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Aplicação na prática da Lei Maria da Penha, frente à decisão do STF na ADIN 4424

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A recente alteração advinda da decisão do STF na ADI 4424 consolida a interpretação do art. 41 da Lei Maria da Penha de forma a pacificar o conflito jurisprudencial e doutrinário quanto a ação penal no crime de lesão corporal de natureza leve.

Resumo: A presente pesquisa tem como intuito analisar a Lei Maria da Penha e a recente alteração sofrida no advento do julgamento da ADIn[1] 4424. A atuação policial frente aos crimes de lesão corporal de natureza leve no âmbito familiar, que por maioria dos votos dos ministros do STF[2], passou a ser de ação pública incondicionada. Os procedimentos a serem adotados pelo agente policial, quando do flagrante do crime de lesão corporal leve em âmbito familiar em que a vítima não se dispõem a registrar o fato e a possível responsabilização do agente policial em decorrência da não observância da recente alteração da ação penal.

Palavras-chave: Ação Pública Incondicionada – Lesão Corporal Leve – Maria da Penha.

Sumário: 1. Introdução; 2. Lei Maria da Penha; 3. Alterações Advindas da Decisão do STF na ADIn 4424; 3.1. Ação Penal Pública Incondicionada; 4. Atuação Policial nos Casos de Lesão Corporal de Natureza Leve em Âmbito Familiar e a Produção de Provas; 5. A Responsabilização do Agente Policial; 6. Considerações Finais; 7. Referências.


1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho tratará da Lei Maria da Penha e sua aplicação na prática pelos agentes policiais, em específico nos casos de lesão corporal de natureza leve, sob a interpretação da recente decisão do STF, nos casos em que a agressão e as lesões são constatadas pelo agente policial, porém, a vítima não deseja realizar o registro do fato e tão pouco deseja qualquer sanção contra seu agressor.

Demonstrará a possibilidade da prisão do agressor quando em flagrante, mesmo sem o registro formal da ofendida, bem como a substituição da prova pericial (exame de corpo de delito), pela prova testemunhal, uma vez que a vítima por não ter interesse no feito, não se submeteria a perícia, com o intuito de não produzir provas contra o agente agressor.

Este trabalho explanará as alterações ocorridas com a decisão do STF junto a ADIn 4424 e, demonstrará se diante da alteração da condição da ação no crime de lesão corporal decorrente de violência doméstica constituirá abuso de autoridade a prisão do agressor mesmo sem o registro da vítima.

Consequentemente, verificar a possibilidade de responsabilização do agente policial que tomou ciência do delito e não adotou nenhuma medida, seja a formalização do fato mediante registro ou a prisão do agressor, quando presentes a situação flagrancial.


2. LEI MARIA DA PENHA

A referida lei foi criada com o intuito de coibir, prevenir e erradicar a violência doméstica e familiar contra a mulher. Conforme o art. 1º da Lei nº 11.340/06[3] que diz:

Esta lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da CRFB/88[4], pela Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Doméstica contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

Desta forma, o Estado busca erradicar a violência doméstica contra a mulher através da legislação específica que prevê penas mais severas e medidas protetivas que visam impedir que as agressões continuem a acontecer, bem como a referida legislação, vem a diminuir a sensação de impunidade.

Conforme os doutrinadores Junqueira e Fuller[5],

O aludido diploma legal se insere no plano das demonstradas ações afirmativas (“discriminação positiva”), por meio das quais se busca compensar desigualdades factuais apuradas entre grupos de pessoas (no caso, entre os gêneros masculino e feminino), como forma de promover a almejada isonomia constitucional entre homens e mulheres (art. 5º, inc. I da CRFB/88).

No entanto, a Lei nº 11.340/06, de 07/08/2006, teve sua publicação no dia 08/08/2006 e passou a vigorar no dia 22/09/2006, vindo a surtir resultados, mas ao mesmo tempo, surgiram muitas divergências com relação à interpretação em conjunto de seus arts. 16 e 41 que têm a seguinte redação, nesta ordem:

Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.

E, o art. 41 do mesmo diploma legal:

Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099 de 26 de setembro de 1995.

A discussão residia na natureza da ação no crime de lesão corporal leve, elencada no § 9º do art. 129 do CP[6], se esta era de ação pública condicionada à representação ou incondicionada.

O acadêmico de pós graduação, Lista[7] entende que:

Ocorre que antes da Lei Maria da Penha, a violência doméstica havia sido inserida pela primeira vez no Código Penal, através da Lei nº 10.886/04, não afastando a aplicação da Lei nº 9.099/95, e desta forma, seria um crime de ação pública condicionada a representação da vítima.

Desta forma existiam duas correntes doutrinárias. A primeira defendia que a aplicação literal do art. 41 da Lei nº 11.340/06, e, desta forma considerava que os crimes de violência doméstica de lesões corporais leves e culposas eram de ação pública incondicionada, portanto, não sendo necessária a representação da ofendida. Segundo essa corrente, a lei de violência doméstica é de ordem pública e versa sobre os direitos indisponíveis.

Já a segunda corrente entendia que os crimes de lesões corporais seriam de ação pública condicionada, desta forma, a condição de procedibilidade seria a representação da vítima, assim como nos demais crimes de ação pública condicionada à representação e de ação penal privada, que dependem da manifestação da vontade da vítima, como por exemplo, crimes de ameaça, injúria e dano[8].

Tal divergência doutrinária e jurisprudência só foi resolvida com o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade no mês de fevereiro do ano de 2012.


3. ALTERAÇÃO ADVINDA DA DECISÃO DO STF NA ADIn 4424

Diante das divergentes decisões judiciais e posicionamentos doutrinários, o Procurador Geral da República, Roberto Monteiro Gurgel Santos, ingressou com Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn), onde defendia que todos os atos de violência praticados contra a mulher no âmbito familiar não seriam aplicáveis os dispositivos da Lei nº 9.099/95, ou seja, os crimes de lesão corporal independente da gravidade deveriam ser de ação pública incondicionada a representação.

Dentre seus argumentos, Gurgel[9] alegou que,

Após dez anos da aprovação da Lei nº 9.099/95, cerca de 70% dos casos que chegavam aos Juizados Especiais envolviam situações de violência doméstica contra mulheres. A lei desestimulava a mulher a processar o marido ou companheiro agressor e consequentemente reforçava a impunidade presente na cultura e na prática patriarcal.

A referida ação foi julgada no dia 09 de fevereiro de 2012 pelos ministris do STF. A referida decisão julgou procedente a ação ajuizada pelo Procurador Geral da República quanto aos arts. 12, inc. I, 16 e 41 da Lei Maria da Penha, por maioria dos votos, vencido o Presidente, ministro Cezar Peluso, conforme segue a decisão[10]:

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O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, julgou procedente  a  ação  direta para,  dando  interpretação  conforme  aos artigos 12, inciso I, e 16, ambos da Lei nº  11.340/2006,  assentar  a natureza incondicionada da ação penal em caso de crime de lesão, pouco importando a extensão desta, praticado contra  a  mulher  no  ambiente doméstico, contra o voto do Senhor Ministro Cezar Peluso (Presidente). Falaram, pelo Ministério Público Federal (ADI 4424), o  Dr.  Roberto Monteiro  Gurgel   Santos,   Procurador-Geral   da   República;   pela Advocacia-Geral da  União,  a  Dra. Grace  Maria  Fernandes  Mendonça, Secretária-Geral de Contencioso; pelo interessado  (ADC 19),  Conselho Federal da Ordem dos  Advogados  do Brasil,  o  Dr.  Ophir  Cavalcante Júnior e, pelo  interessado  (ADI  4424), Congresso  Nacional,  o  Dr. Alberto Cascais, Advogado-Geral do Senado.

Observa-se que este julgado apresenta normativa “erga omnes” imediata e decorre diretamente do § 2º do art. 102 da CRFB/88[11], assim redigido:

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal,precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

[...]

§ 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.

Neste norte, a Associação Mineira do Ministério Público[12] divulgou e publicou que:

Esta decisão deve ser cumprida por todos os órgãos do Poder Judiciário e da administração pública direta e indireta, nas esferas federais, estaduais e municipais, independente de sua publicação ou do respectivo trânsito em julgado, bastando à publicação da respectiva ata da mencionada decisão.

Assim, mesmo que a mulher vítima de violência doméstica que ocasionou lesão corporal leve, não queira que o agressor seja processado, a ação penal do crime em estudo a partir da decisão supra citada passa a ser de ação pública incondicionada, ou seja, o representante do Ministério Público é titular da ação penal e tem legitimidade para promovê-la independente da autorização da ofendida, não podendo o juiz recusar a denúncia sob a alegação de ausência da condição da ação.

3.1. AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA

A ação penal em suma é o direito do Estado (acusação), ou do ofendido de ingressar em juízo, solicitando a prestação jurisdicional, ou seja, a aplicação das normas penais ao caso concreto.

A ação penal está prevista no art. 100 do CP com a seguinte previsão:

Art. 100 - A ação penal é pública, salvo quando a lei expressamente a declara privativa do ofendido. 

§ 1º - A ação pública é promovida pelo Ministério Público, dependendo, quando a lei o exige, de representação do ofendido ou de requisição do Ministro da Justiça

§ 2º - A ação de iniciativa privada é promovida mediante queixa do ofendido ou de quem tenha qualidade para representá-lo. 

 § 3º - A ação de iniciativa privada pode intentar-se nos crimes de ação pública, se o Ministério Público não oferece denúncia no prazo legal. 

 § 4º - No caso de morte do ofendido ou de ter sido declarado ausente por decisão judicial, o direito de oferecer queixa ou de prosseguir na ação passa ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão. 

Como pode se observar, no texto legal, a ação no geral será pública, exceto quando a própria lei expressamente a declarar privativa da ofendida.

No caso da Lei Maria da Penha, a mesma foi omissa quanto ao tipo de ação penal do crime de lesão corporal leve, e desta forma, uma corrente doutrinária entendia que a ação por aplicação literal do art. 100 do CP seria pública incondicionada, não necessitando da manifestação da ofendida.

Porém, corrente diversa analisava o disposto no art. 41 cumulado com art. 16 da Lei nº 11.340/06, entendendo desta forma que o crime de lesão corporal leve seria de ação pública condicionada à representação.

Tais divergências doutrinárias e jurisprudenciais, foram resolvidas com o julgamento da ADIn 4424, que declarou ser este crime de ação pública incondicionada à representação.

Desta maneira, o crime pode ser processado independente da vontade da ofendida, conforme já está se aplicando a referida decisão do STJ nos julgados do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina[13], conforme passamos a análise:

APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME DE LESÃO CORPORAL DE NATUREZA LEVE E AMEAÇA PRATICADOS COM VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA MULHER (ART. 129, § 9° E ART. 147 DO CP, C/C ART. 7° DA LEI N. 11.340/2006). SENTENÇA CONDENATÓRIA. RECURSO DA DEFESA. PRELIMINAR ALEGADA NULIDADE PROCESSUAL. AUSÊNCIA DE REPRESENTAÇÃO EXPRESSA DA VÍTIMA EM AUDIÊNCIA PRELIMINAR NA FASE JUDICIAL, POR FORÇA DO ART. 16 DA LEI MARIA DA PENHA. INVIABILIDADE. CRIME DE LESÃO CORPORAL LEVE É DE AÇÃO PÚBLICA INCONDICIONADA. DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA ADIN 4424/DF, FIXANDO A LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA INTENTAR A AÇÃO PENAL. JÁ EM RELAÇÃO AO CRIME DE AMEAÇA NÃO HÁ A NECESSIDADE DE FORMA RÍGIDA PARA REPRESENTAR. SUFICIÊNCIA DA MANIFESTAÇÃO DA OFENDIDA NO SENTIDO DE QUE O APELANTE SEJA PROCESSADO COMO AUTOR DO DELITO. PREFACIAL ARREDADA. MÉRITO ABSOLVIÇÃO NOS CRIMES DE LESÃO CORPORAL LEVE E AMEAÇA. INVIABILIDADE. MATERIALIDADE E AUTORIA DELITIVAS COMPROVADAS. DECLARAÇÕES DA VÍTIMA HARMÔNICAS E COERENTES COM OS DEMAIS ELEMENTOS DO CONTEXTO PROBATÓRIO. LAUDO PERICIAL QUE ATESTA AS LESÕES SOFRIDAS. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA QUE SE IMPÕE. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.

Quanto a titularidade da ação penal, nos casos de ação penal pública, esta será promovida pelo órgão oficial, ou seja, pelo Ministério Público e tem sua previsão legal no inc. I do art. 129 da CRFB/88[14] que diz:

São funções institucionais do Ministério Público:

I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei.

Diante de todo o exposto, não há mais o que se falar em necessidade de representação da ofendida para que o representante do Ministério Público tenha condições de procedibilidade para oferecer a denúncia.


4.  ATUAÇÃO POLICIAL NOS CASOS DE LESÃO CORPORAL DE NATUREZA LEVE NO ÂMBITO FAMILIAR E A PRODUÇÃO DE PROVAS

Por vezes a aplicação da lei no caso concreto não é tão simples, quem dirá quando da atividade policial em que na grande maioria das vezes o agente policial se depara com as mais variadas situações, não podendo se furtar de dar uma resposta à sociedade que recorre às instituições policiais buscando segurança e também a solução de conflitos ou ao menos uma orientação de algum agente público.

Imaginemos o agente policial que em atendimento de ocorrência de violência doméstica, ao chegar no local dos fatos, se depara com uma situação flagrancial em que a ofendida apresenta lesões corporais de natureza leve, mas por diversos motivos sejam eles, dependência financeira, medo devido aos seu histórico de agressões e ameaças, não se dispõe a noticiar a agressão sofrida, bem como não almeja que seu agressor seja responsabilizado pelo delito praticado.

Esta situação é facilmente visualizada BA pesquisa de opiniões do DATASENADO[15] realizada pelo Senado Federal no ano de 2011, que revela que:

60% dos casos de violência doméstica são por agressões físicas e deste, quase 36% disseram ter procurado ajuda na primeira agressão física, mas 29% confessaram não ter procurado qualquer ajuda: 24% pediram ajuda após a terceira agressão, 5% na segunda e 5% preferiram não responder.

Outro dado alarmante foi divulgado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres[16] no Balanço Semestral de janeiro a junho do ano de 2012, do Ligue 180, Central de Atendimento à Mulher que indica a frequência:

A frequência da violência foi informada em 32.183 atendimentos. Verificou-se que, em 19.171 (59,57%) dos relatos, a violência ocorre diariamente e, semanalmente, em 6.856 (21,30%) das situações relatadas no Ligue 180.

Assim, não era incomum a guarnição da Policia Militar ser acionada por vizinhos, para atendimento de ocorrência de violência doméstica e no local, mesmo constatando as agressões, não poderia realizar a prisão do agente por esta depender da representação da vítima e por vezes, após a guarnição sair do local, o agressor voltar a agredir a mulher, fato que diretamente incutia sentimento de impunidade.

Os referidos fatos se confirmam, junto a buscas no SISP[17],  que informa o caso da vítima identificada como V.L.V.[18], de 49 anos de idade, que no dia 15/01/2009, na Comarca de Balneário Camboriú/SC, sofreu lesões corporais em decorrência de violência doméstica e na data dos fatos acionou a Central de Emergência da Polícia Militar, mas, com a chegada da guarnição, a ofendida não quis representar criminalmente contra seu agressor, identificado como E.M.L.[19], de 43 anos.

Esta vítima noticiou os fatos junto a Delegacia Especializada no dia seguinte aos fatos, visto que devido ao fato do crime, na época, ser de ação pública condicionada à representação, na negativa da ofendida, a guarnição poderia no máximo orientá-la nos procedimentos que poderia adotar, mas nunca obrigá-la e sequer tomar qualquer outra providência.

Após estes fatos, a mesma vítima, no mesmo endereço, novamente noticiou crime de ameaça e de violência psicológica no dia 18/03/2012 junto a Polícia Militar, e nesta, o agressor foi preso, encaminhado para a Delegacia Especializada, junto com a ofendida e lá, esta novamente optou por não representá-lo criminalmente.

Por fim, no dia 21/04/2012, novamente agredida fisicamente, culminando em lesões corporais, ao acionar a Policia Militar, a guarnição pode efetuar a prisão em flagrante do agressor, visto que nesta época o crime já era de ação pública incondicionada a representação, porém, a vítima também já estava saturada e desejava que seu agressor fosse processado e responsabilizado por seus atos.

Conforme o relato supra, em específico, na primeira ocorrência policial, antes da decisão da ADIn 4424, se deparava com um grande dilema: qual procedimento deveria ser adotado, uma vez que tanto a doutrina, quanto a jurisprudência não eram pacíficas quanto ao tipo de ação penal do crime de lesão corporal de natureza leve.

Tal situação parece pacificada com o advento da decisão do STF da ADIn 4424, pois atualmente não cabe mais a ofendida a decisão de representação, podendo o agente policial, quando em situação flagrancial, efetuar a prisão do agressor, independente da representação da vítima.

Neste sentido, o Ministério Público Federal[20] destaca:

“No caso de flagrante delito (hipóteses do artigo 302, do Código de Processo Penal), a autoridade policial não só pode como deve efetuar a prisão do agressor, independentemente da vontade da vítima, exceto nos casos que envolvam crimes dependentes de representação da vítima (lembrando que o crime de lesões corporais leves não mais depende de representação). [...]”.

Conforme este entendimento, o agente policial que for acionado para atender uma denúncia de violência doméstica, tenha esta sido informada pela vitima, por vizinhos ou até mesmo de forma anônima, que lá chegar, se por ventura constatar que a vítima apresenta lesão corporal decorrente da violência doméstica e estando o agressor no local ou proximidades e ainda em estado flagrancial, deverá efetuar a sua prisão e realizar a apresentação deste na Delegacia Especializada, ou em comarca que não as possua, na Delegacia de Polícia Civil, uma vez que o crime em tela é de ação pública incondicionada.

Corroborando com este entendimento o Ministério Público Federal[21] na Cartilha “Lei Maria da Penha e Direitos da Mulher”, menciona que “nos crimes de ação pública qualquer pessoa pode noticiar uma violência”.

Da mesma forma, Greco[22] discorre que:

Pelo fato de não existir qualquer condição que impossibilite o início das investigações pela policia ou que impeça o Ministério Público de dar início à ação penal através do oferecimento de denúncia, é que o art. 27 do Código de Processo penal diz que qualquer pessoa do povo poderá provocar a iniciativa do ministério público, nos caos em que caiba a ação pública, fornecendo-lhe, por escrito, informações sobre o fato e a autoria e indicando o tempo, o lugar e os elementos de convicção, apresentando-lhe, pois, sua noticia criminis.

Mas, caso a ofendida não se disponha a se deslocar à Delegacia Especializada para efetuar o registro da agressão e das lesões corporais sofridas, o agente policial não poderá efetuar sua condução sem seu consentimento e deverá procurar produzir provas através de outros meios, que darão sustento a lavratura do flagrante, sejam eles, laudo do médico que tenha prestado atendimento à vítima, testemunhas que tenham presenciado a agressão, fotografias ou o depoimento dos próprios milicianos que atenderam a ocorrência, estes que virá revestido de sua fé pública, dentre outros meios.

A própria lei prevê os procedimentos a serem adotados no atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, bem como prevê a possibilidade da utilização de laudos ou prontuários médicos fornecidos por hospitais e postos de saúde como meios de provas. Senão vejamos:

Art. 11.  No atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, a autoridade policial deverá, entre outras providências:

I - garantir proteção policial, quando necessário, comunicando de imediato ao Ministério Público e ao Poder Judiciário;

II - encaminhar a ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao Instituto Médico Legal;

III - fornecer transporte para a ofendida e seus dependentes para abrigo ou local seguro, quando houver risco de vida;

IV - se necessário, acompanhar a ofendida para assegurar a retirada de seus pertences do local da ocorrência ou do domicílio familiar;

V - informar à ofendida os direitos a ela conferidos nesta Lei e os serviços disponíveis.

Art. 12.  Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes procedimentos, sem prejuízo daqueles previstos no Código de Processo Penal:

I - ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo, se apresentada;

II - colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e de suas circunstâncias;

III - remeter, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, expediente apartado ao juiz com o pedido da ofendida, para a concessão de medidas protetivas de urgência;

IV - determinar que se proceda ao exame de corpo de delito da ofendida e requisitar outros exames periciais necessários;

V - ouvir o agressor e as testemunhas;

VI - ordenar a identificação do agressor e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes criminais, indicando a existência de mandado de prisão ou registro de outras ocorrências policiais contra ele;

VII - remeter, no prazo legal, os autos do inquérito policial ao juiz e ao Ministério Público.

§ 1o  O pedido da ofendida será tomado a termo pela autoridade policial e deverá conter:

I - qualificação da ofendida e do agressor;

II - nome e idade dos dependentes;

III - descrição sucinta do fato e das medidas protetivas solicitadas pela ofendida.

§ 2o  A autoridade policial deverá anexar ao documento referido no § 1o o boletim de ocorrência e cópia de todos os documentos disponíveis em posse da ofendida.

§ 3o  Serão admitidos como meios de prova os laudos ou prontuários médicos fornecidos por hospitais e postos de saúde[23].

Vale ressaltar que a condução da ofendida para tomada de seu depoimento sem seu consentimento, quando da lavratura do flagrante, constitui abuso de autoridade, porém, na fase do inquérito policial, a autoridade policial, poderá determinar a condução coercitiva para seu depoimento, caso, após devidamente intimada, insista em não comparecer com finalidade de instruir o referido procedimento.

Assim, assevera o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios[24]:

Não há como obrigar a vítima a acompanhar o policial para que receba proteção, mas, nos crimes de ação penal pública, instaurado o inquérito policial, a vítima pode ser conduzida coercitivamente, levada à autoridade independentemente de sua vontade para prestar depoimento.

No mesmo sentido, o Ministério Público do Estado do Ceará[25] editou a recomendação nº 001/2012 – NGPMF que recomenda aos delegados:

Proceder à imediata instauração do inquérito policial por meio de portaria ou auto de prisão em flagrante, nos casos de lesão corporal leve dolosa ou culposa, praticadas contra a mulher em meio à violência doméstica, independentemente de autorização da vítima para tal, que deverá inclusive ser conduzida para exame pericial caso se abstenha de fazê-lo (art. 201, § 1.º, do CPP).

Conforme o CPP[26], prevê em seu art. 158 que,

Quando a infração penal deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado, porém, caso ocorra que a vítima se abstenha a realizar o exame de corpo de delito ou quando de sua realização já tenha desaparecido os vestígios da lesão corporal, pode-se aplicar o art. 167 do CPP[27].

Estes por sua vez dispõem que:

Não sendo possível o exame de corpo de delito, por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta.

Assim, também entende o doutrinador Ishida[28], senão vejamos:

Se os vestígios desaparecerem, impossibilitando a realização do exame de corpo de delito, este poderá ser suprido pela prova testemunhal. [...].

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina[29] já aplicou a substituição do exame de corpo de delito pela prova testemunhal, conforme segue:

APELAÇÃO CRIMINAL. PRELIMINAR. ARGUIDA NULIDADE POR AUSÊNCIA DE LAUDO PERICIAL. VIOLÊNCIA PRATICADA CONTRA CRIANÇA OU ADOLESCENTE. AGRESSÕES QUE CAUSARAM LESÕES LEVES, CUJAS MARCAS PODEM DESAPARECER RAPIDAMENTE. INTELIGÊNCIA DO ART. 167 DO CPP. PROVA ORAL CONSTITUÍDA EXCLUSIVAMENTE DE INFORMANTES. CARÁTER DOMÉSTICO DOS FATOS QUE TORNA VIRTUALMENTE IMPOSSÍVEL QUE PESSOAS ESTRANHAS AO NÚCLEO FAMILIAR OS PRESENCIEM. ART. 206 DO CPP. EIVA INEXISTENTE. PREFACIAL AFASTADA.   MÉRITO. TORTURA (ART. 1º, INC. II, DA LEI N. 9.455/97). ALMEJADA ABSOLVIÇÃO. ALEGADA ANEMIA PROBATÓRIA. MATERIALIDADE DOS FATOS E AUTORIA DELITIVA DEMONSTRADAS PELOS RELATOS COLHIDOS DURANTE A INSTRUÇÃO PROBATÓRIA, CORROBORADOS PELO RELATO HARMÔNICO DA VÍTIMA E ESTUDOS PSICOSSOCIAIS JUNTADOS AOS AUTOS. ABSOLVIÇÃO IMPOSSÍVEL. CONDENAÇÃO MANTIDA.   PRETENDIDA DESCLASSIFICAÇÃO PARA O CRIME DE MAUS-TRATOS. PROVA DOS AUTOS QUE DEMONSTRA O EXCESSO PRATICADO COM INTENÇÃO DE DISCIPLINAR O OFENDIDO. ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO QUE EXIGE O REENQUADRAMENTO LEGAL. PLEITO ACOLHIDO.   "A distinção entre os crimes de maus-tratos e o de tortura deve ser encontrada não só no resultado provocado na vítima, como no elemento volitivo do agente; assim se abusa do direito de corrigir para fins de educação, ensino, tratamento e custódia, haverá maus-tratos, ao passo que caracterizará tortura quando a conduta é praticada como forma de castigo pessoal, objetivando fazer sofrer, por prazer, por ódio ou qualquer outro sentimento vil" (Ap. Crim. n. 1998.014413-2, rel. Des. Nilton Macedo Machado, j. 18.5.1999).   RECURSO DEFENSIVO PARCIALMENTE PROVIDO.   PRAZO PRESCRICIONAL REDUZIDO ANTE A DESCLASSIFICAÇÃO. TRANSCURSO DO LAPSO TEMPORAL ENTRE O RECEBIMENTO DA DENÚNCIA E A PUBLICAÇÃO DA SENTENÇA CONDENATÓRIA. DECLARADA EXTINTA A PUNIBILIDADE DO AGENTE, EX OFFICIO, PELA PRESCRIÇÃO. (Apelação Criminal n. 2012.040121-6, da Capital, rel. Des. Alexandre d'Ivanenko)

Quanto ao depoimento do agente policial o autor Greco[30] destaca que:

O papel do policial na produção de provas dos fatos é de fundamental importância, destacando que ninguém melhor do que as primeiras pessoas que estiveram no local do crime, ou mesmo que participaram da prisão em flagrante do agente, para descrever aquilo que efetivamente ocorreu.

Denota-se que é perfeitamente cabível a prisão do agressor, em situação de violência doméstica em que a vítima apresente lesões corporais, mas para isso, deve estar em situação de flagrante e independerá da vontade da ofendida, por força da decisão com efeito erga omnes da ADIn 4424, devendo o policial promover a junção de provas para dar subsídios para que a autoridade policial possa determinar a lavratura do Auto de Prisão em Flagrante ou, diante da ausência de alguma prova, instaurar o inquérito policial para realizar a apuração do delito.

Sobre os autores
Luiz Eduardo Cleto Righetto

É graduado em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI; Especialista em Direito Público pela Escola Superior da Magistratura Federal do Estado de Santa Catarina; Mestre em Ciência Jurídica pela UNIVALI; Advogado Inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional Santa Catarina, Subseção Itajaí - OAB/SC 18.453, atuando nas áreas Criminal e Empresarial; Sócio dos Escritórios Cleto & Righetto Advogados Associados - OAB/SC 1.569-09 (Itajaí, Balneário Camboriú e Barra Velha/SC); Professor da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI), lecionando nas áreas de Direito Penal, Direito Processual Penal, Deontologia Jurídica e Estágios de Prática Jurídica; Professor em Cursos Preparatórios para Concursos, lecionando as matérias Direito Penal, Direito Processual Penal, Legislação Penal Especial, Deontologia Jurídica e Prática Jurídica Penal; Professor convidado de diversas Pós-Graduações; Autor dos Livros: Leis Penais Especiais Comentadas e Direito Penal, volumes I, II, III e IV e Direito Processual Penal, volumes I, II, III e IV, e coautor do Livro: Dosimetria da Pena: teoria e prática; Atuou como Secretário Geral da OAB/Itajaí no triênio 2010/2012; Autor de diversos artigos científicos e; Palestrante na área de Direito Penal e Direito Processual Penal.

Domingos Lessandro Cardoso de Andrade

Acadêmico de Direito da Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI - Campus Balneário Camboriú (SC). Cabo da Polícia Militar de Santa Catarina - 12º BPM.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIGHETTO, Luiz Eduardo Cleto; ANDRADE, Domingos Lessandro Cardoso. Aplicação na prática da Lei Maria da Penha, frente à decisão do STF na ADIN 4424. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3414, 5 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22946. Acesso em: 22 dez. 2024.

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