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Teorias do Estado: ditadura inconstitucional

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24/04/2018 às 13:00
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PARTE V

WEBER, BOBBIO E HABERMAS

Um tripé da Ditadura Inconstitucional

Nesse item elaborar-se-ão apontamentos que corroborem o perfilamento de uma Teoria Política da Ditadura Inconstitucional. Para tanto, em primeiro plano – sem ser exaustivo – será destacada a racionalidade que se abriga no Estado de Direito para, em seguida, aventar-se como há migração/naturalização da racionalidade jurídica na forma do poder de exceção.

O REALISMO MÁGICO DA DITADURA INCONSTITUCIONAL

Nessa corruptela de Gabriel Garcia Márquez (2007), o realismo trágico expressa a cultura da torpeza. A tese, inicial, é de que houve "evolução” do racionalismo político-jurídico de Hegel (1997) e Weber (1999) para novo patamar do Estado de Exceção: Ditadura Inconstitucional. "Novo" plano porque esse modelo de Razão de Estado teve início no pós-1789 francês. Entretanto, criou-se um tipo de Mito da Exceção controlada, com tônus de Estado Ético – superveniente e supervisor da cultura – e disponibilizada de acordo com as necessidades apresentadas pelos Grupos Hegemônicos de Poder: "o povo anseia pela dominação legal, indiferente ao golpe, porque Macunaíma espera por vinganças de classe e pelo mensageiro do milagre econômico". A racionalidade dessa dominação está nos fins: o poder ao salvador que vem do judiciário e do MP (Ministério Público). A racionalidade quanto aos meios (Direito, Ética) vigora seletivamente, ou seja, só valem enquanto levam ao poder (tomada de poder). Comparativamente aos EUA, em que vige o bonapartismo (Forças Especiais, CIA, Patrioct Act, Lei Marcial), no Brasil burila-se o cesarismo (Gramsci, 2000): renovação legal autocrática, sem uso de força bélica (a não ser a polícia racista). O resultado é que se formam as bases de uma dominação racional-legal de exceção e de torpeza populista Não se extinguem apenas direitos fundamentais, é muito mais profunda a reforma autocrática do poder. Faz-se esta abolição com a complacência do Judiciário e a forte ação do MP, os mais essenciais Princípios Gerais do Direito. Vale acrescentar que a dominação racional-legal da Ditadura Inconstitucional é capaz de se apresentar livre das prerrogativas (e das amarras do poder) do próprio Direito Ocidental.

Não há pré-requisito na história do Direito Ocidental, mas atina-se com uma longa manus da lei de piedra para punir sem autoria estabelecida e sem Ato Jurídico Perfeito (materialidade dolosa). Desse modo, sua denegatória é atentado grave ao Direito Ocidental, bem como prefigura grave violação de direitos humanos. E, por fim, incorre-se em crime contra a humanidade, uma vez que o baluarte do Princípio Democrático é referendado pela comunidade internacional. Contudo, se o Tribunal de Exceção – em que se pauta todo processo de impeachment de 2016 e o de Collor/1992 também o foi – coloca-se fora das condições básicas do Direito Ocidental (leia-se Princípios Gerais do Direito), então, surge uma figura jurídica abjeta e nefasta: a exceção da exceção mentirosa. Sob as escusas de uma suposta internacionalização da violência – terroristas do Estado Islâmico estariam no RJ – apressamos a votação da Lei Antiterror que tem, por mérito, reprimir e criminalizar lideranças de movimentos sociais combativos. Também abandonamos o Estado Laico para melhor servir à máxima de que "a religião é o ópio do povo".

A racionalidade jurídica que vem de Max Weber

O fato de o conceito de Direitos Fundamentais – construção jurídico-institucional – vir atrelado ao Estado de Direito (Direito Ocidental) evidencia a força normativa ainda presumida pelo positivismo jurídico. Mesmo os Direitos Fundamentais são ou devem ser garantidos pelo Estado, assim como as liberdades e demais garantias de direitos são ou devem ser asseguradas pelo Poder Político. Por sua vez, a constitucionalização dos direitos congrega deveres ao Estado (Hesse, 1991). Na origem e na teleologia, a ocidentalização notificou que não há justiça distante do “direito a ter direitos”. No entanto, o que existe de substrato no senso comum de juridicidade sem que haja, efetivamente, nem legalidade e muito menos legitimidade? Não se trata somente de confundir a lei com o legítimo, como se fez e como querem muitos positivistas; pois, tem-se o desafio de mostrar/revelar que tal “força de lei” se ampara (ou não) na democracia e no bom senso. Deve-se desconstruir a força que a manipulação legal deixou na mente do senso comum, como se fora obra de justa causa. Não será difícil a invocação de Habermas (2003) e a ideia do direito regulador de sistemas (comunicacionais) do poder. A enorme dificuldade está, portanto, em desmontar um discurso de tomada de poder lastreado em Habermas (2003). Não se apela(rá) simplesmente à legalidade do processo, como se veria em Durkheim (1999), Kelsen (1998) ou Parsons (1977).

Sem contar a incapacidade momentânea – a não ser pelos erros de poder – em decodificar o argumento técnico para entendimento do senso comum, a fim de que se reconheça que a negação do Estado de Direito bafejada em 2016[160] não se coaduna com a nomologia acostada na CF/88[161]. Desse modo, em resumo inicial, Max Weber (1979) e Habermas (2003) servem ao Estado de Exceção (Agamben, 2004), forjado sob a manipulação político jurídica cesarista (Gramsci, 2000) e que ainda tem como reserva a força física inerente à Razão de Estado, sob a escolta do bonapartismo (Marx, 1978): “a última razão dos reis”. Por fim, antes que se forme o julgamento de valor (e não de realidade), se somar Weber (1999) e a adoração pela dominação, Durkeim com sua anomia (1999), Parsons (1977) e os grupos sociais, in put, out put, uma pequena dose de Kant (2003), na mais famosa encíclica republicana (fiat justitia, pereat mundus) e a lição histórica de Napoleão Bonaparte (2010), ver-se-á que a democracia foi ofendida. Bem como vem sendo massacrada a racionalidade do “bom direito” (Weber, 1979), em prol da objetividade instrumental da tomada de poder.

Weber e o direito como racionalidade

A liberdade só existe na organização social, como fato/fator que liberta o homem do estado de natureza (Hobbes, 1983). Portanto, o direito que se retrata aqui – seja como recurso de dominação (Weber, 1979), seja como poder de opressão (Marx, 1978) – é um projeto/constructo da racionalidade humana[162]. Na terceira via como se demonstra na Ditadura Inconstitucional de 2016[163], as intercorrências de poder aprisionam o Estado de Direito e põem o direito refém do decisionismo jurídico; vitima-se o Estado de Direito sob a alegação de se salvaguardar a Razão de Estado. Esse é o miolo institucional, hoje, sistematizado e acionado por um modelo de cesarismo retrógrado (Gramsci, 2000)[164].

Nas sociedades modernas, privatizadas desde a instância molecular, associou-se a liberdade ao direito – primeiro de propriedade, depois político e social – ou, mais precisamente, tem-se que o direito é a máxima garantia (coerção) à liberdade. A liberdade organizada, por assim dizer, equivale à racionalidade que se encontra no próprio poder que garante o direito: o Estado. Trata-se de uma liberdade positiva, pois se traduz em direito positivado, atestado e assegurado pelo Poder Político. Desse modo, também, pode-se dizer que se trata de uma liberdade instituída pela organização institucional, onde o direito expressa a institucionalização da liberdade política. Sob o liberalismo, essa construção jurídica está voltada, por exemplo, à liberdade de comercializar: comprar e vender livremente ou com a mínima regulação estatal. Para o direito punitivo, o cerceamento à liberdade (prisão) é a pena mais grave, pois retira a natureza do homem, que é tanto a liberdade natural (do estado de natureza) quanto é a liberdade construída socialmente. A alternativa à restrição da liberdade seria, por exemplo, a obrigação de (re)fazer, de (re)construir o laço social ameaçado, esgarçado[165]. É desse modo que se associa o direito aos seus aspectos formais, ao Estado, às leis, à racionalidade política como extrato do Poder Político legislador.

A racionalidade do direito se expressaria, por fim, na liberdade limitada pelo próprio direito – que a assegura como “direito à liberdade” – e vigiada pelo Estado instituidor de direitos. Essa ainda seria a base lógica para a coerção (“forçar à liberdade, os não-libertos”) tomando-se a coerção como meio e fim: como fim, preserva-se a organização social e a liberdade positiva; como meio, é a força que obriga o direito à liberdade. Tal lógica ou dinâmica está expressa, por sua vez, na obrigação de cumprir o pacto político decorrente do sufrágio universal (“eleições livres”) e o que fora contratado, em comum acordo, por duas ou mais partes em liberdade e igualdade de decisão: pacta sunt servanda. Nessa construção da liberdade capitalista – comprar e vender livremente, obrigar-se a honrar o compromisso comercial – a liberdade que se assegura por lei e que é de direito – salvo os não-libertos na mente ou fisicamente: incapacitados ou detidos – decorre do papel essencial garantido à mercadoria: expressão maior do direito de livremente dispor. Ao revés disso, em 2016 e ao gosto do poder de sopetão, a cláusula da pactuação legitimada foi convertida – por meio de uma engenhosa rebus sic stamtibus in pro societas – em ofensa grave à democracia: a ultima ratio comercial converteu-se em prima ratio pentecostal.

O Direito como institucionalização da política

Um curso de Introdução ao Estudo do Direito Público, especialmente no tocante aos ramos do Direito Constitucional e Administrativo, pode/deve primar pela formação teórica (principiologia) e técnica (prática jurídica), pois é do bom uso desse instrumental e do repertório jurídico, experiência, que as lides do dia a dia são reveladas e resguardadas pelo Direito e pelas garantias/liberdades (“o bom Direito”). Porém, limitados à instância prático-instrumental, corre-se o grave risco de se ver reduzido, subestimado o potencial formador em cada cidadão de espírito inquiridor e crítico[166]. Desse modo, rever, retificar, ratificar, reconciliar-se com o Direito, com o justo, pode/deve exponenciar o duplo sentido elaborado no conceito de Direito: entre conceito e realidade. Essa seria a verificação da racionalidade encontrada entre razão e técnica instrumental expressada, por exemplo, na Justiça do Trabalho: da Carta Del Lavoro em diante foi o que de melhor se pode “olhar” nas lições da história; até que a dinâmica social e a reflexão/atuação da militância advocatícia, da Magistratura e do Ministério Público especiais revelassem a última palavra em termos de Justiça Social.

A Teoria do Conglobamento (Delgado, 2009), por exemplo, verifica que o Direito do Trabalho é eminentemente social e produtivo. Pois, se o objeto do Direito é a justiça, ao homem bom, realmente, basta a consciência: prudência e bom senso[167]. De todo modo, é possível aprofundar um pouco mais a argumentação em torno da afirmação de que o Direito é a institucionalização da política. Nesse sentido mais preciso, é sempre bom retomar as lições de Max Weber ao definir a dominação legal a partir do modelo típico ideal:

1. que todo direito, mediante pacto ou imposição, pode ser estatuído de modo racional – racional referente a fins ou racional referente a valores (ou ambas as coisas) – com a pretensão de ser respeitado pelo menos pelos membros da associação, mas também, em regra, por pessoas que, dentro do âmbito de poder desta (em caso de associações territoriais dentro do território), realizem ações sociais ou entrem de determinadas relações sociais, declaradas relevantes pela ordem da associação; 2. que todo direito é, segundo sua essência, um cosmos de regras abstratas, normalmente estatuídas com determinadas intenções; que a judicatura é a aplicação dessas regras ao caso particular e que a administração é o cuidado racional de interesses previstos pelas ordens da associação, dentro dos limites das normas jurídicas [...] 3. que, portanto, o senhor legal típico, o “superior”, enquanto ordena e, com isso, manda, obedece por sua parte à ordem impessoal pela qual orienta suas disposições; 4. que [...] quem obedece só o faz como membro da associação e só obedece ao “direito”; 5. ...que os membros das associações, ao obedecerem ao senhor, não o fazem à pessoa desse, mas, sim, àquelas ordens impessoais e que, por isso, só estão obrigados à obediência dentro da competência objetiva, racionalmente limitada, que lhe for atribuída por essas ordens (Weber, 1999, p. 142).

Já a dominação racional, em complemento aos quesitos da dominação legal, pode ter seus princípios assim enumerados:

1. um exercício contínuo, vinculado a determinadas regras, de funções oficiais, dentro de 2. determinada competência, o que significa: a) um âmbito objetivamente limitado, em virtude da distribuição dos serviços, de serviços obrigatórios, b) com atribuição dos poderes de mando eventualmente requeridos e c) limitação fixa dos meios coercivos eventualmente admissíveis e das condições de sua aplicação [...] autoridade instituída 3. o princípio da hierarquia oficial, isto é, de organização de instâncias fixas de controle e supervisão para cada autoridade institucional, com o direito de apelação ou reclamação das subordinadas às superiores [...] 4. As “regras” segundo as quais se procede podem ser: a) regras técnicas; b) normas. Na aplicação destas, para atingir racionalidade plena, é necessária, em ambos os casos, uma qualificação profissional [...] uma especialização profissional, e só estes podem ser aceitos como funcionários [...] 5. Aplica-se o princípio da separação absoluta entre o patrimônio (ou capital) da instituição (empresa) e o patrimônio privado (da gestão patrimonial), bem como entre o local das atividades profissionais (escritório) e o domicílio dos funcionários. 6. Em caso de racionalidade plena, não há qualquer apropriação do cargo pelo detentor[i] [...] 7. Aplica-se o princípio da documentação dos processos administrativos, mesmo nos casos em que a discussão oral é, na prática, a regra ou até consta no regulamento [...] (Weber, 1999, pp. 142-143).

No oitavo item, Weber chama atenção para a necessidade de se detalhar a compreensão da dominação burocrática dentro do quadro administrativo. E quem deve tomar parte nesse quadro burocrático? São pessoas livres, nomeadas, com competências funcionais fixadas em contratos estabelecidos a partir de livre seleção, segundo a qualificação profissional, remuneradas com salários em dinheiro, exercendo cargo ou função previamente especificada e, amparadas na perspectiva de uma carreira trabalhando com “separação absoluta dos meios administrativos”, submetem-se a rigoroso e homogêneo sistema disciplinar e controlativo (Weber, 1999, p. 144). Em seguida, o próprio Weber se encarrega de ratificar a tese central sobre a forma de dominação mais desenvolvida (racionalmente é a dominação burocrática), para depois externar seu pensamento em uma fórmula:

A administração puramente burocrática [...] alcança tecnicamente o máximo de rendimento em virtude de precisão, continuidade, disciplina, rigor e confiabilidade [...] intensidade e extensibilidade dos serviços, e aplicabilidade formalmente universal a todas as espécies de tarefas (Weber, 1999, p. 145).

Como diz Weber, é esse conjunto que constitui a célula germinativa do moderno Estado ocidental e no mesmo sentido, refere-se Julien Freund (1987).

A burocracia é, como vimos, o exemplo mais típico do domínio legal. Repousa nos seguintes princípios: 1º, a existência de serviços definidos e, portanto, de competências rigorosamente determinadas pelas leis ou regulamentos, de sorte que as funções são nitidamente divididas e distribuídas [...] 2º, a proteção dos funcionários no exercício de suas funções, em virtude de um estatuto (efetivação dos juízes, por exemplo) [...] 3º, a hierarquia das funções, o que quer dizer que o sistema administrativo é fortemente estruturado em serviços subalternos e em cargos de direção, com possibilidade de recurso da instância inferior à instância superior; em geral, esta estrutura é monocrática e não-colegiada e manifesta uma tendência no sentido da maior centralização; 4º, o recrutamento se faz por concurso, exames ou títulos, o que exige dos candidatos uma formação especializada. Em geral, o funcionário é nomeado (raramente eleito) com base na livre seleção e por contrato; 5º, a remuneração regular do funcionário sob a forma de um salário fixo e de uma aposentadoria quando ele deixa o serviço público (...) 6º, o direito que tem a autoridade de controlar o trabalho de seus subordinados, eventualmente pela instituição de uma comissão de disciplina; 7º, a possibilidade de promoção dos funcionários com base em critérios objetivos e não segundo o livre arbítrio da autoridade; 8º, a separação completa entre a função e o homem que a ocupa, pois nenhum funcionário poderia ser dono de seu cargo ou dos meios da administração (p. 170-171).

Em seguida, do século XIX em diante, durante todo o século XX, outros itens foram sendo agregados aos modelos ideais de controle e de aprofundamento (controle social) do processo político; além das óbvias regras do jogo “...que se caracterizam pela rotatividade do poder, pelo sufrágio universal, pelo respeito às decisões da maioria, pela defesa dos direitos da minoria...” (Rosenfield, 1992, p. 32). Ou ainda seguindo as famosas regras democráticas: voto livre e secreto, legitimidade do poder, periodicidade eleitoral (Bobbio, 1986). Do mesmo modo, também há o Estado de Direito lastreado por regras pétreas que configuravam o modelo desde o século XIX: 1) prevalência dos direitos fundamentais; 2) império da lei; 3) separação de poderes (Canotilho, 1999). Nos anos de 1970, na Espanha e em Portugal floresceu um codinome de Estado de Direito Social, ou seja, uma adjetivação de conteúdo para um Direito que não seria indiferente às demandas da sociedade. Sem dúvida, um marco foi a chamada Revolução dos Cravos, em Portugal. Não seria uma construção teórica ou retórica de acadêmicos ou de juristas, uma vez que corresponderia à desconstrução tardia do Estado Fascista: uma fórmula jurídica preenchida de poder social[168].

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Assim, sob a regência do Estado Democrático de Direito, vieram somar-se outras regras, como as garantias institucionais: ato jurídico perfeito; coisa julgada e direito adquirido (CR, art. 5º, XXXVI). Também é perceptível o que se vê nas condições da ação: a) interesse processual ou de agir; b) legitimidade das partes; c) possibilidade jurídica do pedido. Por fim, ainda citam-se os negócios jurídicos regulados pelo ordenamento jurídico, mas tornados forma por meio da coerção legal. A validade do negócio jurídico requer: I - agente capaz; II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável; III - forma prescrita ou não defesa em lei. Atualizando-se o debate, como preparativos, pode-se dizer que, historicamente, o direito moderno é resultado da luta política e, nesse sentido, sempre houve judicialização da política. A conquista de direitos pelo povo implica na contenção do Poder Político, com a ressalva de que a politização do Judiciário, por demais óbvia, destitui essas regras; uma vez que não há poder – a começar do Poder Judiciário – em que não se manifestem vivamente os interesses políticos[169]. A observância das regras, no entanto, deveria evitar o “culto à personalidade”, a síndrome do pequeno poder, bem como o corpo administrativo não deveria gerar formas de poder pessoal ou se alimentar de um regime de castas. Portanto, se esses instrumentos e/ou garantias do Direito são eficientes, pode-se deduzir que o Direito pode conduzir, como sociedade, em direção à Justiça Social?

Bobbio: poder ex principis

Norberto Bobbio pretende elaborar uma Teoria Geral da Política sem especialização doutrinária, utilizando-se do direito, da política, da filosofia e da história das ideias. Quanto à teoria geral, talvez o faça no conjunto da obra e não em um livro isolado (2000). Quanto à perspectiva doutrinária, e se aqui se subentende neutralidade ideológica, pode-se dizer que escapa à doutrinação partidária. Mas, não se furta à ideologia propriamente dita. Basta pensar que a política responde ao realismo e que ao direito cabem, ao menos, umas 70 boas e legítimas interpretações; além das amarras dos Grupos Hegemônicos de Poder atuantes nos três poderes. Entretanto, como professor, Bobbio (2014) encaminha para o sentido reto e direto (direito = directum) ao preconizar o retorno aos clássicos – e sem perder os nexos necessários entre a política e o social. Trabalha com binômios porque, em seu método, um polo joga luz sobre o outro. Produz-se, então, uma particular forma de abordagem da modernidade em que o passado dos clássicos pode ainda iluminar os tempos contemporâneos. Nesse contexto, a política terá destaque como ciência e história. Também o Estado e a organização social precisam ser vistos sem dogmatismos e partidarização.

Do realismo da exceção

Os termos atuam, assim, como negação: autonomia versus heteronomia (autocracia). Em abordagem particular, deve-se acrescer o Estado de Exceção (Agamben, 2004) em confronto ao reconhecimento: liberdade, igualdade, fraternidade. O Estado, por exemplo, será analisado a partir de critérios jurídicos e políticos: ordenamento jurídico e poder soberano. No embate do século XXI, a democracia lidaria com um poder invisível: autocracia. Do mesmo modo, os termos antitéticos são fortes (público) ou fracos: o privado é o não-público. Do que decorreria o Princípio do Primado do Público sobre o Privado e a própria definição de coisa pública. E daí ao sentido de igualdade (isonomia) e de desigualdade entre os cidadãos. O que também implica na distinção entre detentores do poder de comando e destinatários do dever de obediência. O patrimonialismo[170], por exemplo, seria uma deformação do modelo entre as “sociedades dos iguais”; pois, a cidade, a Polis, seria governada por uma família e por valores privatistas[171]. O que, por fim, remete à distinção entre sociedade política e estado de natureza. Nesse ponto, o método já apresenta um de seus problemas: como verificar a insurgência ou presença constante da forma-Estado de Exceção?

Nesse momento, diga-se que o Estado de Exceção remete a uma modalidade de poder absolutista e faz uso recorrente da alegação de ameaças inerentes do estado de natureza: caos, entropia social, luta de classes, desordem, guerra civil, terrorismo, ameaça externa de soberania de conquista. Outra alegação típica se refere ao sobrepeso exercido pela sociedade civil (economia) sobre o Poder Político. Nesse ponto, a luta de classes será aventada como justificação ao uso/abusivo da força e ainda que isso seja dito por outras palavras. No caos da luta pelo poder, a oposição – mas, arrisca-se a dizer que a situação também – recorre judicialmente a Cícero: Lei (senatus consultus e foedus: direito internacional) e Contrato (stipulatio: acordos bilaterais). A lei é imposta pelo soberano, que a reforça (obriga) por meio da coerção. O direito dos privados – e que é a negação do público – decorre de normas aceitas pelos singulares de uma relação recíproca: naturaliter. No que consiste (judicialmente) a naturalização do poder de domínio e de dominação[172].

Diante dessa naturalização do contrato de poder, no Estado de Exceção, o direito público (voluntas superioris) é invocado como se fora remanescente do direito natural (direito à vida) que se projeta sobre o estado de natureza da política. Com a coerção imposta pelo Poder Político (soberano), o direito natural – como contrato que deve superar o estado de natureza – converte-se em direito positivo. O resultado implica caminho óbvio: da naturalização da força (estado de natureza) à positivação necessária ao Estado de Emergência[173], quer seja natural, ambiental, quer seja social ou político. A justiça comutativa – um crime/uma pena – interpõe-se sobre a justiça distributiva: a cada um, segundo suas necessidades. A distribuição da justiça, por tal modalidade de poder destaca que a relação entre o Todo e as partes é somente penalizadora, constrangedora de direitos[174]. Assim, como herança do direito romano, o direito privado dá o ritmo na condução do Poder Político: família, propriedade, contrato, testamento. Não estaria distante da concepção de Engels (1984). Nessa sequência, constitui-se como direito da razão, independente da origem e do tempo em que fora elaborado – e no que também corresponde à ideação de um suposto Contrato Social, a partir dos clássicos do contratualismo. A validade é atestada pela suposta universalidade jurídica e por sua extemporaneidade. Ou seja, o direito privado ou a força do contrato bilateral são provocados enquanto summa/Direito (potestas) e o direito privado se convertem em Macht. Tal força imperativa fora apontada por Benjamin (2013)[175], mas vale para quem toma Marx (1978) de empréstimo ou é ainda mais evidente em Durkheim (1999).

Sob o contrato privado convertido em Contrato Social, em Kelsen (1998), o direito privado converte-se em direito tout court (Bobbio, 2014, p. 22). O direito público – que não o é, por essência da privatização do juízo – incorpora meras relações de poder e é altissonante ao contratualismo do direito privado. Por exemplo, os compêndios de direito público, a partir de Jellineck (2000), são doutrinas ou Teoria Geral do Estado. Além de não se prenderem à argumentação jurídica – a bem de uma definição jurídica do próprio Poder Político – ainda subsumem o direito à política de Estado. Nessa conversão do contrato (privatizado) ao Contrato Social, o dominium – poder patriarcal/patrimonial[176] sobre o Estado – ressurge como imperium: poder de opressão da máquina pública. A autonomia, desse modo, será sacrificada com o fim da isonomia; posto que não há igualdade/liberdade entre desiguais. Direito e poder, desse modo, são antinomias, mas não da autocracia. Na reação entre desiguais prevalece o mais forte, o de maior capacidade de impor sua vontade de direito privado. O primado do público sobre o privado, que remontaria à Polis, por fim, expressa-se agora como a máxima intervenção do Poder Político a fim de se assegurar a concentração do poder (capital) e para garantir que os dissidentes recebam o impacto do poder heterônomo. Beneficiam-se o Estado de Exceção e as relações políticas de tipo contratual – entre proprietários e Poder Político. O que, em Weber (1979), resultaria na forma Estado territorial e burocrática[177]. Há, portanto, na sociedade de massas, controlada por meios de exceção, um decréscimo político na capacidade de o cidadão atuar com independência e consciência (Bobbio, 2014, p. 26).

Assim, sob o moderno Estado de Exceção – na variante nacional da Ditadura Inconstitucional[178] – encontram-se e se complementam tanto a publicização do privado (não há mais privacidade) quanto à privatização do público: bonapartismo (Marx, 1978) que assegura a segurança pública do capital dominante. Os arcana imperii – o público que é mantido como privado – tornam-se regra prioritária, quando deveriam ser um remédio excepcional. A segurança nacional invocará tal poder absoluto, mantido em secretismo, e daí retirará os argumentos para sua validação (Bobbio, 2014, p. 28-29). O drama político decorre do fato de que é dessas câmaras ocultas do poder que advirão as tramas de contrapoder: arcana seditionis. Hoje, em termos e em tempos de redes sociais as tramas ainda se revestem de conteúdo privado (intimidade) exposto publicamente. Desde os teóricos da Razão de Estado a ideologia sob a mídia prefigura-se como “mentira lícita”. Outrossim, a memorização eletrônica de dados pessoais e institucionais instiga à publicização do privado nas sociedades de controle[179]. No outro sentido da Tradição do Estado de Direito, Jellineck (2000) definiu a sociedade civil como conjunto de relações não regulado pelo Estado. E, como se vê, não deu frutos. Tal conjunto não regulado de relações evidentemente políticas, por sua vez, impressiona pelo grau de entropia e, assim, autoriza o Estado de Exceção a validar uma justificativa sistêmica e jurídica a partir da naturalização/normatização do estado de natureza hobbesiano. Justifica-se, portanto, a segurança nacional com o emprego crescente da violência institucional: física, simbólica, jurídica.

Nesse sentido, a sociedade burguesa e o Estado Capitalista derivaram uma forma de regime político despótico, sob a cultura de exceção que (re)produz indivíduos egoístas. Diferentemente dos postulados idealistas, há um Poder Político voltado para dentro (cesarismo) ou para fora (bonapartismo[180]). A manutenção interna e externa do poder é íntima aliada da soberania de conquista. De todo modo, o egoísmo/consumismo da vida real que justifica as ações de soberania de conquista do Império não é inovadora; pois, ainda que Locke (1994) aponte a necessária divisão entre os poderes, o cesarismo é inerente à sustentação dos interesses da propriedade privada (Bobbio, 2014, p. 44). Do conceito aristotélico de política, chega-se à negação do Político, à não-política; da vita activa (Arendt, 1991) à alienação de si. A máquina política de Hobbes (1983), portanto, mostra-se dominada por mecanismos controlativos de poder[181]. No mesmo sentido, se, desde Maquiavel (1979) o Estado Moderno foi tido como Estado Máquina que deveria regular ou ajustar a concentração de poder, na prática, sucumbiu ao capital: ao poder de fora das instâncias do próprio Poder Político. Os clássicos, portanto, precisam ser revistos, mas com os cuidados/exigências da contemporaneidade.

Retorno ao passado/presente

O filósofo italiano do direito recorre às fontes tradicionais de estudo do Estado que são as histórias das instituições políticas e das doutrinas políticas. Porém, hoje dever-se-ia incluir a história da tipologia dos meios de exceção. Como resultado, o modelo doutrinário elaborado pelo funcionalismo indicaria a justificativa para os protótipos da exceção, visto que o sistema social só persevera, preservando-se; e para tanto, os fins justificam os meios (Bobbio, 2014, p.58-59). A exceção seria uma resposta do sistema às demandas por mais poder, talvez ainda mais pressionado pelos grupos não-legitimados pelo sistema. Em essência, o sistema político-jurídico é regulado, quando deveria ser regulador de outros sistemas: um retorno à fórmula do poder ex parte principis (Bobbio, 2014, p. 63). Volta-se ao tema da Filosofia Política e que dominou tanto o Estado Absolutista quanto o direito de insurreição.

Na origem do debate, encontra-se Maquiavel como precursor da Ciência Política e da Ciência do Estado ao se apropriar e promover a transformação do termo status (situação política) em stato (condição do poder); de gênero (civitas) para espécie (Poder Político). O Estado surgiu, então, associado ao domínio da máxima concentração de poder. O “novo” nome se devia à necessidade de se expressar o poder dominante. A Ciência Política nascera com o próprio Estado Moderno e, com ele, fixar-se-ia o objeto da pesquisa. Pelo ângulo do realismo político, a Razão de Estado é o poder ex parte principis, seja o Poder Corporativo (do capital) seja o Poder Político regulado/arregimentado pelos Grupos Hegemônicos de Poder. Desde Weber (1979), como se sabe, o Estado Moderno se caracteriza pelo domínio/predomínio do direito e da burocracia que administram o monopólio (i)legítimo da força física[182].

Do que resulta que a exceção não é mais um dote do direito natural ou não se restringe ao poder pessoal; mas sim sistêmico. Desse ângulo da abordagem, a continuidade do elemento força/coerção se refaz no Estado de Direito e com isso a Razão de Estado encontra outras formas de validação; legitimidade constitucional e, em no caso, em 2016, ilegalidade inconstitucional[183]. A exceção (como meio/fim) satisfaz e sustenta o Estado: o fim em si mesmo. No tocante ao monopólio da coerção, a “racionalidade quanto aos fins” apodera-se da prudência que deveria ocupar espaços institucionais promovidos pela “ética da responsabilidade”[184]. Para aqueles que o poder vê como significativos permanecem válidos os postulados do próprio Estado Antigo: manutenção da paz e exercício da justiça. No entanto, são válidos para todos que são alcançáveis pelo direito privado, ou seja, os que têm força e competência para firmar e gerir contratos. Também está em vigor a Teoria da Soberania; qual seja a capacidade (potência do poder único) de editar leis sem autorização (autokrates). De Rousseau (1987) a Engels (1984), o Estado é definido pela passagem da organização coletiva à propriedade privada – do que decorre o sentido negativo atribuído à civilização. Enfim, se o Estado é summa potestas, a exceção advinda do direito privado é seu guia[185].

Kratos e Arché estavam no passado, como estão no presente. Por isso, a Teoria Política deveria estudar e exceção. Só a exceção – como poder absoluto (e ainda que sem todas as vestes absolutistas, propriamente ditas) – pode combinar as teorias fundamentais do poder; articulando-as ao direito regressivo e repressivo. Desse conjunto articulado se impõe o poder jurídico no breve século XXI. Por fim, nesse item, vale dizer, o que distingue o Poder Político dos outros tipos de poder é a condição de ser summa potestas e é isso o que define o poder de exceção: a exceção é o núcleo (não exatamente o objeto) do Poder Político. Afinal, soberano é quem detém o controle sobre os meios de exceção (Schmitt, 2006), unificando-se as duas potestades do absolutismo num só comando: vis directiva e vis coactiva. Ideologia e coerção: extrema ratio (prima ratio) e ultima ratio. Trata-se do direito exclusivo de usar a força, legitimando-se (juridicamente) a conquista, posse e propriedade, do território e dos povos. O Poder Político segue soberano e perpétuo: infinito no tempo da razão de quem o monopoliza. Bem como a exceção será exclusividade do verdadeiro soberano e que não é povo.

Habermas e o direito

Habermas é contra o “golpe branco”[186] e acusa a Ditadura Inconstitucional[187] que se mantém no país. Trata-se de uma análise de fatos e de direito. Como se sabe, o alemão Jürgen Habermas – se não tanto por suas teses e mais pelo vigor cognitivo – é considerado como o maior filósofo vivo. Uma discordância de fundo – salvo exceções que ver-se-á no texto –, revela que Habermas (1997) ao tratar do direito reservou linhas esparsas à exceção (Agamben, 2004) e ao antidireito que a gera (Filho, 2002). O que talvez se explique pelo fato de se ter fixado muito mais em Kant (2003) e em Parsons (1977), do que em Hannah Arendt (1991) – ou no Rousseau do Contrato Social (1987) e não no Rousseau do Discurso sobre a Desigualdade (1988). Seja como for, permite que a avaliação de neocontratualista incorpore mais elementos liberais e republicanos, do que democráticos e socialistas.

Entre a República e a Razão de Estado

Para o filósofo, há uma diferença sutil, fina, entre a ideia fria, imóvel, quase autocrática, sectária ou ortodoxa de sistema e, ao contrário disso, do Estado Democrático de Direito; diferença que é, exatamente, sua abertura para o futuro (Habermas, 2003, p. 165). Em seguida, mais do que tomar de um exemplo estadunidense, Habermas (2003, p. 166) acentuará que uma das formas notáveis de se aprender com os clássicos é resgatar o sentido, chamado de originário, de República ou de virtus (Martinez, 2014). O ideal da República, nesse caso, é interessante porque é subjacente à necessidade da apreensão, como “Luta por Conservação da Virtus Republicana”, e ainda que ocorram mudanças sociais e sistêmicas. E é interessante como se torna uma constante no texto de Habermas essa perspectiva de se tomar o passado (“no mesmo barco”) como a pleura da conservação de uma forma de vida, da virtus republicana, agora afirmada como “virtude estendida” (Habermas, 2003, p. 167).

Do Estado Democrático de Direito

Em todo caso, o vigor com que defende o Estado Democrático de Direito e o direito daí nascente tem a pujança de poucos. Pode-se dizer que está alinhado – em força comunicativa de seu conceitual – a outro alemão, Peter Häberle (2008). Como se vê na construção que elabora acerca dos direitos fundamentais.

(i) Direitos fundamentais (de conteúdo concreto variável), que resultam da configuração autônoma do direito, que prevê a maior medida possível de liberdades subjetivas de ação para cada um. (ii) Direitos fundamentais (de conteúdo concreto variável), que resultam da configuração autônoma do status de membro de uma associação livre de parceiros do direito. (iii) Direitos fundamentais (de conteúdo concreto variável), que resultam da configuração autônoma do igual direito de proteção individual, portanto da reclamabilidade de direitos subjetivos [...] (iv) Direitos fundamentais (de conteúdo concreto variável), que resultam da configuração autônoma do direito para uma participação, em igualdade de condições, na legislação política (Habermas, 2003b, p. 167).

Mas está bem distante, no ineditismo e na vontade inaugural de provocar a Justiça Social, do espanhol Pablo Lucas Verdú (2007) e do português Canotilho (s/d). O medium-direito precisa ser entendido como parte da luta do “mundo da vida” ao requerer/enfrentar o monopólio legislativo e coercitivo, em benefício da globalidade dos interesses sociais, exigindo-se muito mais legitimidade do que mera legalização[188]:

Por isso, tanto as regras morais, como as leis jurídicas, são ‘gerais’, em pelo menos dois sentidos. Em primeiro lugar, na medida em que se dirigem a muitos destinatários, não permitindo, pois, exceções[189]; em segundo lugar, porque excluem privilégios ou discriminações na aplicação (Habermas, 1997, p. 194 – grifo nosso).

Mais próximo de Arendt (1991) do que de Weber (1979), em Habermas o “poder comunicativo” exige uma legitimação democrática, consensual e constante, quando ocorre um encontro real e legítimo entre a “normatização discursiva do direito” e a própria “formação comunicativa do poder”. Se isso de fato ocorre, é porque aí se verifica a síntese do princípio democrático: “o procedimento democrático deve fundamentar a legitimidade do direito” (Habermas, 1997, p. 191). Trata-se de reestruturar o espaço público, agora não mais como extensão da esfera privada (Habermas, 2003b). A resistência à injustiça tanto é um direito do Estado – quando, por exemplo, se defende de atentados reais às igualmente reais e legítimas “instituições democráticas” – quanto é do povo, como direito pertencente ao mundo da vida.

É um direito do Estado – comunidade – frente ao uso injusto, em não-conformidade aos poderes públicos. Sua finalidade consiste em restabelecer o ordenamento fundamentado em um Estado social e democrático de Direito. É um direito que corresponde ao povo não como entidade inorgânica senão estruturada em virtude do pluralismo político (Verdú, 2000, pp. 153 – tradução livre).

No entanto, pensando-se como sociedade civil, é preciso ver o processo de universalização do medium-direito no contexto e sob o alcance do Estado de Exceção, porque aí a exceção já foi devidamente (legalmente) incluída (Agamben, 2004). Produz-se um antidireito específico que atenda aos interesses do Poder Corporativo[190]. O Estado de Exceção remete ao uso excessivo da força e, ainda que legalizado, tem por objetivo o mais amplo controle social (diante dos interesses hegemônicos dos grupos de poder dominantes[191]) por meio da deslegitimação de direitos fundamentais.

Do realismo político da Ditadura Inconstitucional

É certo que a política faz parte da cultura; porém, quando se refere à ampla articulação entre direito, grupos de poder, sociedade civil (em que se insere o mundo da vida) e sempre com o objetivo de “dominar o poder”, é natural que se verifique no Político uma forma especial de se manifestarem as relações humanas. Em relação ao Estado de Exceção, por exemplo, é muito difícil distinguir cultura (a que seria própria ao fascismo) e política: se por esta observarmos a inerente Razão de Estado como ultima ratio ou “última vontade dos reis”. Na prática do poder – muitas vezes entendido como cesarismo, em que novamente se reparte e distribui tons e subtons para a cultura fascista (Gramsci, 2000) – os direitos fundamentais são observados como impedimento ao poder e, desse modo, são consumidos pelo poder. Os direitos de terceira geração[192] (sobretudo, se vistos como propriamente Direitos da Humanidade) sofrem hoje de restrições veladas ou com mais afronta pelo mundo todo – no que é, certamente, mais um sério golpe contra o mundo da vida.

No caso do Brasil – que segue a esteira de Honduras (2009) e do Paraguai (2012) – é exatamente esse sentido de República que foi adotado como justificativa dos golpes, contragolpes e quarteladas. Para se precaver a Razão de Estado – confundida propositalmente, midiaticamente e judicialmente com o ideal republicano – justifica-se o impeachment presidencial em 2016. A extravagante leitura jurídica faz de seus corolários elementos e objetos ilegítimos, extrajudiciais e inconstitucionais – como é o caso evidente do assim chamado “conjunto da obra”. Do ponto de vista analítico, conceitual e não meramente retórico, as diferenças alegadas entre República e Razão de Estado são ainda mais gritantes. Ou seja, fazendo-se uso da força, procura-se preservar o monopólio do uso da força: a Razão de Estado poderia ser definida como o fim último da seguridade da ordem pública (internamente) e da soberania (nas relações internacionais). No entanto, equipara-se Razão de Estado ao Livro Razão.

Nenhum desses fenômenos extrajudiciais estava operante no andar do processo de impedimento. Bem como os argumentos jurídicos também não foram atendidos[193]. O que ainda permite recuperar o maior clássico da Ciência Política (citando Petrarca[194]) para afirmar que a quebra institucional é golpe: “Vertù contra furore / Prenderà l’arme, e fia ‘l combatter corto”[195] (Maquiavel, 1979, p. 94). Trata-se de um verso romano, do famoso poeta Petrarca e diz que a virtude da política, como virtù, depende da prudência e da inteligência como forma de controle da violência, do furor, dos "arroubos", do agir intempestivo. Em busca de uma mensagem humanista mais clara, dirá Maquiavel que a ganância e a soberba do poder incontrolado – os mesmos que se alimenta da vingança por meio de ações cruéis – são a porta do fracasso (Maquiavel, 1994). Desde os gregos clássicos e sua Polis a política é um valor humano intrínseco e, portanto, não apenas um instrumento do poder. Do modo como está posto – inclusive com a reprovação de Habermas – o golpe não perpetra a República, mas tão somente a Razão de Estado convertida em “a última razão dos reis” (Ribeiro, 1993). Nesse corolário da exceção que “coloniza” o Estado Democrático de Direito assistimos à consagração do antidireito que reveste a Ditadura Inconstitucional.

Por que temos uma Ditadura Inconstitucional?

Em duas demonstrações legislativas – além da tentativa de se tipificar como hediondo o assim chamado “crime de cristofobia” – pode ser observada a exceção: 1. Lei Antiterror que açodará os movimentos sociais, abrindo uma brecha legal para a criminalização, por exemplo, do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). 2. Séria investida contra as liberdades civis e os direitos fundamentais, bem como expressa autorização para um poder monocrático autoritário, no âmbito do Marco Civil (regulatório) da Internet. Sobre a regulamentação digital, o PL 215/2015 traz apensado o PL 1589/2015 – constando nesse a seguinte sugestão:

“Art. 7o Os §§ 1º e 2º do art. 10 da Lei no 12.965, de 23 de abril de 2014, passam a vigorar com a seguinte redação:

Art. 10 [...] § 1º O provedor responsável pela guarda somente será obrigado a disponibilizar os registros mencionados no caput, de forma autônoma ou associados a dados pessoais ou a outras informações que possam contribuir para a identificação do usuário ou do terminal, mediante ordem judicial ou requisição da autoridade competente, na forma do disposto na Seção IV deste Capítulo, respeitado o disposto no art. 7º [...].

Art. 13. A Lei no 12.965, de 23 de abril de 2014, passa a vigorar acrescida dos seguintes artigos:

Art. 23-A. A autoridade policial ou o Ministério Público, observado o disposto neste artigo, poderão requerer, ao responsável pela guarda, registros de conexão e registros de acesso a aplicações de internet, para instruir inquérito policial ou procedimento investigatório iniciados para apurar a prática de crimes contra a honra cometidos mediante conteúdo disponibilizado na Internet.

§ 1o O requerimento apenas será formulado se presentes fundados indícios da ocorrência do crime e quando a prova não puder ser feita por outros meios disponíveis, sob pena de nulidade da prova produzida”[196].

Qual é a autoridade competente, se não o juiz de direito? Quem determina a priori o que são fundados indícios? E se não forem indícios de autoria e de materialidade, e “vazarem” informações que só interessam à intimidade por ação desleixada ou proposital do Poder Público, ocasionando graves danos à imagem pública de inocentes? Não seria uma ameaça velada a qualquer usuário das redes sociais, em suposto risco aventado por autoridade competente? Não abriria brecha para manipulação política, em mãos interessadas – e após o vazamento de outras intimidades – provocando assim dano político irreversível? O potencial de dado da lei, portanto, é intolerável.

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Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Teorias do Estado: ditadura inconstitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5410, 24 abr. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65594. Acesso em: 25 abr. 2024.

Mais informações

O presente trabalho é resultado de uma pesquisa de Pós-Doutorado em Ciências Políticas, realizada no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da UNESP/Marília, sob a supervisão de Marcos Del Roio, professor titular em Ciências Políticas pela mesma universidade.

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