2 O PACTO DE SAN JOSÉ DA COSTA RICA E A FORÇA VINCULANTE DE SUAS DECISÕES
2.1 A INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
Antes de se adentrar à análise do Pacto de San José da Costa Rica, cumpre esclarecer o contexto em que os vários pactos e tratados internacionais que versam sobre direitos humanos foram instituídos e o propósito de sua criação.
O século XX foi representado por uma crescente brutalidade e desumanidade com a ocorrência de diversas violações a direitos humanos. No início daquele século, a tortura era utilizada em toda a Europa e após o ano de 1945, pelo menos um terço dos países membros das Nações Unidas acostumou-se a seu uso.[67]
A causa do aumento da brutalização não foi apenas consequência da natural “liberação do potencial latente de crueldade e violência do ser humano” durante as guerras, mas também de sua estranha democratização, já que os conflitos totais tornavam-se guerras populares e de sua impessoalidade, “que tornava o matar e estropiar uma consequência remota de apertar um botão ou virar uma alavanca”.[68]
O avanço tecnológico permitiu que as vítimas se tornassem invisíveis, o que fazia com que as crueldades fossem cada vez piores, pois eram decididas à distância, possibilitando que pessoas que não eram capazes de praticar um ato cruel contra, por exemplo, uma mulher grávida, jogassem explosivos sobre determinados locais ou bombas nucleares sem identificar seus alvos, como ocorreu em Nagasaki.[69]
Diante desse cenário, o mundo acostumava-se com a “expulsão e a matança compulsórias em escala astronômica, fenômenos tão conhecidos que foi preciso” cunhar novas palavras para eles: sem Estado, apátrida e genocídio.[70]
A primeira tentativa moderna de se eliminar uma população em sua totalidade foi o massacre dos armênios pelos turcos, que ocorreu durante a Primeira Guerra Mundial e levou à matança de aproximadamente 1,5 milhão de pessoas. Posteriormente, a Alemanha nazista foi responsável pelo extermínio de cerca de 5 milhões de judeus e 20 milhões de soviéticos.[71]
Como afirma Hobsbawm[72],
A Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa forçaram milhões de pessoas a se deslocarem como refugiados, ou por compulsórias “trocas de população” entre Estados, que equivaliam à mesma coisa. Um total de 1,3 milhão de gregos foi repatriado para a Grécia, sobretudo da Turquia; 400 mil turcos foram decantados no Estado que os reclamava; cerca de 200 mil búlgaros passaram para o diminuído território que tinha o seu nome nacional; enquanto 1,5 ou talvez 2 milhões de nacionais russos, fugindo da Revolução Russa ou no lado perdedor da Guerra Civil russa, se viram sem pátria. (...) Numa estimativa por cima, os anos de 1914-22 geraram entre 4 e 5 milhões de refugiados.
Como consequência da Segunda Guerra Mundial, a desumanidade aumentou ainda mais, tendo sido estimado que em maio de 1945 havia 40,5 milhões de pessoas desenraizadas na Europa, excluindo deste número os trabalhadores forçados dos alemães e aqueles alemães que fugiam em razão do avanço do exército soviético.[73]
A existência de refugiados não se limitava à Europa, de modo que havia cerca de 15 milhões deles na Índia, em virtude de sua descolonização em 1947 que também causou a morte de 2 milhões de pessoas durante a guerra civil que se seguiu. A Guerra da Coreia causou o deslocamento de 5 milhões de coreanos. Assim, constata-se que “a catástrofe humana desencadeada pela Segunda Guerra Mundial é quase certamente a maior da história humana”, tendo a humanidade aprendido “a viver num mundo em que a matança, a tortura e o exílio em massa se tornaram experiências do dia-a-dia”.[74]
A Primeira e a Segunda Guerras Mundiais podem ser consideradas como verdadeiros episódios de matança sistematizada em razão do uso de gás venenoso e do bombardeio aéreo, após 1914, e da destruição nuclear após 1945.[75]
O regime nazista, o qual foi adotado entre os anos de 1933 e 1945 na Alemanha, baseou-se “na exclusão e no posterior extermínio dos grupos considerados inimigos, contando com o terror e com a ubiqüidade [sic] do medo como uma ferramenta essencial”. Ocorreu uma desumanização das pessoas, tendo sido estas equiparadas a verdadeiros robôs, que não podiam pensar, questionar e contestar.[76]
O grupo mais perseguido pelo governo foi o dos judeus, que, de acordo com Arruda[77], foi excluído “da administração do ensino, do jornalismo, das atividades artísticas e literárias. Pelas leis de Nuremberg, de 1935” os judeus
passavam à condição de súditos e perdiam seus direitos civis; o acesso a lugares públicos lhes foi interditado; o casamento de “arianos” com judeus era punido como crime de profanação racial. A partir de 1938 a violência cresceu: espancamentos, destruição de sinagogas e casas, uso de sinais identificadores e proibição de deixar a Alemanha.
Por conta dessas tragédias, surgiu a necessidade de se criar uma ordem internacional de direitos humanos, uma vez que acreditava-se que se houvesse à época uma legislação internacional que protegesse esses direitos, parte das citadas violações poderia ter sido evitada.[78]
Visando a punição daqueles que cometeram crimes contra a humanidade, contra a paz e crimes de guerra entre os anos de 1933-1945, criou-se o Tribunal de Nuremberg, o qual, ante a falta de normas positivadas que tratassem sobre direitos humanos, julgou aqueles indivíduos que cometeram os referidos crimes segundo o costume internacional a fim de condená-los criminalmente.[79]
Entende-se por costume internacional uma prática geral e evidentemente comum aceita como lei, caracterizando-se como fonte de Direito Internacional.[80]
A importância do Tribunal de Nuremberg para a internacionalização dos direitos humanos é evidente, uma vez que através de sua formação, além de ter se consolidado a ideia de que seria necessária uma limitação da soberania nacional, reconheceu-se que todas as pessoas possuem seus direitos garantidos e protegidos pelo Direito Internacional.[81]
Após as inúmeras atrocidades que ocorreram a determinados grupos de pessoas durante o século XX, tornou-se indispensável a criação de documentos que garantissem que apesar dos seres humanos serem diferentes entre si, seja em razão da etnia ou da cultura, merecem igual respeito. Logo, nenhum indivíduo poderia se dizer superior a outro.[82]
O marco inicial da internacionalização dos Direitos Humanos, após a Segunda Guerra Mundial, foi a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948.
Posteriormente, surgiram vários outros documentos que versam sobre direitos humanos que vinculam aqueles Estados que os subscreveram.[83]
De acordo com Dimoulis e Martins[84],
as principais dimensões da internacionalização podem ser resumidas da seguinte forma: (a) riquíssima produção normativa internacional em prol dos direitos humanos (declarações, convenções, pactos, tratados etc.); (b) crescente interesse das organizações internacionais pelos direitos humanos e criação de organizações cuja principal finalidade é promovê-los e tutelá-los; (c) criação de mecanismos internacionais de fiscalização de possíveis violações e de responsabilização de Estados ou indivíduos que cometem tais violações (organização e procedimento); (d) intensa produção doutrinária em âmbito internacional, incluindo debates de cunho político e filosófico, assim como análises estritamente jurídicas de dogmática geral e especial.
No tocante à Declaração Universal de Direitos Humanos, cabe salientar que a mesma foi aprovada por unanimidade, não havendo qualquer manifestação contrária à sua aprovação.[85] Os únicos membros das Nações Unidas que se abstiveram de votar foram “os países comunistas (União Soviética, Ucrânia e Rússia Branca, Tchecoslováquia, Polônia e Iugoslávia), a Arábia Saudita e a África do Sul”.[86]
Constata-se que a Declaração reconheceu “os valores supremos da igualdade, da liberdade e da fraternidade entre os homens”, valores estes que já eram defendidos na Revolução Francesa e que após esse documento tornaram-se universais e cristalizaram-se como verdadeiros direitos humanos.[87]
De acordo com Piovesan[88], “a Declaração consolida a afirmação de uma ética universal ao consagrar um consenso sobre valores de cunho universal a serem seguidos pelos Estados”.
Cumpre ressaltar que a Declaração de 1948 possui natureza jurídica vinculante, uma vez que se caracteriza por uma interpretação autorizada da expressão “direitos humanos” contida nos artigos 1º e 55 da Carta das Nações Unidas e que se transformou, com o passar dos anos, “em direito costumeiro internacional e princípio geral do Direito Internacional.[89]
É necessário notar que a força vinculante da Declaração Universal a todos os Estados sofre grande resistência dos adeptos ao relativismo cultural. Para estes, a diversidade de culturas impede a existência de uma moral universal, pois torna-se indispensável que se respeitem as diferenças culturais de cada sociedade, bem como seus distintos sistemas morais. Dessa forma, o indivíduo deveria ser encarado como parte integrante de uma sociedade.[90]
Já os universalistas encaram o indivíduo por sua liberdade e autonomia, de forma que, para eles, há o primado do individualismo, ou seja, parte-se do indivíduo para que “se avance na percepção dos grupos e das coletividades”. Nota-se claramente que os instrumentos internacionais de direitos humanos adotam o universalismo cultural, já que visam “assegurar a proteção universal dos direitos e liberdades fundamentais”. Para essa teoria, “o fundamento dos direitos humanos é a dignidade humana, como valor intrínseco à própria condição humana”. Assim, qualquer violação à dignidade humana, mesmo que em nome da cultura, importaria em afronta a direitos humanos.[91]
2.2 A EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 45/2004
No Brasil, a relevância do direito internacional, no tocante aos direitos humanos, é analisada tomando-se como base o §3º do artigo 5º da Constituição da República, o qual foi inserido pela Emenda Constitucional nº 45/2004. Antes da edição desta emenda, a introdução de tratados internacionais sobre direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro era regido pelo §2º do artigo 5º da Constituição, que traz o princípio da complementaridade condicionada, baseando-se na premissa de que os direitos e garantias previstos na Carta Constitucional não excluem outros decorrentes de “tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.[92]
Dessa forma, se determinado direito não estivesse previsto no ordenamento jurídico interno, poderia o indivíduo invocá-lo mesmo assim, desde que fosse reconhecido por algum instrumento internacional, podendo este servir como parâmetro em controle de constitucionalidade ou de legalidade.[93]
Contudo, tal complementaridade seria condicionada, necessitando o indivíduo que desejasse argui-la observar três requisitos:
a) Origem contratual da norma de direitos humanos. O primeiro – e mais evidente – requisito é que deve se tratar de norma internacional de origem contratual (convencional) que abrange os tratados internacionais e eventualmente outros acordos internacionais aprovados de forma semelhante, apesar de denominados “convenções”, “pactos”. Excluem-se, assim, como fontes de direitos humanos constitucionalmente reconhecidas, normas decorrentes de costumes, princípios gerais ou outras fontes de direito internacional público.
b) Conformidade constitucional dos tratados internacionais. A segunda condição – implícita, mas logicamente indiscutível – é de que o tratado não contrarie norma constitucional. Trata-se aqui de reconhecer a absoluta prevalência das normas constitucionais em relação a todas as normas de direito internacional público. Se, no âmbito interno, a única base jurídica de validade dos tratados é a Constituição, a complementaridade não se realiza com base na equivalência e sim com base na submissão da produção normativa internacional aos mandamentos constitucionais. Isso decorre da natureza do poder constituinte como criador de normas dotadas de (auto)primazia normativa. (...)
c) Validade dos tratados internacionais de acordo com a forma de ratificação. O terceiro requisito para que um tratado adquira relevância jurídica no direito brasileiro é sua aprovação pelas autoridades brasileiras na forma constitucionalmente prevista.[94]
Ressalta-se que os tratados internacionais, independentemente de seu conteúdo, eram incorporados mediante decreto legislativo feito pelo Congresso Nacional, que tinha a competência para ratificar os tratados celebrados pelo Presidente da República, sendo, posteriormente, editado um Decreto presidencial.[95]
Esse procedimento permitia a interpretação no sentido de que todos os tratados internacionais tinham hierarquia idêntica a de instrumentos normativos primários, dentre os quais se destacam as leis ordinárias, pois era o mesmo utilizado para a criação destas últimas.[96]
De acordo com Bulos[97], o referido §2º permite que direitos e garantias não previstos na Constituição ingressem no direito interno, de forma a consagrar o princípio da não-tipicidade constitucional. Seu objetivo seria o de fomentar o surgimento de um ordenamento jurídico supraconstitucional.
Após a entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004, o procedimento de incorporação de tratados internacionais que versam sobre direitos humanos foi modificado, diante do acréscimo do §3º ao artigo 5º da Constituição da República, que possui a seguinte redação:
§3º. Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.[98]
Diante disso, os tratados internacionais sobre direitos humanos tornam-se internamente superiores “às leis e a todas as demais fontes infraconstitucionais”.[99]
Entretanto, pela redação do dispositivo supratranscrito, verifica-se, também, que o tratado continua em posição hierárquica inferior à Constituição, devendo respeitar as chamadas cláusulas pétreas, previstas no § 4º do artigo 60 da Carta Republicana, adquirindo o status de emendas constitucionais.[100]
Assim, para que seja aplicado determinado tratado ou convenção internacional no Brasil, deve haver compatibilidade entre o documento internacional e a Constituição de 1988, com respeito às cláusulas pétreas.[101]
Diante do acréscimo do § 3º ao artigo 5º, consolida-se o entendimento de que aqueles atos que foram incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro antes de 8 de dezembro de 2004 não se converteram em emendas constitucionais, mantendo-se como leis ordinárias, a fim de se respeitar situações jurídicas já consolidadas.[102]
Segundo o entendimento ora exposto, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, por ter sido ratificada pelo Brasil em 1992[103], teria hierarquia formal de lei ordinária. Isso significa que poderia até mesmo ser derrogada por outra lei ordinária. No entanto, há correntes doutrinárias que divergem desse posicionamento.
Por conta da entrada em vigor da EC nº 45/2004, argumenta-se que, atualmente, existem duas categorias de tratados internacionais no direito brasileiro:
A primeira categoria compreende os tratados que serão aprovados segundo o procedimento das emendas constitucionais equivalendo formalmente a essas. Integram o bloco de constitucionalidade, submetendo-se, evidentemente, à exigência de respeitar as cláusulas pétreas. Só podem ser modificados ou retirados do ordenamento mediante emenda constitucional posterior. Em razão de sua constitucionalização, tais tratados passarão a não admitir emenda constitucional tendente a abolir normas do tratado, protegidas que são como cláusulas pétreas.
A segunda categoria compreende os tratados aprovados por maioria simples do Congresso Nacional. Têm força jurídica de lei ordinária e podem ser derrogados ou ab-rogados mediante lei posterior. Pertencem a essa categoria todos os tratados internacionais aprovados antes da entrada em vigor da EC 45 de 2004.[104]
Por outro lado, conforme anteriormente defendido, no âmbito do direito internacional, vigora o entendimento no sentido de que o argumento de que os tratados internacionais sobre direitos humanos teriam a mesma hierarquia formal das emendas constitucionais, se obedecerem os requisitos elencados na Constituição, é falho.
Isso porque os direitos humanos se pautam no princípio da dignidade humana, inerente a todos os indivíduos, devendo ser respeitada por todos os Estados, sem discriminação.
Para que se dê efetividade às decisões internacionais em âmbito interno, defende-se que seja adotada pelos Estados legislação que diga respeito à sua implementação em matéria de direitos humanos, devendo todas as nações garantir o integral cumprimento das referidas decisões, “sendo inadmissível sua indiferença, omissão ou silêncio”[105] sob argumento de que tais decisões não produzem efeitos por estarem em grau hierárquico inferior às decisões proferidas pelos tribunais superiores nacionais.
Note-se que não há unanimidade no Supremo Tribunal Federal quanto ao entendimento de qual seria o grau hierárquico dos tratados internacionais de direitos humanos.
No julgamento do Habeas Corpus nº 90450, o Ministro Relator Celso de Mello afirmou que o Pacto de San José da Costa Rica, por se tratar de um instrumento internacional de direitos humanos, teria hierarquia formal de norma constitucional. Cumpre transcrever trecho de seu voto:
Com efeito, os magistrados e Tribunais, no exercício de sua atividade interpretativa, especialmente no âmbito dos tratados internacionais de direitos humanos, devem observar um princípio hermenêutico básico (tal como aquele proclamado no Artigo 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos), consistente em atribuir primazia à norma que se revele mais favorável à pessoa humana, em ordem a dispensar-lhe a mais ampla proteção jurídica.
O Poder Judiciário, nesse processo hermenêutico que prestigia o critério da “norma mais favorável” (que tanto pode ser aquela prevista no tratado internacional como a que se acha positivada no próprio direito interno do Estado), deverá extrair a máxima eficácia das declarações internacionais e das proclamações constitucionais de direitos, como forma de viabilizar o acesso dos indivíduos e dos grupos sociais, notadamente os mais vulneráveis, a sistemas institucionalizados de proteção aos direitos fundamentais da pessoa humana, sob pena de a liberdade, a tolerância e o respeito à alteridade humana tornarem-se palavras vãs (grifos no original).[106]
Deste modo, de acordo com seu entendimento, a Convenção Americana de Direitos Humanos, mesmo tendo sido ratificada antes do advento da Emenda Constitucional nº 45/2004, teria caráter materialmente constitucional, de modo a fazer parte da noção conceitual de bloco de constitucionalidade. Ressalta, contudo, que os tratados internacionais de direitos humanos que venham a ser incorporados pelo Brasil após a EC nº 45/2004 deverão observar o iter procedimental previsto no §3º do artigo 5º da Constituição de 1988.
Já o Ministro Gilmar Mendes, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 349703, manifestou seu entendimento no sentido de que os tratados internacionais de direitos humanos seriam dotados de uma hierarquia formal sui generis, já que infraconstitucionais, mas supralegais.
Segundo o Ministro, deve-se ter em mente que o Brasil está inserido em um contexto latino-americano, no qual se encontra submetido a uma ordem comunitária no que concerne à matéria de direitos humanos, representada pela Convenção Americana de Direitos Humanos.[107]
Diante disso, a proteção aos direitos humanos constitui um dever indeclinável de todos os Estados-membros, que devem construir um direito constitucional latino-americano.[108]
Assim, a possibilidade de um tratado internacional sobre direitos humanos ter sua aplicabilidade afastada por uma lei ordinária iria de encontro com as “exigências de cooperação, boa-fé e estabilidade do atual cenário internacional”. Até porque a própria Carta Constitucional “admite a preponderância das normas internacionais sobre normas infraconstitucionais.[109]
Ainda de acordo com o Ministro Gilmar Mendes[110],
a República Federativa do Brasil, como sujeito de direito público externo, não pode assumir obrigações, nem criar normas jurídicas internacionais, à revelia da Carta Magna, mas deve observar suas disposições e requisitos fundamentais para vincular-se em obrigações de direito internacional.
Dessa forma, os tratados internacionais constituiriam “espécies normativas infraconstitucionais distintas e autônomas, que não se confundem com as normas federais, tais como decreto-legislativo, decretos executivos, medidas provisórias, leis ordinárias ou leis complementares”.[111]
2.3 O PACTO DE SAN JOSÉ DA COSTA RICA
Um dos documentos sobre direitos humanos que surgiu após a Declaração Universal de Direitos Humanos foi a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, elaborada em 1969, em San José da Costa Rica. A referida convenção somente entrou em vigor 11 anos após a sua criação e também é conhecida como Pacto de San José da Costa Rica.[112]
Somente os países que são membros da Organização dos Estados Americanos (OEA) podem aderir a convenção acima mencionada. O aparato de monitoramento da OEA é representado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e pela Corte Interamericana, sendo que a primeira tem o poder de requisitar informações acerca do modo que a legislação interna vem implementando os direitos previstos no sistema interamericano e tem a função de organizar um relatório avaliativo sobre o desenvolvimento dos direitos humanos nos Estados-membros.[113]
Além disso, a Comissão é competente “para receber e examinar comunicações relativas às lesões nos direitos humanos que lhe são encaminhadas pelos Estados-partes, por cidadãos ou por entidades não-governamentais legalmente reconhecidas”, de modo que, para solucionar a controvérsia, pode realizar inspeções in loco ou tentar um acordo amigável com o Estado acusado.[114]
Já a Corte Interamericana de Direitos Humanos é um órgão jurisdicional pertencente ao sistema interamericano de proteção aos direitos humanos, tendo as funções consultiva e contenciosa, sendo de sua competência elaborar pareceres, que podem ser solicitados pelos membros da OEA, receber e julgar casos individuais de violação a direitos humanos.[115]
Caso a Corte conclua que ocorreu efetiva violação a algum direito assegurado no Pacto de San José da Costa Rica, pode determinar que o Estado-membro adote “medidas que se façam necessárias à restauração do direito então violado”, podendo, inclusive, condená-lo ao pagamento de uma justa compensação à vítima. Sua decisão possui força vinculante e obrigatória, de forma que se for fixada uma justa composição à vítima, tal decisão valerá a um título executivo.[116]
Todavia, é preciso que o Estado reconheça a jurisdição da Corte, já que esta é prevista em uma cláusula facultativa.
O Brasil reconheceu a referida competência jurisdicional em dezembro de 1998, pelo Decreto Legislativo nº 89, de 3 de dezembro de 1998, tendo obtido sua primeira condenação perante aquela Corte em 4 de julho de 2006, no caso Damião Ximenes Lopes, o qual envolvia a morte de um deficiente mental após três dias internado em hospital psiquiátrico, cuja decisão apontou a responsabilidade internacional do Estado por omissão.[117]
São previstos no Pacto de San José da Costa Rica os mais importantes direitos individuais, bem como os direitos econômicos, sociais e culturais, o direito à ampla defesa àqueles que foram ofendidos por declarações injuriosas, o direito ao asilo, dentre outros. É contemplada também a Corte Internacional de Direitos Humanos que, conforme exposto anteriormente, possui funções judicante e de consulta.[118]
Verifica-se que a Convenção foi bastante minuciosa ao tratar sobre os “direitos da pessoa em face do aparelho repressivo do Estado”, prevendo diversas garantias aos indivíduos contra os mecanismos de controle social dos Estados. Como afirma Steiner[119],
no título referente ao direito à integridade pessoal (art. 5º), reitera-se o respeito à dignidade da pessoa encarcerada, a proibição da tortura e tratamentos desumanos, cruéis ou degradantes, a garantia de que as penas não podem passar da pessoa do delinquente, a separação entre processados e condenados e entre adultos e menores, e as finalidades reeducativas das penas.
Aos Estados-membros incumbe a obrigação de respeitar e garantir o livre e pleno exercício dos direitos e liberdades assegurados na Convenção Americana, sem que haja qualquer tipo de discriminação. Além disso, devem acatar todas as medidas legislativas e de outra natureza que se mostrem indispensáveis para conferir efetividade aos referidos direitos e liberdades.[120]
Nota-se que o sistema interamericano de direitos humanos vem se consolidando como uma respeitável e eficiente estratégia de proteção a esses direitos nas situações em que as instituições nacionais quedam-se inertes ou mostram-se falhas e ineficazes.[121]
É aplicado nesse sistema o princípio da prevalência dos direitos mais vantajosos para a pessoa humana, o que possibilita que na vigência simultânea de sistemas normativos de ordem nacional e internacional em matéria de direitos humanos, aplique-se aquele que melhor protege o indivíduo.[122]
Importante ressaltar o caráter subsidiário do Pacto de San José da Costa Rica. De acordo com seu artigo 2º, os países-membros devem adotar normas de direito interno que versem sobre os direitos assegurados no Pacto e somente se tais direitos não forem previstos por disposições legislativas de direito nacional, os Estados-membros devem aplicar as normas da Convenção Americana a fim de tornarem eficazes os referidos direitos.[123]
2.4 OS “CRIMES INTERNACIONAIS” E AS LEIS DE ANISTIA
Diante dos diversos documentos acerca dos direitos humanos que foram surgindo em razão das várias atrocidades que ocorreram durante a Segunda Guerra Mundial, e, especificamente na América do Sul, durante a vigência dos regimes ditatoriais, criou-se os chamados “crimes internacionais”, que seriam aquelas condutas consideradas como crimes na ordem internacional, sendo que mesmo que tais condutas não sejam previstas como crimes no ordenamento de determinado país, podem ser punidas com base no direito internacional, da mesma forma que ocorreu quando do julgamento dos crimes cometidos durante o nazismo pelo Tribunal de Nuremberg.[124]
Por conta do surgimento dos referidos crimes internacionais, nasceu a discussão se as diversas leis de anistia que foram feitas naqueles países em que houve “um período de conflito interno decorrente de regimes autoritários” são válidas perante o direito internacional, uma vez que foram cometidos vários dos crimes acima referidos.[125]
Sabe-se que as citadas leis de anistia surgiram com o objetivo de “promover a reconciliação nacional e garantir a segurança interna em momentos traumáticos de transição para a democracia”, e impedem o julgamento daqueles que cometeram “crimes como os de tortura, desaparecimento forçado, seqüestro [sic], terrorismo de Estado”.[126]
O que vem se decidindo nos tribunais nacionais e nas comissões e comitês de direitos humanos, é que as leis de anistia não produzem efeitos na ordem internacional. Assim, tai leis podem e devem ser desconsideradas, tendo os Estados o dever de investigar e punir as várias violações a direitos humanos ocorridas nos regimes autoritários. Para tanto, verifica-se que o direito internacional criou vários mecanismos com a finalidade de “pressionar os Estados a assumirem suas obrigações perante a comunidade internacional”.[127]
A Corte Suprema de Justiça Argentina, no ano de 2005, entendeu que as Leis de Ponto Final (Lei nº 23.492/86) e de Obediência Devida (Lei nº 23.521/87), que impediam o julgamento de violações ocorridas durante o regime repressivo de 1976 a 1983, mostravam-se em desarmonia com a Convenção Americana de Direitos Humanos.[128]
Tal decisão permite que os militares que cometeram crimes durante o regime sejam julgados e punidos atualmente. Da mesma forma, no Uruguai, os militares têm sido julgados e condenados criminalmente. No Chile e no Peru, as legislações de anistia foram invalidadas por decisões da Corte Interamericana, permitindo, também, a investigação e a punição das graves violações a direitos humanos.[129]
Essa conclusão apoia-se no entendimento de que a vigência dos direitos humanos não está condicionada à sua declaração em qualquer diploma normativo, uma vez que “se está diante de exigências de respeito à dignidade humana, exercidas contra todos os poderes estabelecidos, oficiais ou não”.[130]
Além disso, já está assentado que o direito internacional constitui-se pelos costumes e pelos princípios gerais de direito, sendo prescindível que todos os direitos estejam previstos em documentos para que se tornem eficazes.[131]
Cumpre transcrever os requisitos para que se considere determinada conduta ou direito como um costume internacional, de forma que sua existência depende, de acordo com PIOVESAN[132]:
a) da concordância de um número significativo de Estados em relação a determinada prática e do exercício uniforme dessa prática; b) da continuidade de tal prática por considerável período de tempo – já que o elemento temporal é indicativo da generalidade e consistência de determinada prática; c) da concepção de que tal prática é requerida pela ordem internacional e aceita como lei, ou seja, de que haja o senso de obrigação legal, a opinio juris.
Diante disso, resta claro que as “práticas da tortura, das detenções arbitrárias, dos desaparecimentos forçados e das execuções sumárias” que ocorreram durante o século XX e ao longo dos regimes autoritários na América do Sul, constituíram graves violações ao costume internacional.[133]
Frise-se que o referido costume possui eficácia erga omnes, podendo ser aplicado em qualquer Estado.[134]
É defensável a concepção de que as normas internacionais de direitos humanos são dotadas de uma prevalência axiológica em relação ao direito interno, pois exprimem a consciência ética universal, estando em patamar superior ao ordenamento jurídico de cada nação.[135] Segundo Comparato[136],
vai se firmando hoje na doutrina a tese de que, na hipótese de conflito entre normas internacionais e internas, em matéria de direitos humanos, há de prevalecer sempre a mais favorável ao sujeito de direito, pois a proteção da dignidade da pessoa humana é a finalidade última e a razão de ser de todo o sistema jurídico.