Resumo: A crise mundial do coronavírus exigiu uma atuação emergente dos Estados para promover a saúde pública, manter a economia e garantir os serviços públicos. Para tanto, as medidas adotadas para o enfrentamento da atual situação de emergência trouxeram significativas consequências para o sistema jurídico penal, aumentando algumas práticas delitivas e fazendo emergir condutas até então olvidadas pelo Direito Penal. Em outras palavras, desencadeou alguns fenômenos criminológicos que devem ser observados no atual contexto de excepcionalidade. Assim, utilizando-se da revisão bibliográfica e das informações postas nas redes de comunicação, consignam-se, na presente pesquisa, as principais mutações delitivas resultante das medidas sanitárias de combate à Covid-19, analisando as causas e os efeitos do ponto de vista criminológico.
Palavras chaves: Coronavírus. Fenômenos criminológicos. Medidas sanitárias. Criminologia.
Sumário: Introdução. 1. Violência domestica e familiar. 2. Crimes Cibernéticos. 3. Crimes de Licitação e Contra a Administração pública. 4. Dos Crimes contra a Saúde pública. Considerações finais. Referências.
Introdução
Identificada pela primeira vez em Wuhan, na China, em meados do mês de dezembro de 2019, o novo coronavírus (Covid-19), assim batizado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e declarado em março de 2020 como surto pandêmico, trouxe significativas mudanças nos diversos segmentos sociais. Em outros termos, colapsou as estruturas globais socioeconômicas, politicas e culturais.
Pois bem. Dormimos em um mundo e acordamos em outro. Pânico, máscaras, higienização do corpo e residência passaram a fazer parte do nosso cotidiano. O home office virou regra e o isolamento social uma virtude, pois a interação interpessoal leva ao risco do contágio. (SCHULTZ, 2020).
Reflexo do estado de excepcionalidade também são vistos no sistema jurídico penal, com o desencadeamento de fenômenos criminológicos que nos levam à necessidade de compreender suas causas e consequências.
1 Violência doméstica e familiar
Desdobramentos do isolamento social, como medida para enfrentamento da pandemia de Covid-19, é o aumento exponencial das ocorrências de violência doméstica contra mulheres, crianças, adolescentes e idosos. “[...] O confinamento obriga vítimas a conviverem com seus agressores por longos períodos. E uma característica marcante da violência doméstica e familiar contra mulheres é o fato de ela ser perpetrada principalmente por pessoas com as quais as vítimas mantêm relacionamentos íntimos. Problemas econômicos causados pela redução da renda auferida e o aumento do consumo de álcool no período de isolamento social estão entre possíveis gatilhos para agressões”. (OMV, 2020).
Numa sociedade culturalmente machista (patriarcal), é normal o homem considerar o espaço privado como um ambiente de dominação, exercendo seu poder familiar, que não muito difícil se configura na diminuição, rejeição, agressão física ou verbal de sua companheira e/ou filhos, que se veem acuados na invisibilidade de seus lares. (SABADELL, 2020).
No Estado de São Paulo, o aumento dos feminicídios chegou à 46% na comparação de março de 2020 com março de 2019; no Acre, o crescimento foi de 67% no período e, no Rio Grande do Norte, o número triplicou em março de 2020. Quanto aos registros de emergência na central de atendimento 190, apontam a mesma tendência: crescimento foi de 2% no Acre na comparação entre março de 2020 e março de 2019, e crescimento de 45% em São Paulo no mesmo período. Já a pesquisa em redes sociais mostrou aumento significativo de 431% nas menções de episódios de violência doméstica em rede social (Twitter) entre fevereiro e abril de 2020. (FBSP, 2020).
Nessa esteira, no Estado do Paraná, os casos de violência doméstica aumentaram 8,5% no primeiro trimestre de 2020, em comparação ao mesmo período do ano passado. Nos três primeiros meses de 2019, foram 13.807 casos; já neste ano, o número subiu para 14.807 casos no Estado[1].
Destaca-se a globalização desse fenômeno. As primeiras notícias sobre violência doméstica em decorrência da pandemia da Covid-19 vieram da China; após, houve notícias nas mídias sociais sobre o aumento de casos de violência doméstica e familiar contra mulheres em outros países que adotaram medidas de isolamento social, tais como Itália, França, Portugal, Inglaterra, Estados Unidos, Canadá, etc. (PASINATO E COLARES, 2020). A notoriedade do tema foi levada em consideração pela Organização das Nações Unidas (ONU), que emitiu um alerta para aumento da violência doméstica em meio à pandemia do Coronavírus: “Para prevenir e combater à violência de gênero durante a pandemia, a ONU recomenda aos países aumentar o investimento em serviços online e em organizações da sociedade civil; garantir que os sistemas judiciais continuem processando os agressores; estabelecer sistemas de alerta de emergência em farmácias e mercados”. (NAÇÕES UNIDAS, 2020).
Diante desse contexto, embora as medidas de distanciamento social sejam imprescindíveis para a contenção da pandemia de Covid-19, vislumbra-se o aumento da violência doméstica na proporção do avanço do surto epidemiológico, circunstância essa que, numa ótica político-criminal, deve ser discutida para se estabelecer medidas de enfrentamento e controle.
2 Crimes Cibernéticos
Sabe-se que, historicamente, situações de ruptura social decorrentes de crises econômicas, políticas ou sanitárias, trazem consequências significativas à sociedade, dentre as quais: perda de bens, mudanças forçadas, temor, insegurança, doenças, etc. Nesse contexto, em razão das medidas sanitárias de combate à Covid-19, desenvolveram-se outras práticas criminosas, até então não muito populares, a exemplo os crimes cibernéticos.
No Brasil, o uso da internet cresceu durante a quarentena, o aumento foi entre 40% e 50%, conforme dados da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). “Criminosos percebendo o uso massivo da rede mundial de computadores por grande parte da população mundial procuraram, rapidamente, adaptar-se à nova realidade para cometer fraudes eletrônicas, aproveitando-se do estado de medo e ansiedade que a pandemia e a necessidade de isolamento causam as pessoas”. (MARTINS, 2020).
Em uma busca simplificada nos canais de informação, angaria-se varias notícias do aumento dessa modalidade de crime. No Paraná, por exemplo, dados disponibilizados pelo Núcleo de Combate aos Cibercrimes (Nuciber) da Polícia Civil mostram que, no primeiro trimestre deste ano, houve aumento de 21,9% no registro de ocorrências desse tipo[2]. Em Minas Gerais, os crimes virtuais aumentaram quase 50% segundo dados da Polícia Civil[3]. De acordo com a Secretaria de Segurança Pública de Rio Grande do Sul, mais de 1 milhão de golpes ou tentativas de golpes virtuais foram identificados, o estelionato cresceu 25% durante o isolamento social, em comparação com o mesmo período do ano passado[4].
Não diferente do fenômeno criminológico da violência doméstica, os cibercrimes tornaram-se uma preocupação a nível mundial, tanto que a Agência de Segurança Cibernética dos Estados Unidos (CISA) e o Centro Nacional de Segurança Cibernética (NCSC) do Reino Unido emitiram um alerta fornecendo informações sobre exploração por grupos de cibercriminosos e ameaças persistentes avançadas da atual pandemia global da doença de coronavírus (Covid-19). O uso crescente de temas relacionados ao Covid-19 por ciber-atores maliciosos e o aumento do teletrabalho, aumentou o uso de serviços potencialmente vulneráveis, como redes privadas virtuais, ampliando a ameaça para indivíduos e organizações. (CISA, 2020).
Dentre os golpes virtuais, o mais evidente é o estelionato, uma vez que o isolamento social exige forçosamente operações financeiras virtuais, com movimentações de valores, senhas, códigos e links, o que torna as pessoas vítimas em potencial do delito em questão. A conduta criminosa cinge-se nos mais variados golpes, como criação de páginas falsas de agências bancária e lojas, anúncios de promoções, crédito fácil ou ofertas, que, num primeiro olhar, instigam a vítima ao click. Outra modalidade é a extorsão praticada por intermédio de programas maliciosos, que permitem o acesso aos computadores e celulares das vítimas, sequestram dados, criptografam arquivos e, sob a ameaça de apagá-los ou divulgá-los na rede mundial de computadores, exigem o pagamento de um resgate. (MARTINS, 2020).
Além disso, abre-se um parêntese para algumas condutas cibercriminosas que vem ganhando destaque em meio à crise pandêmica, entre as quais: a Ciberpedofilia, Sextorsão e o Estupro virtual. A pedofilia, impulsionada pelo meio virtual, é uma espécie de conduta criminosa que aumentou significativamente em razão da pandemia da Covid-19. No mundo físico, a exploração sexual e o abuso infantil já são recorrentes, a disseminação de imagens e vídeos que expõem esse abuso martiriza ainda mais as vítimas. Com o fechamento das escolas, as crianças e adolescentes estão cada vez mais usando a Internet durante o período de isolamento, o que as tornam vítimas dos agressores sexuais. Segundo relatório do Serviço Europeu de Polícia (Europol, 2020), houve um aumento dramático na distribuição de material de abuso sexual infantil. Na “dark web”, durante o período de março a maio de 2020, o número de arquivos disponibilizados nos fóruns aumentou quase 50%, em alguns casos quase dobrou o volume de arquivos.
Nesse mesmo passo, a Sextorsão ou chantagem sexual caracterizada pela ameaça realizada por criminosos na publicação de imagens e/ou vídeos íntimos, onde se exige da vítima dinheiro ou outros bens para não divulgar o conteúdo, e o Estupro virtual onde a vítima é constrangida a praticar atos libidinosos mediante ameaças por meios virtuais, têm ganhado espaço devido à crise sanitária. Dados da ONG SaferNet mostram que as denúncias de violência e discriminação contra mulheres em sua Central Nacional de Crimes Cibernéticos cresceram 21,27%, em abril de 2020, em relação ao mesmo período no ano passado, com 667 registros. Nos casos de exposição de imagens íntimas houve um aumento de 154,90%, com 130 denúncias no último mês, das quais 70% das vítimas são mulheres[5].
Assim, observa-se a adaptação das práticas criminosas neste período de pandemia. O isolamento social faz crer que o lar é um ambiente seguro, todavia, entre as paredes somos expostos ao mundo virtual. Por óbvio que as redes sociais são válvulas de escape para a ansiedade, depressão, solidariedade e outros sentimentos que afloram em tempos de crise, e essa necessidade de se conectar e a socialização virtual expõem as pessoas, tornando-as vítimas de criminosos invisíveis.
3 Crimes de Licitação e Contra a Administração pública
Em situações excepcionais, como é o caso da pandemia causada pelo covid-19, a administração pública precisa adotar medidas urgentes na contratação e aquisição de materiais para enfrentamento das crises estabelecidas. Para tanto, com a publicação da Lei n.º 13.979/2020 (Lei do Coronavírus) houve a flexibilização dos trâmites e exigências nos procedimentos administrativos, com a hipótese temporária de dispensa de licitação para aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública. Com essa flexibilização, o terreno ficou fértil para a atuação de criminosos “disfarçados” de gestores públicos, que se utilizam desse subterfúgio para prática de fraudes.
No presente contexto, diversos gestores públicos, por meio de ajustes e acordos escusos, dispensam licitações para aquisição de equipamentos, medicamentos e serviços, com preços superfaturados, contratação de empresas “fantasmas”, vínculo entre servidores e empresas contratadas e retornos financeiros ilegais "propina". As práticas delitivas em evidência são os crimes de licitação previstos na Lei 8.666/1993 e os crimes contra a Administração Pública estipulados no atual Código Penal. (CANELAS, 2020).
Com objetivo de sufocar esses crimes, varias operações foram deflagradas pela Polícia Federal, Ministério Público e demais órgãos de fiscalização em alguns Estados brasileiros. Uma das principais investigações foi a aquisição de 3 mil respiradores da China, feita pelo Estado de São Paulo no valor de R$ 550 milhões, sendo repactuada em 1.280 respiradores ao custo total de R$ 261 milhões. Em Santa Catarina, investiga-se o superfaturamento na compra de 200 respiradores artificiais que, em conjunto, custaram R$ 33 milhões. No Rio de Janeiro, o atraso na entrega de hospitais de campanha no valor de R$ 770 milhões e o superfaturamento na encomenda de 50 respiradores no custou R$ 9,9 milhões, também são alvos de investigação. No Amapá, houve superfaturamento na compra de máscaras em 220%[6].
A elevação dos gastos públicos é necessária em razão da imediaticidade para enfrentamento da Pandemia. Contudo, os gastos emergenciais, sem o devido controle e fiscalização deram azo ao fenômeno criminológico aqui explanado. Portanto, além das medidas sanitárias, é necessário transparência na administração das finanças públicas para o combate à Covid-19.
Por fim, em termos de crise de saúde, esses delitos são exacerbadamente reprováveis, pois não há como mensurar o número de vítimas, uma vez que o bem jurídico tutelado é de natureza difusa. Para tanto, visando a desestimular tal conduta, tramita no Senado Federal o Projeto de Lei n°1871/2020, que pretende inserir no rol dos crimes hediondos alguns crimes contra a administração pública cometidos em ocasião de calamidade pública decretada.
4 Dos Crimes Contra a Saúde pública
Para promover a saúde pública, o Estado brasileiro publicou, em meados de fevereiro, a Lei nº 13.979/2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do Coronavírus. Nessa linha, Governos estaduais e municipais editaram decretos de isolamento social, suspensão de atividade dos comércios, suspensão de eventos públicos e privados, entre outros medidas para enfrentamento da atual crise.
Diante desse cenário, evidencia-se outro fenômeno criminológico, fruto da insistência em descumprir as medidas preventivas estipuladas pelo poder público, aqui caracterizados pelos crimes contra a saúde pública, dentre os quais: crimes de epidemia e infração de medida sanitária preventiva (Art. 267 e 268 do Código Penal).
Destaca-se, primeiramente, o ensinamento de Guilherme de Souza Nucci (2020) sobre o tema: “Na hipótese do Coronavírus, para que alguém cometa o crime de epidemia, seria preciso que, estando infectado, adentrasse região livre de contaminação, onde disseminaria o vírus de modo doloso (direto ou eventual) ou culposo (negligência, imprudência ou imperícia). Já o “art. 268 – infração de medida sanitária preventiva, este crime, diversamente da epidemia, é norma penal em branco e depende de complemento, vale dizer, do conhecimento de determinação do poder público exigindo isolamento (separação de doentes ou contaminados pelo Coronavírus), quarentena (restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de estarem contaminadas, mas não enfermas) ou outra medida, como a realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras clínicas, vacinação, entre outras”.
É evidente o fenômeno criminológico em questão. Em Recife, 12 pessoas foram detidas pelos crimes de desacato e infração de medida sanitária preventiva, ao tentar realizar uma carreata pedindo o fim das medidas de isolamento social, adotadas para conter a pandemia de Coronavírus[7]. Em Araraquara, Estado de São Paulo, uma mulher foi presa pela Guarda Civil Municipal e responderá pelo artigo 268 do Código Penal, após descumprir o decreto da prefeitura, que impede pessoas de caminhar pelas praças, devido à pandemia do Covid-19[8]. No Paraná, o Ministério Público (MP) abriu inquérito para investigar criminalmente uma médica veterinária diagnosticada com covid-19 que descumpriu a quarentena para ir a uma festa promovida por socialites com mais de 200 pessoas.
O descumprimento da quarentena fez a paciente ser enquadrada no artigo 267 do Código Penal, que é o crime de causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos[9]. No mesmo Estado, organizadores de balada clandestina em Curitiba serão indiciados, os suspeitos deverão responder por infração de medida sanitária no Juizado Especial Criminal[10]. Por fim, no extremo sul, um surfista foi preso em Torres, depois de desobedecer a ordem para deixar o Parque da Guarita, o local estava restrito ao uso como medida de prevenção por conta da pandemia de Coronavírus[11].
Observa-se que as ações aqui explanadas sequer configurariam condutas delituosas, todavia, a saúde pública, elevada a bem jurídico penal, deve ser assegurada pelo Estado, que, no atual contexto de pandemia, ao determinar as medidas sanitárias necessárias, ressuscitou as olvidadas práticas delituosas contra a saúde pública, as quais, sob o aspecto criminológico, caracteriza-se como um fenômeno criminal.