145]. Pois, se o objetivo sempre foi o de endurecer os meios de exceção já dispostos pela Ditadura Inconstitucional, as ações futuras serão mais do que úteis ao poder abusador – ou inúteis, se analisar exclusivamente na retórica e nas ações dos que se batem, verdadeiramente, contra o golpe[146]. É preciso mexer com o imaginário, criar o inimigo.

O Labirinto do Fauno

A criação do “inimigo combatente” revelou-se parte ativa da fantasmagórica Ditadura Inconstitucional. O filme O Labirinto do Fauno exemplifica o processo, sobretudo pelo desassossego que coloniza as mentes que ainda pensam que dois e dois são quatro. No filme, encanta-nos tudo, sobretudo a mitologia que luta pelo fim da opressão, como a eterna utopia dos povos em disputa contra as distopias de poder. O caso central está na barbárie vista e denunciada pela criança, enteada do torturador e assassino a mando do Estado fascista espanhol. Porque, mesmo assim, em meio a tanta violência nua e crua, na máxima desumanização que acompanha o delírio do poder absolutista, a criança não perde de vista os sonhos: o principal deles é acreditar que pode salvar sua mãe das mãos do tirano e, portanto, da morte certa. O mais perturbador é o fato de que o insólito se agarra como realidade cumprida, extensa, muito além do devaneio que qualquer pesadelo literário poderia patrocinar. Além do fato de que essa realidade é a atual. Mais especificamente, é o sentimento que democratas, liberais lúcidos, ativistas de direitos humanos, republicanos, socialistas e o homem comum bem informado sentem quando as anormalidades ficam prenhes de racionalidades.

E, ainda mais especificamente, diga-se da irracionalidade antipopular e antidemocrática vaticinada em defesa da coisa pública, legalizada em abusos e como afronta ao meridiano da inteligência político-jurídica. Tal qual o assombrado e assombroso filme, por sua eterna atualidade, segue o país por essa estranha realidade que se suspende da normalidade, mas em forma deformada; no que também lembra muito o escritor franco-argelino Albert Camus ou o colombiano Gabriel Garcia Márquez, com suas vacas comendo tapetes palacianos. Parece que tomados pela normalidade/racionalidade dos outros (poder, capital) há, como isso afronta ao juízo mínimo de racionalidade baseada na Ética, sente-se o peso da mentira (pesadelo), mas pensando, acreditando e sonhando em viver a realidade verdadeira que as utopias poderiam construir. Isso é o que se pode chamar de loucura coletiva, devaneio produzido diretamente pela esquizofrenia institucional e sistêmica, pois constroe-se a vida sobre uma realidade que não a comporta. Não há coincidências, só semelhanças no modus operandi que abriga o passado e o presente[147]. Mesmo assim, no presente, como antanho, seria legítimo indagar se as coincidências são meras semelhanças[148]. Quando realidade e fantasmagoria se perfilam ou se unem, quando certo e errado, ético e desumano têm verossimilhança entre si é porque as sutilezas da Ditadura Inconstitucional fincaram raízes na Terra Arrasada. Em todo caso, a realidade/racionalidade minimamente cartesiana, em que não prevaleça a relação amigo/inimigo, é que foi afastada ou rendida por seus aparelhos ideológicos de repressão[149]. O Político não resiste por muito tempo à exceção.

Novas fases da Operação Ditadura Inconstitucional

Politicamente, como caso concreto, o aprofundamento do impeachment (“ruptura institucional”) não requereu uma quartelada – golpe civil/militar como visto em 1964. Porque não é preciso. Ao contrário, vê-se apenas o andar da operação tapa buracos: fechar a Lava Jato (como vaticinou o juiz); acomodar o governo interino; antecipar eleições; retomar a miniconstituinte que saque um Chefe de Governo diretamente do Congresso. Pode-se ver qualquer uma dessas varíaveis ou uma conjugação. A par disso, elevam-se feitos cada vez mais dispostos a alimentar o regime de castas que abriga parte do Poder Público – leia-se Judiciário. Feitos e fatos que comprovam a operação intestina que ressoa no vivo e atuante Estado Patrimonial[150]. Além disso, talvez como contraprova desse resíduo ácido e corrosivo do patrimonialismo, projeta-se do imaginário mal disfarçado a perspectiva de que o público, notadamente o direito público, não se adequa aos princípios ou valores minimamente republicanos e éticos. Autoridades públicas que autorizam o estupro, sob o pretexto de que as vítimas “deram motivos” ou que simplesmente o corroboram, pode ser um exemplo vigoroso[151]. Pois bem, ao contrário do interesse público, acenam com um imaginário corroído, corrompido pelo patriarcalismo.

A mesma estrutura patriarcal, que se alimenta de racismo e de machismo (misoginia), também é vista no comportamento aniquilador que reserva aos adversários e opositores de seu sistema de injustiças e de poder absolutista um tratamento ainda mais seletivo e penalizador. Nesse caso, aplica-se a regra de que os adversários são inimigos e assim se perpetua a relação amigo/inimigo: com a extinção progressiva dos que ousam defender a Justiça Social[152]. O fato é que não haveria novidade em nada disso. Então, o que vier não é prejuízo, mas sim consequência direta[153]. Desse modo, como pode haver contingenciamento humanitário, civilizatório, ou simples retorno ao status quo ante, a própria Revolução Burguesa, por aqui, é capaz de operacionalizar uma Ditadura Inconstitucional em que direito e ética estejam completamente apartados. Legalizando-se a Ditadura Inconstitucional cria-se a sensação de normalidade (sub-reptícia), mas que, enraizada na cultura da opressão, apenas coroa-se com o desejo da dominação pelo direito. O que não se percebe, com clareza, é que a objetividade dessa dominação racional está pautada no antidireito e nas mais deploráveis formas de injustiça institucionalizada. Em suma, essa é uma das formas privilegiadas da Ditadura Inconstitucional que se enfrenta: não apenas denega a Constituição, como abate a democracia e institucionaliza (legaliza) as injustiças mais atrozes. É preciso reafirmar que a conotação claramente fascista da atualidade impõe largo retrocesso moral, político e jurídico.

Princípio da não-retroatividade moral

O repertório de retroação moral sob os tempos de golpe parecem infinitos, mas listam-se uns poucos para concluir tal item: cristofobia, apologia aos crimes raciais e de ódio[154], alimento midiático febril à cultura da torpeza, seletividade policial e judicial, atentados aos direitos fundamentais individuais e sociais, sonegação acachapante da Constituição Federal de 1988. Portanto, um militar que defende o Estado de Exceção – em 2016 – não pode ocupar a direção da FUNAI (Fundação Nacional do Índio)[155]. Pelo simples fato de que esses métodos e outros poderiam ser utilizados a qualquer hora e, novamente, com o escudo de autoridade fornecido pelo Poder Público adormecido pelos meios de exceção. Esse é um dos muitos exemplos de retroação moral sob a Ditadura Inconstitucional. De todo modo, é preciso recuperar outro princípio que – derivado da moralidade civilizatória – aplica-se ao bem estar democrático do povo: Princípio da Vedação ao Retrocesso Social. Nesse caso, basta relembrar dos direitos trabalhistas subtraídos em proveito do capital. Ou seja, se a greve é um direito constitucional – ou era, antes do golpe –, e se um ato grevista não tiver sido julgado como ilegal, por juiz competente, os trabalhadores não podem ter os salários retidos em “estado de greve”[156]. Por sua vez, os princípios citados devem ser apostos a outros: prevenção e precaução. Tome-se de empréstimo um quadro explicativo:

Princípio da prevenção

Princípio da precaução

Certeza científica sobre o dano ambiental

Incerteza científica sobre o dano ambiental

A obra será realizada e serão tomadas medidas que evitem ou reduzam os danos previstos

A obra não será realizada (in dúbio pro meio ambiente ou in dúbio contra projectum)[157]

Reza a PEC 65/2012 que “a partir da simples apresentação de um Estudo de Impacto Ambiental (EIA) pelo empreendedor, nenhuma obra poderá mais ser suspensa ou cancelada”[158]. Por analogia, mediante um “laudo de idoneidade” ou atestado de boas intenções, conferido por qualquer advogado, ninguém mais poderia ser revistado ou preso. Contudo, no lapso civilizatório da atual Ditadura Inconstitucional, ainda há a permissão para pulverização em aéreas urbanas. Não é preciso nem dizer como e que serão afetados humanos e animais domésticos[159]. Na conjuntura, não apenas o direito e seus povos são feridos de morte, também o bom senso, a justiça mínima, a regulação e a regularidade moral. Na Ditadura Inconstitucional, como não poderia deixar de ser, o retrocesso é gutural e expansivo. O modelo ilegal e ilegítimo coincide com o que o líder do Partido Comunista Italiano, nos anos 1930, Antonio Gramsci, denominava de cesarismo regressivo.

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Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Teorias do Estado: ditadura inconstitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5410, 24 abr. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65594. Acesso em: 25 abr. 2024.

Mais informações

O presente trabalho é resultado de uma pesquisa de Pós-Doutorado em Ciências Políticas, realizada no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da UNESP/Marília, sob a supervisão de Marcos Del Roio, professor titular em Ciências Políticas pela mesma universidade.

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