5. DIREITOS RECONHECIDOS AOS PAIS HOMOAFETIVOS
5.1. Dignidade da pessoa humana e igualdade
Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, que homenageia a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), a orientação sexual não mais é um entrave para diferenciar a espécie hominal. O Direito, como norma, não mais é o centro do sistema protetivo, mas sim é o Homem7 que deve merecer toda atenção justa da lei.
É por isso que a jurista de vanguarda Maria Berenice Dias (2007), brada imorredouramente que “enquanto houver tratamento desigualitário em razão do gênero e a homossexualidade for vista como crime, castigo ou pecado, não se estará vivendo em um Estado que respeita a dignidade humana, tendo a igualdade e a liberdade como princípios fundamentais.”
5.2. Reconhecimento da união estável pelo Supremo Tribunal Federal e suas consequências
Considerando a igualdade entre os humanos como norte para evitar a discriminação (Lei das Leis, art. 3º, IV) e, ainda, o respeito à dignidade da pessoa humana como a pedra fundamental de uma sociedade livre, justa e solidária – objetivo da República Federativa do Brasil (CF, art. 3º, I) – outra não poderia ter sido a louvável posição do Supremo Tribunal Federal, que reconheceu a união estável dos pares homoafetivos para todos os fins de direito, na ADPF nº 132-RJ.
Colhe-se excertos de votos dos eméritos ministros da Augusta Corte Constitucional Pátria:
a) Ministro Ayres Britto:
“ (...) Com o que este Plenário terá bem mais abrangentes possibilidades de, pela primeira vez no curso de sua longa história, apreciar o mérito dessa tão recorrente quanto intrinsecamente relevante controvérsia em torno da união estável entre pessoas do mesmo sexo, com todos os seus consectários jurídicos. Em suma, estamos a lidar com um tipo de dissenso judicial que reflete o fato histórico de que nada incomoda mais as pessoas do que a preferência sexual alheia, quando tal preferência já não corresponde ao padrão social da heterossexualidade. É a perene postura de reação conservadora aos que, nos insondáveis domínios do afeto, soltam por inteiro as amarras desse navio chamado coração. (...)
(...) Pedido de “interpretação conforme à Constituição” do dispositivo legal impugnado (art. 1.723. do Código Civil), porquanto nela mesma, Constituição, é que se encontram as decisivas respostas para o tratamento jurídico a ser conferido às uniões homoafetivas que se caracterizem por sua durabilidade, conhecimento do público (não-clandestinidade, portanto) e continuidade, além do propósito ou verdadeiro anseio de constituição de uma família. Ainda nesse ponto de partida da análise meritória da questão, calha anotar que o termo “homoafetividade”, aqui utilizado para identificar o vínculo de afeto e solidariedade entre os pares ou parceiros do mesmo sexo, não constava dos dicionários da língua portuguesa. O vocábulo foi cunhado pela vez primeira na obra “União Homossexual, o Preconceito e a Justiça”, da autoria da desembargadora aposentada e jurista Maria Berenice Dias, consoante a seguinte passagem: “Há palavras que carregam o estigma do preconceito. Assim, o afeto a pessoa do mesmo sexo chamava-se 'homossexualismo'. Reconhecida a inconveniência do sufixo 'ismo', que está ligado a doença, passou-se a falar em 'homossexualidade', que sinaliza um determinado jeito de ser. Tal mudança, no entanto, não foi suficiente para pôr fim ao repúdio social ao amor entre iguais” (Homoafetividade: um novo substantivo)”.
(...) Trata-se, isto sim, de um voluntário navegar por um rio sem margens fixas e sem outra embocadura que não seja a experimentação de um novo a dois que se alonga tanto que se faz universal. E não compreender isso talvez comprometa por modo irremediável a própria capacidade de interpretar os institutos jurídicos há pouco invocados, pois − é Platão quem o diz -, “quem não começa pelo amor nunca saberá o que é filosofia”. É a categoria do afeto como pré-condição do pensamento, o que levou Max Scheler a também ajuizar que “O ser humano, antes de um ser pensante ou volitivo, é um ser amante” (...)
(...) Textos recolhidos de ensaio escrito por Sérgio da Silva Mendes e a ser publicado no XX Compedi, com nome de “Unidos pelo afeto, separados por um parágrafo”, a propósito, justamente, da questão homoafetiva perante o §3º do art. 226. da CF (...)
(...) Prossigo para ajuizar que esse primeiro trato normativo da matéria já antecipa que o sexo das pessoas, salvo expressa disposição constitucional em contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. É como dizer: o que se tem no dispositivo constitucional aqui reproduzido em nota de rodapé (inciso IV do art. 3º) é a explícita vedação de tratamento Discriminatório ou preconceituoso em razão do sexo dos seres humanos. Tratamento discriminatório ou desigualitário sem causa que, se intentado pelo comum das pessoas ou pelo próprio Estado, passa a colidir frontalmente com o objetivo constitucional de “promover o bem de todos” (este o explícito objetivo que se lê no inciso em foco). (...) (ausentes parênteses e reticências na fonte)
b) Ministra Cármen Lúcia:
(...) Observo, inicialmente, que a conquista de direitos é tão difícil quanto curiosa. A luta pelos direitos é árdua para a geração que cuida de batalhar pela sua aquisição. E parece uma obviedade, quase uma banalidade, para as gerações que os vivem como realidades conquistadas e consolidadas.
Bobbio afirmou, na década de oitenta do séc. XX, que a época não era de conquistar novos direitos, mas tornar efetivos os direitos conquistados.
Este julgamento demonstra que ainda há uma longa trilha, que é permanente na história humana, para a conquista de novos direitos. A violência continua, minorias são violentadas, discriminações persistem. Veredas há a serem palmilhadas, picadas novas há a serem abertas para o caminhar mais confortável do ser humano.
(...)
O que se enfatiza, na multiplicidade de peças que compõem os autos, a partir da petição inicial, é que a união entre pessoas do mesmo sexo haveria de ser respeitada e assegurada pelo Estado, com base na norma para a qual se pede a interpretação conforme à Constituição, ao argumento de que definir a união estável entre homem e mulher e excluir outras opções contrariaria preceitos constitucionais fundamentais, como os princípios da liberdade, da intimidade, da igualdade e da proibição de discriminação.
Faço-o enfatizando, inicialmente, que não se está aqui a discutir, nem de longe, a covardia dos atos, muitos dos quais violentos, contrários a toda forma de direito, que a manifestação dos preconceitos tem dado mostra contra os que fazem a opção pela convivência homossexual.
Contra todas as formas de preconceito, contra quem quer que seja, há o direito constitucional. E este é um tribunal que tem a função precípua de defender e garantir os direitos constitucionais.
E, reitere-se, todas as formas de preconceito merecem repúdio de todas as pessoas que se comprometam com a justiça, com a democracia, mais ainda os juízes do Estado Democrático de Direito.
Até porque, como afirmaram muitos dos advogados que assumiram a tribuna, a escolha de uma união homoafetiva é individual, íntima e, nos termos da Constituição brasileira, manifestação da liberdade individual. Talvez explicasse isso melhor Guimarães Rosa, na descrição de Riobaldo, ao encontrar Reinaldo/Diadorim: “enquanto coisa assim se ata, a gente sente mais é o que o corpo a próprio é: coração bem batendo. ...o real roda e põe diante. Essas são as horas da gente. As outras, de todo tempo, são as horas de todos...amor desse, cresce primeiro; brota é depois. ... a vida não é entendível” (Grande sertão: veredas).
É certo; nem sempre a vida é entendível. E pode-se tocar a vida sem se entender; pode-se não adotar a mesma escolha do outro; só não se pode deixar de aceitar essa escolha, especialmente porque a vida é do outro e a forma escolhida para se viver não esbarra nos limites do Direito. Principalmente, porque o Direito existe para a vida, não a vida para o Direito. (inocorrentes reticências e parênteses no texto primígeno)
c) Ministro Ricardo Lewandowski
(...) Como, então, enquadrar-se, juridicamente, o convívio duradouro e ostensivo entre pessoas do mesmo sexo, fundado em laços afetivos, que alguns – a meu ver, de forma apropriada - denominam de “relação homoafetiva”?
Ora, embora essa relação não se caracterize como uma união estável, penso que se está diante de outra forma de entidade familiar, um quarto gênero, não previsto no rol encartado no art. 226. da Carta Magna, a qual pode ser deduzida a partir de uma leitura sistemática do texto constitucional e, sobretudo, diante da necessidade de dar-se concreção aos princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da liberdade, da preservação da intimidade e da não-discriminação por orientação sexual aplicáveis às situações sob análise.
Entendo que as uniões de pessoas do mesmo sexo que se projetam no tempo e ostentam a marca da publicidade, na medida em que constituem um dado da realidade fenomênica e, de resto, não são proibidas pelo ordenamento jurídico, devem ser reconhecidas pelo Direito, pois, como já diziam os jurisconsultos romanos, ex facto oritur jus.]
Creio que se está, repito, diante de outra entidade familiar, distinta daquela que caracteriza as uniões estáveis heterossexuais.
A diferença, embora sutil, reside no fato de que, apesar de semelhante em muitos aspectos à união estável entre pessoas de sexo distinto, especialmente no que tange ao vínculo afetivo, à publicidade e à duração no tempo, a união homossexual não se confunde com aquela, eis que, por definição legal, abarca, exclusivamente, casais de gênero diverso.
Para conceituar-se, juridicamente, a relação duradoura e ostensiva entre pessoas do mesmo sexo, já que não há previsão normativa expressa a ampará-la, seja na Constituição, seja na legislação ordinária, cumpre que se lance mão da integração analógica.
Como se sabe, ante a ausência de regramento legal específico, pode o intérprete empregar a técnica da integração, mediante o emprego da analogia, com o fim de colmatar as lacunas porventura existentes no ordenamento legal, aplicando, no que couber, a disciplina normativa mais próxima à espécie que lhe cabe examinar, mesmo porque o Direito, como é curial, não convive com a anomia.
Visto isso, resta, então, estabelecer se o rol de entidades familiares, definido no art. 226. da Constituição, é taxativo ou meramente exemplificativo. Valho-me, no ponto, de um trecho, abaixo transcrito, de instigante artigo da lavra de Suzana Borges Viegas de Lima:
"Para demonstrar que as relações homoafetivas constituem verdadeiras entidades familiares, temos como ponto de partida o rol descrito no artigo 226 da Constituição Federal, que, em nossa opinião, não é numerus clausus, e sim um rol exemplificativo, dada a natureza aberta das normas constitucionais. Para tanto, é essencial que se considere a evolução da família a partir de seus aspectos civis e constitucionais, buscando nos fenômenos da publicização e constitucionalização do Direito de Família, e, também, na repersonalização das relações familiares, os elementos para a afirmação das relações homoafetivas. A partir disso, encontramos um vasto campo para uma análise mais aprofundada da proteção legal das relações homoafetivas, assim como dos direitos que delas emanam, segundo o ordenamento jurídico vigente". ( VIEGAS DE LIMA, Suzana Borges. Por m estatuto jurídico das relações homoafetivas: uma perspectiva civil-constitucional. Direito Civil Constitucional. Brasília: Editora Obcursos, 2009, p.47.)
(...) Não há, ademais, penso eu, como escapar da evidência de que a união homossexual, em nossos dias, é uma realidade de elementar constatação empírica, a qual está a exigir o devido enquadramento jurídico, visto que dela resultam direitos e obrigações que não podem colocar-se à margem da proteção do Estado, ainda que não haja norma específica a assegurá-los. (...) (apôs-se parênteses e reticências)
d) Ministro Marco Aurélio
(...)
Pois bem, eis o cerne da questão em debate: saber se a convivência pública, duradoura e com o ânimo de formar família, por pessoas de sexo igual deve ser admitida como entidade familiar à luz da Lei Maior, considerada a omissão legislativa. Em caso positivo, cabe a aplicação do regime previsto no artigo 1.723 do Código Civil de 2002?
(...)
Em 19 de agosto de 2007, em artigo intitulado “A igualdade é colorida”, publicado na Folha de São Paulo, destaquei o preconceito vivido pelos homossexuais. O índice de homicídios decorrentes da homofobia é revelador. Ao ressaltar a necessidade de atuação legislativa, disse, então, que são 18 milhões de cidadãos considerados de segunda categoria: pagam impostos, votam, sujeitam se a normas legais, mas, ainda assim, são vítimas preferenciais de preconceitos, discriminações, insultos e chacotas, sem que lei específica a isso coíba. Em se tratando de homofobia, o Brasil ocupa o primeiro lugar, com mais de cem homicídios anuais cujas vítimas foram trucidadas apenas por serem homossexuais.
No fecho do artigo fiz ver: felizmente, o aumento do número de pessoas envolvidas nas manifestações e nas organizações em prol da obtenção de visibilidade e, portanto, dos benefícios já conquistados pelos heterossexuais faz pressupor um quadro de maior compreensão no futuro. Mesmo a reboque dos países mais avançados, onde a união civil homossexual é reconhecida legalmente, o Brasil está vencendo a guerra desumana contra o preconceito, o que significa fortalecer o Estado Democrático de Direito, sem dúvida alguma, a maior prova de desenvolvimento social.
Há não mais de sessenta anos, na Inglaterra, foi intensamente discutido se as relações homossexuais deveriam ser legalizadas. As conclusões ficaram registradas no relatório Wolfenden, de 1957. Vejam que apenas seis décadas nos separam de leis que previam a absoluta criminalização da sodomia, isso no país considerado um dos mais liberais e avançados do mundo. Em lados opostos no debate, estavam o renomado professor L. A. Hart e o magistrado Lorde Patrick Devlin. O primeiro sustentava o respeito à individualidade e à autonomia privada e o segundo, a prevalência da moralidade coletiva, que à época repudiava relações sexuais entre pessoas de igual gênero (Os pontos de vista estão expressos nas obras seguintes: H. L. A. Hart, Liberta and. Moralista, e Patrick Devlin, The enormemente desligado moral)
(…)
As garantias de liberdade religiosa e do Estado Laico impedem que concepções morais religiosas guiem o tratamento estatal dispensado a direitos fundamentais, tais como o direito à dignidade da pessoa humana, o direito à autodeterminação, o direito à privacidade e o direito à liberdade de orientação sexual.
A ausência de aprovação dos diversos projetos de lei que encampam a tese sustentada pelo requerente, descontada a morosidade na tramitação, indica a falta de vontade coletiva quanto à tutela jurídica das uniões homoafetivas. As demonstrações públicas e privadas de preconceito em relação à orientação sexual, tão comuns em noticiários, revelam a dimensão do problema.
O reconhecimento de efeitos jurídicos às uniões estáveis representa a superação dos costumes e convenções sociais que, por muito tempo, embalaram o Direito Civil, notadamente o direito de família. A união de pessoas com o fim de procriação, auxílio mútuo e compartilhamento de destino é um fato da natureza, encontra-se mesmo em outras espécies. A família, por outro lado, é uma construção cultural. Como esclarece Maria Berenice Dias (Manual de direito das famílias, 2010, p. 28), no passado, as famílias formavam-se para fins exclusivos de procriação, considerada a necessidade do maior número possível de pessoas para trabalhar em campos rurais. Quanto mais membros, maior a força de trabalho, mais riqueza seria possível extrair da terra. Os componentes da família organizavam-se hierarquicamente em torno da figura do pai, que ostentava a chefia da entidade familiar, cabendo aos filhos e à mulher posição de subserviência e obediência. Esse modelo patriarcal, fundado na hierarquia e no patrimônio oriundo de tempos imemoriais, sofreu profundas mudanças ao tempo da revolução industrial, quando as indústrias recém-nascidas passaram a absorver a mão de obra nos centros urbanos. O capitalismo exigiu a entrada da mulher no mercado de trabalho, modificando para sempre o papel do sexo feminino nos setores públicos e privados. A aglomeração de pessoas em espaços cada vez mais escassos nas cidades agravou os custos de manutenção da prole, tanto assim que hoje se pode falar em família nuclear, em contraposição à família extensa que existia no passado.
As modificações pelas quais a família passou não impediram a permanência de resquícios do modelo antigo, os quais perduraram – e alguns ainda perduram – até os dias recentes. Faço referência a países em que ainda há a proeminência do homem sobre a mulher, como ocorre no Oriente Médio, e os casamentos arranjados por genitores – feito por interesses deles e não dos nubentes –, que continuam a ter vez em determinadas áreas da Índia.
Especificamente no Brasil, o Código Civil de 1916 atribuía efeitos jurídicos somente à família tradicional, consumada pelo matrimônio entre homem e mulher, em vínculo indissolúvel. Família era apenas uma: aquela resultante do matrimônio. Os relacionamentos situados fora dessa esfera estavam fadados à invisibilidade jurídica, quando não condenados à pecha da ilicitude, rotulados com expressões pouco elogiosas – lembrem-se dos filhos adulterinos, amásias e concubinas.
A situação foi mudando gradualmente. Primeiro, com a edição da Lei nº 4.121/62 – Estatuto da Mulher Casada, que atribuiu capacidade de fato à mulher, admitindo-lhe ainda a administração dos bens reservados. Em seguida, o divórcio, implementado pela Emenda Constitucional nº 9/77 e pela Lei nº 6.515/77, modificou definitivamente o conceito de família, ficando reconhecidas a dissolução do vínculo e a formação de novas famílias.
O processo evolutivo encontrou ápice na promulgação da Carta de 1988. O Diploma é o marco divisor: antes dele, família era só a matrimonial, com ele, veio a democratização – o reconhecimento jurídico de outras formas familiares. (...) (demarcou-se com parênteses e reticências)
Bem se observou que o Supremo Tribunal Federal cuidou de espancar o vezo do preconceito, deitando raízes profundas, de modo indelével, calcado na garantia da não discriminação por conta da diversidade da orientação sexual, fazendo questão de ostentar qual a verdadeira razão de ser do Homem é a garantia de sua dignidade em todos os quadrantes da vida.
Seguindo esta trilha, o Superior Tribunal de Justiça, de vez por todas, autorizou o casamento civil homoafetivo, como se extrai de trechos do brilhante voto do Min. Luís Felipe Salomão (REsp. nº 1.183.378/RS):
Nesse contexto, a controvérsia instalada nos autos consiste em saber se é possível o pedido de habilitação para o casamento de pessoas do mesmo sexo, tendo as recorrentes recebido respostas negativas, tanto na esfera cartorária, quanto nas instâncias judiciais - sentença e acórdão de apelação.
O acórdão, além de invocar doutrina sobre teoria geral do direito e de hermenêutica jurídica, acionou os arts. 1.514, 1.535 e 1.565, todos do Código Civil de 2002, enfatizando as alusões aos termos ‘homem’ e ‘mulher’ ou ‘marido e mulher’, reciprocamente considerados, cuja união seria a única forma de constituição válida do casamento civil.
[...]
Ressalto que os óbices relativos às expressões ‘homem e mulher", utilizadas pelo Código Civil de 2002, art. 1.723, e pela Constituição Federal, art. 226, § 3º, foram afastados por esta Corte e pelo Supremo Tribunal Federal para permitir a caracterização de união estável entre pessoas do mesmo sexo, denominada ‘união homoafetiva’.
E continua o Ministro:
Por isso não se pode examinar o casamento de hoje como exatamente o mesmo de dois séculos passados, cuja união entre Estado e Igreja engendrou um casamento civil sacramental, de núcleo essencial fincado na procriação, na indissolubilidade e na heterossexualidade.
[...]
Com efeito, se é verdade que o casamento civil é a forma pela qual o Estado melhor protege a família, e sendo múltiplos os arranjos familiares reconhecidos pela Carta Magna, não há de ser negada essa via a nenhuma família que por ela optar, independentemente de orientação sexual dos partícipes, uma vez que as famílias constituídas por pares homoafetivos possuem os mesmos núcleos axiológicos daquelas constituídas por casais heteroafetivos, quais sejam, a dignidade das pessoas de seus membros e o afeto.” (grifo do autor)
Confira, por oportuno, que o Supremo Tribunal Federal, por mais de uma vez, avaliza o viés da não discriminação entre seres humanos por questão de orientação sexual, afirmando:
União civil entre pessoas do mesmo sexo – alta relevância social e jurídico-constitucional da questão pertinente às uniões homoafetivas - legitimidade constitucional do reconhecimento e qualificação da união estável homoafetiva como entidade familiar: posição consagrada na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (ADPF 132/RJ e ADI 4.277/DF) - o afeto como valor jurídico impregnado de natureza constitucional: a valorização desse novo paradigma como núcleo conformador do conceito de família - o direito à busca da felicidade, verdadeiro postulado constitucional implícito e expressão de uma ideia-força que deriva do princípio da essencial dignidade da pessoa humana – alguns precedentes do Supremo Tribunal Federal e da Suprema Corte Americana sobre o direito fundamental à busca da felicidade - princípios de Yogyakarta (2006): direito de qualquer pessoa de constituir família, independentemente de sua orientação sexual ou identidade de gênero - direito do companheiro, na união estável homoafetiva, à percepção do benefício da pensão por morte de seu parceiro, desde que observados os requisitos do art. 1.723. do Código Civil - o Art. 226, § 3º, da lei fundamental constitui típica norma de inclusão - a função contramajoritária do supremo tribunal federal no estado democrático de direito – a proteção das minorias analisada na perspectiva de uma concepção material de democracia constitucional – o dever constitucional do estado de impedir (e, até mesmo, de punir) ‘qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais’ (CF, art. 5º, XLI) - a força normativa dos princípios constitucionais e o fortalecimento da jurisdição constitucional: elementos que compõem o marco doutrinário que confere suporte teórico ao neoconstitucionalismo - recurso de agravo improvido.
Ninguém pode ser privado de seus direitos em razão de sua orientação sexual.
- Ninguém, absolutamente ninguém, pode ser privado de direitos nem sofrer quaisquer restrições de ordem jurídica por motivo de sua orientação sexual. Os homossexuais, por tal razão, têm direito de receber a igual proteção tanto das leis quanto do sistema político-jurídico instituído pela Constituição da República, mostrando-se arbitrário e inaceitável qualquer estatuto que puna, que exclua, que discrimine, que fomente a intolerância, que estimule o desrespeito e que desiguale as pessoas em razão de sua orientação sexual.
Reconhecimento e qualificação da união homoafetiva como entidade familiar.
- O Supremo Tribunal Federal - apoiando-se em valiosa hermenêutica construtiva e invocando princípios essenciais (como os da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autodeterminação, da igualdade, do pluralismo, da intimidade, da não discriminação e da busca da felicidade) - reconhece assistir, a qualquer pessoa, o direito fundamental à orientação sexual, havendo proclamado, por isso mesmo, a plena legitimidade ético-jurídica da união homoafetiva como entidade familiar, atribuindo-lhe, em conseqüência, verdadeiro estatuto de cidadania, em ordem a permitir que se extraiam, em favor de parceiros homossexuais, relevantes conseqüências no plano do Direito, notadamente no campo previdenciário, e, também, na esfera das relações sociais e familiares.
- A extensão, às uniões homoafetivas, do mesmo regime jurídico aplicável à união estável entre pessoas de gênero distinto justifica-se e legitima-se pela direta incidência, dentre outros, dos princípios constitucionais da igualdade, da liberdade, da dignidade, da segurança jurídica e do postulado constitucional implícito que consagra o direito à busca da felicidade, os quais configuram, numa estrita dimensão que privilegia o sentido de inclusão decorrente da própria Constituição da República (art. 1º, III, e art. 3º, IV), fundamentos autônomos e suficientes aptos a conferir suporte legitimador à qualificação das conjugalidades entre pessoas do mesmo sexo como espécie do gênero entidade familiar.
- Toda pessoa tem o direito fundamental de constituir família, independentemente de sua orientação sexual ou de identidade de gênero. A família resultante da união homoafetiva não pode sofrer discriminação, cabendo-lhe os mesmos direitos, prerrogativas, benefícios e obrigações que se mostrem acessíveis a parceiros de sexo distinto que integrem uniões heteroafetivas.
A dimensão constitucional do afeto como um dos fundamentos da família moderna.
- O reconhecimento do afeto como valor jurídico impregnado de natureza constitucional: um novo paradigma que informa e inspira a formulação do próprio conceito de família. Doutrina.
Dignidade da pessoa humana e busca da felicidade.
- O postulado da dignidade da pessoa humana, que representa - considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) - significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso país, traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo.
Doutrina.
- O princípio constitucional da busca da felicidade, que decorre, por implicitude, do núcleo de que se irradia o postulado da dignidade da pessoa humana, assume papel de extremo relevo no processo de afirmação, gozo e expansão dos direitos fundamentais, qualificando-se, em função de sua própria teleologia, como fator de neutralização de práticas ou de omissões lesivas cuja ocorrência possa comprometer, afetar ou, até mesmo, esterilizar direitos e franquias individuais.
- Assiste, por isso mesmo, a todos, sem qualquer exclusão, o direito à busca da felicidade, verdadeiro postulado constitucional implícito, que se qualifica como expressão de uma idéia-força que deriva do princípio da essencial dignidade da pessoa humana. Precedentes do Supremo Tribunal Federal e da Suprema Corte Americana. Positivação desse princípio no plano do direito comparado.
A função contramajoritária do Supremo Tribunal Federal e a proteção das minorias.
- A proteção das minorias e dos grupos vulneráveis qualifica-se como fundamento imprescindível à plena legitimação material do estado democrático de direito.
- Incumbe, por isso mesmo, ao Supremo Tribunal Federal, em sua condição institucional de guarda da constituição (o que lhe confere ‘o monopólio da última palavra’ em matéria de interpretação constitucional), desempenhar função contramajoritária, em ordem a dispensar efetiva proteção às minorias contra eventuais excessos (ou omissões) da maioria, eis que ninguém se sobrepõe, nem mesmo os grupos majoritários, à autoridade hierárquico-normativa e aos princípios superiores consagrados na Lei Fundamental do Estado. Precedentes. Doutrina. (AG.REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 477.554 MINAS GERAIS, Segunda Turma, Rel.Min. Celso de Melo). (grifo do autor)
Em que pese o reconhecimento da união estável homoafetiva pelo Supremo Tribunal Federal, infelizmente o casamento de pessoas do mesmo sexo abre divergência entre os tribunais, como se lê no escandido pelo site de notícias do “Bol”, em 03 de junho de 2012 :
“A autorização para casamentos civis entre pessoas do mesmo sexo está deixando sem rumo os tribunais brasileiros. As decisões têm sido tomadas de formas diversas em cada Estado do país.No Rio, o vem juiz Luiz Marques negando todos os pedidos encaminhados por casais gays desde que assumiu a função de titular da Vara de Registros Públicos, há sete meses. Ao justificar o veto, afirma que a lei associa casamento a homem e mulher.Mas a posição do juiz não é consenso. Rio Grande do Sul e Alagoas, por exemplo, têm decidido de forma oposta.Para oficializar um matrimônio, o primeiro passo é preencher um requerimento em cartório. Se houver dúvida, o caso pode ser encaminhado para avaliação do juiz.No caso do Rio, Luiz Marques orientou os cartórios cariocas a repassarem a ele todos os pedidos associados a casamento civil homoafetivo."As decisões do juiz são fundamentadas e devem ser respeitadas", avaliza a desembargadora Maria Regina Nova, do Tribunal de Justiça do Rio, que, no entanto, tem uma interpretação diferente da lei. "Eu entendo que a Constituição também veda expressamente atos discriminatórios, seja em razão de sexo, raça, cor ou religião."São Paulo e Belo Horizonte seguem o exemplo carioca. Nas duas cidades, as decisões quase sempre têm sido contrárias. Julgamentos favoráveis surgem pontualmente em instâncias superiores.Na última quinta, o Tribunal de Justiça de São Paulo autorizou o casamento civil de um casal de dois homens de Bauru, interior do Estado.Os resultados favoráveis chamam atenção em Porto Alegre e Maceió. Na capital gaúcha, dois dos cinco cartórios da cidade vêm autorizando as uniões homoafetivas."Fui ao cartório em abril passado e, na mesma hora, marcaram a data. Deu tudo certo", comemora o arquiteto gaúcho José Pacheco, 39, que se casou no último dia 14.Em dezembro de 2011, o Tribunal de Justiça de Alagoas autorizou os cartórios do Estado a habilitarem o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo. "Fizemos uma festa no ano passado para comemorar a união estável e agora estamos marcando o casamento", diz a cantora Luciana Lima, 28, que mora em Maceió com a mulher, a enfermeira Viviane Rodrigues, 33”.
FABIO BRISOLLA- DO RIO
Contudo, no rumo de uma sociedade justa, solidária e igualitária despida de qualquer eiva de preconceito, como, aliás, reclama a Constituição Federal (Art. 1º, III e Art. 3º, I e IV), está a decisão do juiz Luís Antônio de Abreu Johnson, da comarca de Lajeado/RS como evidencia o site Espaço Vital:
“(...) reconheceu o casamento homoafetivo contraído no exterior entre um brasileiro e um britânico. Na sentença, o magistrado julga procedente o pedido do requerente a fim de reconhecer, registralmente, o casamento celebrado entre ele e o inglês, que passará a adotar o sobrenome do brasileiro. No assento do casamento, constará como regime matrimonial a "comunhão parcial de bens". (...)Ao julgar o pedido, o magistrado adotou como razões de decidir os fundamentos do parecer da promotora de Justiça Velocy Melo Pivatto. Sob o ponto de vista formal, o juiz entendeu que "todas as formalidades exigidas para o reconhecimento da união matrimonial celebrada no estrangeiro, conforme disposto no artigo 1.544 do Código Civil, foram cumpridas".Quanto ao reconhecimento em território brasileiro da união civil de uma dupla de sexo idêntico, realizada em solo estrangeiro, o juiz entendeu que, "embora o documento faça referência à união civil, sem utilizar a expressão ´casamento´, deve ser reconhecida a equivalência dos institutos para fins registrais no Brasil". (ausentes reticências no original)
Sabe-se, porém, que tanto o Supremo Tribunal Federal quanto o Superior Tribunal de Justiça, estão bem posicionados quanto à valorização da dignidade da pessoa humana, bem como homenageando o tratamento igualitário entre os sexos. Deste modo, decisões de juízes e desembargadores que venham por obstáculos ao casamento homoafetivo, com todo respeito, além de estarem no fosso do preconceito serão reformadas em nível de recurso. Entrementes, ainda assim, até o desate da questão recursal, anos terão transcorrido e os interesses dos pares homossexuais, já por este ângulo, estarão prejudicados.
Em suma, além da principiologia jurídica retratada, a busca da felicidade já é o suficiente para igualitarizar, no plano dos direitos, os homossexuais e os heterossexuais, desprezando-se a questão anatômica, visto que o mais importante é o arranjo familiar calcado na dignidade da pessoa humana, onde heterossexual e homossexual não pode ser distinguido, porque ambos têm o selo do humano8.