Pacientes com doenças graves e doenças terminais não cometeram crimes em tempos de guerra declarada, o que precisa ser dito, para explicar o título do presente artigo. Vivemos em uma democracia representativa que implica num Estado Democrático e de Direito, em que situações de esvaziamento da dignidade da pessoa humana são expressamente proibidos pela ordem constitucional, a própria pena de morte, enquanto medida mais grave que o Estado poderia tomar contra uma pessoa, somente pode ser aplicada em tempos de guerra em graves crimes militares.
Mas não é só! Se nem o Estado pode deliberar sobre quem vive e quem morre, o que não se dirá de entidades particulares, como se dá com operadoras de plano de saúde e hospitais particulares? Aliás, pela regra, eles continuam, salvo no caso da autogestão, realizando relações de consumo que se interpretam favoravelmente em favor dos consumidores, sobretudo os hipossuficientes.
Vai daí que alguns desses estabelecimentos, como se observa pela práxis da vida forense, têm forçado altas clínicas de pacientes terminais, sob o argumento de que nada mais poderia ser feito em relação aos mesmos, deixando-os liberados para morrerem em suas casas – sem terem cometido crime, sem estarmos em tempos de guerra, sem que sejam militares, sem processo, aplicando a essas pessoas o degradante tratamento que seria dispensado em uma pena de morte, em conduta grave, que tem consequências criminais, e autoriza denúncias na ANS (que poderá aplicar penas administrativas) e mesmo indenizações.
Se nem por vontade própria do paciente se autoriza a eutanásia (nesse sentido STF HC 104963), o que não se dirá da morte forçada – mesmo que o corpo médico conclua que a doença não tem cura e a pessoa estará à beira da morte, não se poderá abreviar o tempo de vida do paciente, ainda mais contra a sua vontade – ao contrário, a Súmula nº 302 STJ estabelece serem indevidas cláusulas restritivas de tempo de internação, sendo certo que, se houver liberação por alta hospitalar, deverá ser assegurado o acesso a home care e aos medicamentos, ainda que de alto custo, necessários à garantia da dignidade humana do paciente.
Sobre a questão, o quanto apontado pelo TJSP no julgamento da apelação nº 0025670-69.2011.8.26.0482, com a seguinte ementa:
PLANO DE SAÚDE – INTERNAÇÃO HOSPITALAR – UTI – COBERTURA DEVIDA - A internação hospitalar não pode sofrer limitação temporal – Indicação médica – Cessação do tratamento somente mediante alta médica – Cobertura médica básica obrigatória - Art. 12, II, a da Lei 9.656/98, Súmula 302 do STJ e 92 do TJSP – Sentença de procedência – Recurso improvido.
E não se perca de vista que o artigo 4º CDC estabelece que o objetivo da Política Nacional de Relações de Consumo deve ser o atendimento às necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria de sua qualidade de vida, bem como, a transparência e harmonia das relações de consumo. E é expresso no inciso I sobre a necessidade de observância do princípio da vulnerabilidade do consumidor, demonstrando ser este a parte mais frágil na relação de consumo.
Cláusulas que limitem a permanência do consumidor internado (e há que se fazer prova de uma alta forçada, não se esquecendo a família de que o prontuário médico pode ser solicitado e que há direito às razões escritas da alta médica para demonstrar o abuso – e todo ato com abuso de direito se revela como ato ilícito nos termos do artigo 187 CC, o que se aplica aos planos de saúde e hospitais particulares).
Ademais, tenho asseverado que conversas podem ser gravadas para servirem como meio de prova em juízo (não poderão sê-lo para serem lançadas em plataformas ou em violação do direito de imagem), ou seja, com cautelas, participando o interlocutor que grava da conversa gravada, apenas para que seja a conversa utilizada em processo judicial, não parece haver ilicitude na prova.
Aliás, o art. 122 do Código Civil proibe a existência de condições que privem o ato de todo efeito, ou o sujeitem ao arbítrio de uma das partes, o que impede tentativas contratuais de tentar limitar a permanência de pacientes em certas condições como UTIs, ou mesmo internações comuns, mesmo quando se sabe que o paciente não será curado e não tem perspectiva de alta.
Os contratos de plano de saúde, como o analisado na hipótese, caracterizam-se como contratos de trato sucessivo de longa duração, renováveis automaticamente e que, desta forma, passam a ser regidos pela legislação editada após sua celebração.
Assim, aplicam-se ao contrato as disposições do artigo 12 da Lei 9.656/98: “São facultadas a oferta, a contratação e a vigência dos produtos de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1o desta Lei, nas segmentações previstas nos incisos I a IV deste artigo, respeitadas as respectivas amplitudes de cobertura definidas no plano-referência de que trata o art. 10, segundo as seguintes exigências mínimas: II - quando incluir internação hospitalar: a) cobertura de internações hospitalares, vedada a limitação de prazo, valor máximo e quantidade , em clínicas básicas e especializadas, reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina, admitindo-se a exclusão dos procedimentos obstétricos; (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.177-44, de 2001)” destaquei em negrito.
Esse, repita-se, é o entendimento sumulado pela E. Superior Tribunal de Justiça: "Súmula 302. É abusiva a cláusula contratual de plano de saúde que limita no tempo a internação hospitalar do segurado". No mesmo sentido a Súmula 92 do TJSP: “É abusiva a cláusula contratual de plano de saúde que limita o tempo de internação do segurado ou usuário (Súmula 302 do Superior Tribunal de Justiça)”.
De igual modo, o Superior Tribunal de Justiça tem firmado o entendimento no sentido de que são abusivas cláusulas que limitem ou impeçam o acesso ao home care (mínimo possível de conforto e segurança para um paciente em estágio terminal). Sobre a questão:
STJ - AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL AgInt no AREsp 1185766 MS 2017/0264853-4 (STJ) Data de publicação: 18/06/2018 ATENDIMENTO MÉDICO DOMICILIAR. CONVERSÃO. POSSIBILIDADE. HOME CARE. CLÁUSULA CONTRATUAL OBSTATIVA. ABUSIVIDADE. 1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ). 2. A Segunda Seção desta Corte Superior consagrou o entendimento de não se aplicar o Código de Defesa do Consumidor ao contrato de plano de saúde administrado por entidade de autogestão, haja vista a inexistência de relação de consumo (Súmula nº 608/STJ). 3. É abusiva a cláusula contratual que veda a internação domiciliar como alternativa à internação hospitalar, visto que, da natureza do negócio firmado (arts. 423 e 424 do CC ), há situações em que tal procedimento é altamente necessário para a recuperação do paciente sem comprometer o equilíbrio financeiro do plano considerado coletivamente. 4. Agravo interno não provido.
De igual modo, tem-se que, não se pode pretender que o paciente usufrua gratuitamente quando o plano não tem cobertura específica para a doença, mas, se a vem tratando regularmente é porque o paciente tem a cobertura, isso é óbvio e intuitivo.
Mas, mesmo que assim não o fosse, o que se admite por mero apego ao debate e amor à dialética, apenas e tão somente visando atingir o convencimento do leitor, não se poderia deixar de consignar que o advento da norma contida no artigo 35-C da Lei nº 9.656/98 (lei que disciplina expressamente os planos privados de saúde privada) que expressamente dispõe:
Art. 35-C. É obrigatória a cobertura do atendimento nos casos: I - de emergência, como tal definidos os que implicarem risco imediato de vida ou de lesões irreparáveis para o paciente, caracterizado em declaração do médico assistente.
Ou seja, mesmo sem cobertura expressa, se constatada doença não coberta por trás do quadro de saúde do paciente, há que se consignar que o mesmo deverá ficar sob tratamento enquanto estiver em situação de emergência de seu quadro e, quando muito, deverá ser transferido, mediante existência de vagas, para um nosocômio público.
Do contrário estaria autorizada a monetarização da vida humana que é, em sua essência, imponderável. Ainda que o plano conclua ser mais barato arriscar pagar indenização por danos morais, anos após o fato (infelizmente podem ser feitos cálculos atuariais em relação a tanto, não se podendo deixar de apontar que operadoras que visam o lucro possam pensar nesse tipo de expediente), ainda assim, a conduta não perderá o seu aspecto criminal, se demonstrada, o que vale de alerta (há vários crimes possíveis de serem caracterizados, tais como homicídio, a depender das circunstâncias, doloso qualificado, por meio cruel por exemplo, ou mesmo omissão de socorro e até o crime hediondo de tortura, com possibilidade de se reconhecer coautoria em caso de concurso de pessoas para a sua realização).
No âmbito indenizatório, todos aqueles que concorrerem para a ocorrência do dano se tornarão solidariamente responsáveis pela composição do resultado nos termos do advento da norma contida no artigo 942 CC, ainda mais porque, em se tratando de relação de consumo, os fornecedores e aqueles com eles ajustados se tornam solidariamente ligados nos termos da lei (artigos 7º e 17 CDC e 265 CC).