Conquanto a execução desenvolva-se no interesse do credor, a teor do art. 612, do Código de Processo Civil, a realidade forense tem demonstrado, em muitos casos, a grande dificuldade de a parte exequente localizar bens passíveis de constrição judicial, o que é agravado a partir de decisões judiciais que reiteradamente indeferem justos pedidos formulados no seio da execução.
Dentre esses casos de tolhimento do direito da parte exequente, têm-se decisões judiciais que indeferem o pedido de expedição de ofício à Receita Federal do Brasil para fornecimento de declaração de bens e rendimentos do executado dos últimos exercícios financeiros, sob o genérico argumento de que compete à parte exequente diligenciar na obtenção de bens passíveis de constrição judicial.
Convém elucidar que tal tentativa de localização de bens apresenta relevante interesse prático, pois a parte exequente poderá tomar conhecimento, por meio dessas declarações de bens e rendimentos, por exemplo, da existência de bens imóveis registrados nos mais diversos rincões do país e que seja de propriedade da parte executada, além do que poderá fornecer elementos para eventual comprovação da ocorrência de fraude à execução.
O indeferimento de pedidos deste jaez de forma genérica em nada contribui para a efetividade da execução e para a satisfação do interesse do credor. Além disso, desconsidera a inviolabilidade que paira sobre o sigilo fiscal, garantia essa assegurada constitucionalmente.
O sigilo fiscal encontra-se consagrado no artigo 5º, inciso X, da Constituição da República de 1988, que assim preceitua, in verbis:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
(...).”
Sob esse prisma, embora, a rigor, seja de incumbência da parte exequente a localização de bens passíveis de constrição judicial, tal assertiva deve ser interpretada à luz da Constituição da República, que veda a requisição de informações da parte executada diretamente à Receita Federal do Brasil, diante da garantia do sigilo fiscal.
Acentue-se que, não se tratando de garantia absoluta – até porque não há no ordenamento jurídico pátrio direitos fundamentais absolutos[1] –, e diante da necessidade de expressa autorização judicial para que a parte exequente tenha acesso à declaração de bens e rendimentos da parte executada dos últimos exercícios financeiros, restam equivocadas as decisões judiciais que indeferem tal pleito.
Consoante entendimento consagrado pelo c. Supremo Tribunal Federal, o “(...) postulado da reserva constitucional de jurisdição importa em submeter, à esfera única de decisão dos magistrados, a prática de determinados atos cuja realização, por efeito de explícita determinação constante do próprio texto da Carta Política, somente pode emanar do juiz, e não de terceiros, inclusive daqueles a quem se haja eventualmente atribuído o exercício de ‘poderes de investigação próprios das autoridades judiciais'. A cláusula constitucional da reserva de jurisdição (...) traduz a noção de que, nesses temas específicos, assiste ao Poder Judiciário, não apenas o direito de proferir a última palavra, mas, sobretudo, a prerrogativa de dizer, desde logo, a primeira palavra, excluindo-se, desse modo, por força e autoridade do que dispõe a própria Constituição, a possibilidade do exercício de iguais atribuições, por parte de quaisquer outros órgãos ou autoridades do Estado”[2].
Assim, é mister a expressa autorização judicial para que a parte exequente tenha acesso à declaração de bens e rendimentos da parte executada, não merecendo prosperar a genérica alegação de que cabe ao credor a localização de bens de propriedade do devedor passíveis de constrição judicial.
Neste sentido, cumpre transcrever o entendimento dos nossos tribunais, in verbis:
PROCESSO CIVIL - EXECUÇÃO - REQUISIÇÃO JUDICIAL DE INFORMAÇÕES À RECEITA FEDERAL SOBRE O DEVEDOR E SEUS BENS REQUERIDA PELO CREDOR, ENTIDADE PÚBLICA - ADMISSIBILIDADE. a) Recurso - Agravo de Instrumento em Execução Fiscal. b) Decisão de origem - Indeferida expedição de ofício à Receita Federal para fornecimento de cópias das três últimas declarações de Imposto de Renda dos Agravados. 1 - O interesse da Justiça manifesta-se, apenas, justificando quebra de sigilo fiscal, quando, para evitar que a pendência fique sem solução, haja necessidade de dados em poder de terceiros por não ter o credor, ENTIDADE PÚBLICA, localizado o devedor ou seus bens, pois, aí, além do interesse da coletividade, surge o interesse maior da sociedade, o da paz social, obtida pela composição dos litígios. 2 - Agravo de Instrumento provido. 3 - Decisão reformada. (TRF-1. 7ª Turma. AG 199901000820704. Rel. Des. Federal Catão Alves. Publicado no DJ de 27/11/09).
PROCESSUAL CIVIL - AGRAVO DE INSTRUMENTO - EXECUÇÃO FISCAL - EXPEDIÇÃO DE OFÍCIO À SECRETARIA DA RECEITA FEDERAL - LOCALIZAÇÃO DE BENS PASSÍVEIS DE PENHORA - RECURSO IMPROVIDO. 1. Reporta-se o presente instrumento a execução fiscal ajuizada em 11/11/2002 pelo Instituto Nacional do Seguro Social - INSS em face de MEDICAL ASSISTANCE ASSISTENCIA MEDICA S/C LTDA, SERGIO EDUARDO GOULART e LUCIANO ANDRÉ GOULART para cobrança crédito referente a contribuições previdenciárias no valor de R$.799.571,44 (fls. 15). 2. A expedição de ofício à Delegacia da Receita Federal para obtenção de informações constantes das declarações de imposto de renda dos executados, embora seja medida excepcional, pode ser deferida quando, apesar de esgotadas as regulares diligências pelo credor, não forem obtidas as informações necessárias à satisfação do crédito, não importando, tal medida, em ilegal violação do sigilo fiscal do executado. 3. Com efeito, a parte agravante instruiu o agravo apenas com cópia de uma pequena fração do feito originário (foram trazidas cópias de 33 páginas de um total superior a 205 páginas), impossibilitando a verificação da matéria fática argüida, já que não há como se saber, com certeza, quais foram os atos processuais realmente praticados no feito originário. 4. Assim, dos documentos que instruem o agravo, resta possível apenas a constatação de que, embora ajuizada a demanda originária em 11/11/2002, com a devida citação dos executados, não está até o momento (passados quase cinco anos) garantido o juízo. 5. Agravo de instrumento improvido, na parte conhecida. (TRF-3. 1ª Turma. AG 305285. Rel. Des. Federal Johonsom di Salvo. Publicado no DJ de 17/04/08 – grifou-se).
Ademais, há que se reforçar a ideia de que a execução não se dá somente no interesse do credor, mas também no interesse da justiça, como instrumento necessário para o Estado cumprir o seu dever de prestar a jurisdição[3], o que justifica ainda mais a necessidade de acolhimento de pedidos desta natureza formulados pela parte exequente.
Por outro lado, eventual acesso diretamente (sem intervenção judicial), pela parte exequente, a tais informações acobertadas pelo sigilo fiscal, poderia configurar, em tese, o cometimento de crime, o que demonstra ainda mais a necessidade de pronunciamento judicial para que o credor tenha acesso a tais declarações.
É de bom alvitre mencionar que o Superior Tribunal de Justiça tem entendimento expressivo no sentido de admitir a possibilidade de quebra do sigilo fiscal, desde que esgotados todos os meios para localizar bens passíveis de penhora[4].
Nessa linha de raciocínio, outra não pode ser a conclusão senão pela admissibilidade de se solicitar ao juízo a expedição de ofício à Receita Federal do Brasil, a fim de que encaminhe cópia das declarações de bens e rendimentos dos executados relativas aos últimos exercícios financeiros, sobretudo porque sobre tal informação incide a garantia constitucional do sigilo fiscal, insculpida no art. 5º, inc. X, da Constituição Cidadã, sendo patente o desacerto das decisões judiciais proferidas em sentido contrário.
Convém salientar que, deferida tal medida e acostadas aos autos cópia das aludidas declarações, o processo judicial deverá tramitar em segredo de justiça – notadamente para se evitar quebra de sigilo fiscal e acesso de terceiros a aludidos documentos –, sendo certo que, após a intimação da parte exequente, aquelas declarações devem ser desentranhadas dos autos e o processo perder a característica de segredo de justiça, por não mais justificar tal restrição.
Por fim, não se pode descurar que o acesso a sobreditos documentos objetiva aumentar a efetividade da execução, garantindo à parte exequente mais uma possibilidade de localizar bens passíveis de constrição judicial ou até mesmo comprovar que determinada alienação tenha se dado em fraude à execução, extraindo-se daí a relevância de tal pedido no seio do processo executivo, sem se desconsiderar as garantias constitucionais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- ASSIS, Araken de. Manual da Execução. 11ª edição. São Paulo: RT, 2007.
- BONAVIDES, pAULO. CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL. 22ª EDIÇÃO. SÃO PAULO: EDITORA MALHEIROS, 2008.
- MENDES, GILMAR FERREIRA; BRANCO, PAULO GUSTAVO GONET. CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL. 6ª EDIÇÃO. SÃO PAULO: SARAIVA, 2011.
- PORTO, Édson Garin. Manual de Execução Fiscal. 2ª Edição. Editora Livraria do Advogado, 2012.
Notas
[1] STF. 2ª Turma. HC 93250/MS. Rel. Min. Ellen Gracie. Publicado no DJ de 26/08/08: “(...) Na contemporaneidade, não se reconhece a presença de direitos absolutos, mesmo de estatura de direitos fundamentais previstos no art. 5º, da Constituição Federal, e em textos de Tratados e Convenções Internacionais em matéria de direitos humanos. (...).” (grifou-se).
[2] STF. Tribunal Pleno. MS 23.452/RJ. Rel. Min. Celso de Mello. Publicado no DJ de 12/05/2000.
[3] STJ. EREsp 163408/RS. Corte Especial. Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca. Publicado no DJ de 11/06/01.
[4] STJ. 1ª Turma. REsp 953286. Rel. Min. José Delgado. Publicado no DJ de 08/11/2007.