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ADPF nº 101: a atuação da AGU no caso da importação de pneus usados

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29/10/2012 às 09:27
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A ADPF aduz que a comercialização de pneus usados no Brasil contribui para incrementar o risco ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e, consequentemente, à saúde, já que não há meio seguro e eficaz de eliminação dos resíduos apresentados pelos pneumáticos de qualquer espécie.

1. Apresentação do caso

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 101[1], proposta pela Presidência da República, por meio da Secretaria-Geral de Contencioso da AGU (SGCT/AGU), tem por fundamento a defesa de políticas públicas que visam a garantia do direito à saúde e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, nos termos dos artigos 196[2] e 225[3], ambos da Constituição Federal, por meio do combate à importação de pneus usados, proibição essa prevista expressamente em normas de caráter infraconstitucional (Portaria DECEX 08, de 14 de maio de 1991), com exceção da importação desses produtos oriundos de países que integram o Mercosul (Portaria SECEX 14, de 17 de novembro de 2004[4]).[5]

Não obstante a clara vedação à importação de pneus usados, uma série de decisões judiciais[6] pontuais vinham autorizando a importação dos referidos produtos provenientes de países não integrantes do Mercosul. Tais decisões se alicerçavam nos seguintes fundamentos (ADPF 101, petição inicial p. 08-09): a) ofensa ao regime constitucional de livre iniciativa e da liberdade de comércio (art. 170, IV, p. único, da CF88); b) ofensa ao princípio da isonomia, uma vez que o Poder Público estaria autorizando a importação de pneus remoldados provenientes de países integrantes do Mercosul; c) os mencionados atos normativos só abarcariam pneus usados, nos quais não estariam compreendidos os pneus recauchutados; d) tais restrições não poderiam ser veiculadas por meio de ato regulamentar, mas somente por lei em sentido formal; e) a Resolução CONAMA n. 258/99, com a redação determinada pela Resolução CONAMA n. 301/2002, teria revogado a proibição de importação de pneus usados, na medida em que teria previsto a destinação de pneus importados reformados.

Deste modo, a ação proposta em 2006 tinha por objetivo a obtenção de uma posição definitiva do Supremo sobre o tema, que deveria ser seguida por todas as instâncias da Justiça no país.


2. Dos argumentos da AGU

Na inicial da ADPF n. 101 (p. 10), a AGU sustentou o cabimento da demanda uma vez que o rol de direitos e garantias fundamentais previstos constitucionalmente não se esgota na enumeração promovida pelo art. 5º, mesmo porque o § 2º do mencionado artigo dispõe que “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Assim, tal qual consignado por meio do julgamento da ADI 939, onde restou fixado que o princípio da anterioridade tributária é uma garantia fundamental, embora prevista no art. 150, “b” da Constituição, a AGU sustentou que tanto o direito à saúde quanto o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado[7] são direitos/garantias fundamentais, ainda que não expressamente arrolados pelo art. 5º, CF/88.

Noutro turno, ao final da petição inicial (p. 49-50), ainda sobre o cabimento da ADPF, a AGU sustentou a existência de controvérsia judicial relevante, eis que há decisões tanto permitindo quanto proibindo a importação de pneus usados, o que justificaria, nos termos do art. 3º, V da lei n. 9.882/1999, o manejo da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental.

Finalizando sua argumentação acerca da viabilidade processual da medida judicial em comento, a parte requerente (ADPF 101, petição inicial, p. 50-59) informa que o requisito da subsidiariedade previsto no § 1º do art. 4º da lei n. 9.882/1999[8] encontra-se presente, já que não há nenhuma outra ação objetiva apta a enfrentar lesões a preceitos fundamentais causadas por atos concretos do Poder Público, no caso lesões oriundas de decisões judiciais. Ademais, segundo aponta, algumas das decisões judiciais combatidas – além de nem sempre atacarem a constitucionalidade dos dispositivos que proíbem a importação de pneus usados, o que afastaria o uso da ADI ou ADC – já transitaram em julgado, apenas podendo ser desafiadas por uma ADPF, consoante interpretação a contrario sensu[9] que faz do art. 5º, § 3º da lei 9.882/1999[10].

Ultrapassada a fase da admissibilidade da ADPF, o fato é que, apesar da existência de legislação impeditiva, decisões judiciais estão a descumprir os normativos permitindo a importação de pneus usados, o que viola os preceitos fundamentais de defesa da saúde e do meio ambiente ecologicamente equilibrado. Ademais, tais decisões judiciais implicaram na abertura de processo de questionamento contra o Brasil na Organização Mundial do Comércio – OMC, ao argumento de que se o Estado permite a importação de pneus usados como matéria-prima, a vedação de importação de pneus reformados equivaleria a imposição de uma barreira comercial não tarifária (ADPF 101, petição inicial p. 23).

Eis a razão, sustenta a AGU, da necessidade de uma definição por parte do STF de que a vedação de importação de pneumáticos usados, inclusive os reformados, encontra supedâneo constitucional, eis que visa à proteção do meio ambiente e da saúde pública, não havendo espaço para decisões judiciais em sentido contrário. Esse posicionamento do Supremo Tribunal Federal seria fundamental, argumenta a AGU, para as pretensões do Brasil junto à OMC.

Nesse sentido, aduz em sua manifestação (ADPF 101, petição inicial, p. 24-25), não haver método eficaz de eliminação de resíduos representados por pneumáticos que não revele riscos ao meio ambiente e à saúde do ser humano. O método mais difundido atualmente, a incineração, produz gases tóxicos danosos tanto ao meio ambiente ecologicamente equilibrado quanto à saúde humana. Ademais, o Brasil, tal qual a União Europeia, não permite o aterro dos pneus como método de descarte, sendo que, por outro lado, a permanência dos referidos materiais ao ar livre pode ocasionar incêndios de grandes proporções e longa duração, como também pode ser foco para o desenvolvimento de doenças tropicais como a malária, a febre amarela e, especialmente, a dengue.

Destaca ainda (ADPF 101, petição inicial, p. 27-28), que o Brasil produz (sem contar a importação) 40 milhões de pneus por ano, já possuindo um estoque de mais de 100 milhões de pneus abandonados, segundo dados do Ministério do Meio Ambiente em 2006.

Sustenta também (ADPF 101, petição inicial, p. 28-29) que a argumentação dos importadores de pneus usados no sentido de que a vedação de importação deveria recair somente sobre os pneus inservíveis, já que os demais que são remodelados têm a sua vida útil aumentada, não se constituindo em lixo ambiental, não merece prosperar, eis que ainda que servíveis, os pneus reformados têm vida útil bem inferior ao pneu novo, sendo que o INMETRO informa que os pneus de carro de passeio só podem passar por uma reforma. Desgastado após a reforma, o pneu torna-se lixo. Justamente por essa razão é que a norma proíbe, de igual modo, a importação de pneus que serviriam como matéria-prima e pneus já reformados (o que é contestado pela União Europeia na OMC).

Outro detalhe informado pela AGU (ADPF 101, petição inicial p. 29-30) é o de que só se sabe se o pneu é inservível ou reformável quando colocado na máquina de reforma, não sendo possível aferir tal característica em momento anterior a fim de impedir a importação de material sem qualquer utilidade industrial. Nesse contexto, os importadores estimam e já admitem que 10% dos pneus importados seriam inservíveis, ao passo que o governo brasileiro diz que esse percentual é três vezes maior (30%).

A AGU (ADPF 101, petição inicial, p. 30) traz ainda dois dados interessantes a serem considerados pelo Supremo Tribunal Federal: a) o fato de que há no Brasil (dados de 2006) 100 milhões de pneus abandonados e que boa parte deles poderia ser utilizada como matéria-prima para outros pneus, o que reduziria em muito a necessidade de importação do referido insumo; b) dados da Mazola Comércio, Logística e Reciclagem Ltda., sociedade que seleciona carcaças reformáveis para a DPascoal, maior revendedora de pneus no Brasil, informam que 30% dos pneus da frota de veículos brasileira é reformável, o que tornaria desnecessária a importação de pneus para esse fim.

Assim, a utilização de carcaças brasileiras poderia aliviar o passivo de pneumáticos existentes no país, diferentemente do que ocorre com a prática da importação desses materiais, sendo, consequentemente, de grande valia para a proteção do meio ambiente e da saúde da população (ADPF 101, petição inicial, p. 31).

Outro argumento utilizado pelos importadores e pelos magistrados que permitiram, via decisão judicial, a importação dos pneus usados é o de que referida limitação quanto à entrada do produto no Brasil incorreria em ofensa à livre iniciativa e à liberdade de comércio, ao que a AGU (ADPF 101, petição inicial, p. 35-36) retruca informando que constitui princípio geral da atividade econômica a proteção e defesa do meio ambiente, inclusive com tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços (art. 170, VI, CF/88[11]), sendo que, deste modo, não há “direitos absolutos” não sujeitos à redução (ou eventual ampliação) de seu alcance por meio de processos interpretativos que visem à harmonização do ordenamento quando em jogo interesses jurídicos passíveis de ponderação.

Nesse sentido, não há que se aventar a impossibilidade da prática comercial eis que, como dito pela AGU (ADPF 101, petição inicial, p. 37), há um passivo de 100 milhões de pneus usados (dados de 2006) aptos à reforma, o que, por si só, garante a continuidade do negócio. Embora esta não seja a melhor opção comercial, já que a importação do pneu usado ainda é mais barata que a compra do produto no mercado interno, o empreendimento não restará inviabilizado com a proibição da importação.

Noutro turno, sustenta a AGU ser descabido se falar em quebra do princípio da isonomia ante o fato de a proibição das importações não se estender aos países integrantes do Mercosul. Com efeito, o Brasil não importa pneus usados para utilização como matéria-prima de qualquer país que seja (inclusive dos países membros do Mercosul), mas tão só pneus já reformados (ADPF 101, petição inicial, p. 38).

Ademais, consoante lembrado pela AGU (ADPF 101, petição inicial, p. 38), o Brasil aderiu livremente à jurisdição do Tribunal Arbitral “ad hoc” do Mercosul, razão pela qual não se pode querer sustentar quebra da isonomia pelo fato de tal exceção não ser aplicável aos países estranhos ao Mercado Comum do Sul, já que muito embora o Brasil discorde dos termos da mencionada decisão arbitral, que desconheceu dos argumentos de natureza ambiental e de saúde pública, deve a ela integral cumprimento, pois também se revela essencial para os interesses do Estado brasileiro a manutenção das relações harmônicas com os países do Mercosul[12], a fim de buscar a “integração econômica, política, social e cultura dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”, conforme previsto pelo parágrafo único do artigo 4º da Constituição Federal de 1988.

Noutro giro, a AGU (ADPF 101, petição inicial, p. 40) combateu o argumento de ofensa ao princípio da legalidade afirmando que o art. 237 da CF/88[13] legitimou a normatização da questão via portaria do Ministério da Fazenda (Portaria DECEX 08/1991), já que é deste a competência para fiscalizar e controlar o comércio exterior.

De igual modo, mas desta vez sob a perspectiva de proteção ao meio ambiente, o art. 225, § 1º, V da Constituição garante ao Poder Público a competência para “controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente” (ADPF 101, petição inicial, p. 41).

Nesse contexto, a Convenção de Basiléia, incorporada ao ordenamento pátrio com estatura de lei por meio do decreto n. 875/1993, previu a possibilidade de todo Estado soberano proibir não somente a entrada ou eliminação de resíduos perigosos estrangeiros em seu território, mas de qualquer outro resíduo (ADPF 101, petição inicial, p. 41).

Por fim, a AGU (ADPF 101, petição inicial, p. 47-49) sustenta que não houve revogação da proibição da importação de pneus usados em razão da nova redação da Resolução CONAMA n. 258/1999 determinada pela Resolução CONAMA n. 301/2002. Com efeito, ao disciplinar a destinação dada aos pneus importados, a Resolução CONAMA n. 301/2002, em seus considerandos[14], fez constar expressamente a proibição da importação de pneus usados, nos termos das Resoluções CONAMA n. 23/2006[15] e 235/98[16].


3. Do Acórdão do STF e do Parecer do MPF

O fato é que a relatora, Ministra Cármen Lúcia, votou parcialmente favoravelmente à ADPF n. 101 em março de 2009[17], tendo sido acompanhada pela maioria dos ministros do STF[18], com exceção do ministro Marco Aurélio.

Em seu voto, após minucioso relatório, a relatora inicia apontando o cabimento da ADPF (p. 12), uma vez que restou demonstrado pelo autor que há preceitos fundamentais sendo descumpridos por reiteradas decisões judiciais, daí a razão de sua total pertinência.

Em complemento, a relatora destaca a formação de uma controvérsia judicial relevante em torno do caso, a justificar o ajuizamento da medida, como única ação capaz de enfrentar a celeuma jurídica posta, especialmente ante o fato de se estar atacando atos concretos do Poder Público o que já denota o respeito à regra da subsidiariedade que deve permear toda e qualquer ADPF[19].

Em seguida, a Ministra Cármen Lúcia promoveu uma detida análise acerca dos processos citados na inicial (vide nota de rodapé n. 8) como sendo representativos de decisões favoráveis à importação de pneus usados, tendo excluído da ação vários arguidos uma vez que, segundo informações por eles mesmos prestadas, não teriam proferido decisões nos termos informados pela AGU na sua peça vestibular.

Adentrando ao mérito, a relatora aponta que o cerne da questão debatida nos autos põe em confronto princípios constitucionais caros à nação brasileira: de um lado estão o direito à saúde e o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, e do outro lado está o princípio do desenvolvimento econômico sustentável.

Nesse sentido, a relatora promoveu um estudo histórico acerca de toda a legislação nacional da proteção ao meio ambiente, mormente as normas que vedam a importação de material usado, em especial pneumáticos. Ao final dessa contextualização história, a Ministra Cármen Lúcia (voto, p. 54-55) chega à seguinte conclusão, verbis:

8.3. Esse histórico das normas serve a comprovar que apenas durante um curtíssimo intervalo de tempo, entre a edição das Portarias Decex n. 1/92 e 18, de 13.7.1992, é que se permitiu a importação de pneus usados e, ainda assim, com a ressalva de que fossem utilizados como matéria-prima para a indústria de recauchutagem.

É esse, aliás, o entendimento sedimentado neste Supremo Tribunal Federal, como se tem, por exemplo, no Agravo Regimental na Suspensão de Tutela Antecipada n. 118:

‘Registrou-se que, à exceção do período compreendido entre as Portarias DECEX 1/92 e 18/92, desde a edição da Portaria DECEX 8/91, não é permitida a importação de bens de consumo usados. Asseverou-se que a proibição geral de importação de bens de consumo ou de matéria-prima usada vigorou até a edição da Portaria SECEX 2/2002, consolidada na Portaria SECEX 17/2003 e, mais recentemente, na Portaria SECEX 35/2006, que adequou a legislação nacional à decisão proferida pelo Tribunal Arbitral do Mercosul para reiterar a vedação, com exceção da importação de pneus recauchutados e usados remoldados originários de países integrantes do Mercosul’ (Rel. Min. Ellen Gracie, DJ 12.12.07)

9. Foi, pois, por força da decisão do Tribunal Arbitral ad hoc que, em 2003, o Brasil viu-se obrigado a aceitar a importação, por ano, de até 130 mil pneus remoldados dos Países partes do MERCOSUL, basicamente do Uruguai.

Observo, ainda, que a mesma proibição de pneus usados foi objeto de normas argentinas, também questionada pelo Uruguai e matéria de lide perante o Tribunal ad hoc.

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É de se atentar que conferir destinação adequada a todo tipo de pneu tem sido desafio constante para todos os Países.

Fixado que o Brasil quase que perenemente, à exceção de um curto espaço de tempo, proibiu e continua a proibir a importação de pneumáticos usados, salvo os provenientes (pneus reformados) do Mercosul, em razão de decisão do Tribunal Arbitra ad hoc do Mercosul, resta saber se as decisões judiciais que permitiram a importação de pneus usados provenientes de Estados não integrantes do Mercado Comum do Sul descumpriram algum preceito fundamental da Constituição Federal.

Registra a relatora a necessidade premente de se pacificar o cuidado judicial com essa matéria em razão do questionamento feito pela União Europeia em face do Brasil na Organização Mundial do Comércio[20], que combate o fato de o Brasil só permitir a importação de pneumáticos usados de países integrantes do Mercosul, sendo que tal preocupação também restou consignada na manifestação da Advocacia-Geral da União. Veja-se o seguinte trecho do voto da Ministra Cármen Lúcia (p. 73) que bem explicita a perplexidade dos órgãos internacionais diante da plêiade de decisões judiciais conflitantes, o que enfraqueceria substancialmente os objetivos do Brasil apresentados junto à OMC:

Essa a razão fundamental de cá estarmos reunidos hoje, a resolver definitivamente sobre uma pendência que, conforme o resultado a que chegarmos, no plano internacional, justificaria a derrocada das normas proibitivas sobre a importação de pneus usados, pois, para o Órgão de Apelação da OMC, se uma parte do Poder Judiciário brasileiro libera empresas para importá-los, a despeito da vigência das normas postas, é porque os objetivos apresentados pelo Brasil, perante o órgão internacional do comércio, não teriam o fundamento constitucional que as justificariam e fundamentariam. Fosse o contrário, sendo uma única e mesma Constituição a do Brasil e tendo eficácia plena e efetividade jurídica incontestável a matéria, não haveria as frestas judiciais permissivas do que nelas se veda.

Com efeito, informou a relatora que, em 03 de dezembro de 2007, o órgão de apelação da OMC externou a conclusão de que seria justificável a medida adotada pelo Brasil quanto à proibição da importação de pneus usados e reformados, de modo a proteger a saúde e o meio ambiente, nos termos do art. XX (b) do GATT[21]. Todavia, o mesmo órgão de apelação fixou:

a) que haveria discriminação injustificável em relação aos demais países exportadores de pneus usados que não integram o Mercosul, independentemente do volume de importação de pneus reformados;

b) que a isenção do Mercosul caracterizou discriminação injustificável;

c) que a importação de pneus usados e reformados por meio de liminares judiciais constituiria discriminação de comércio internacional ainda que não ocorressem em volumes significativos;

d) que a importação de pneus usados e reformados consistiu em discriminação arbitrária.

Assim, tem-se que a OMC reconheceu a legitimidade da medida proibitória de importação de pneumáticos adotada pelo Brasil a fim de proteger a saúde da população e o meio ambiente; todavia também se reconheceu que o Brasil estaria a aplicar referida medida de modo contraditório, já que permite a importação de pneus reformados de países integrantes do Mercosul, bem como ante a profusão de decisões que desafiam a legislação nacional.

Diante desse cenário, destaca a Ministra relatora, o Supremo Tribunal Federal é convidado a pacificar e solucionar a controvérsia judicial, a fim de, ao menos sob esse aspecto, robustecer (acaso acatem a tese da AGU) os objetivos apresentados pelo Brasil junto à OMC[22].

Em sequência, a relatora tece um longo arrazoado acerca do procedimento de fabricação de pneus, bem como dos materiais necessários à sua composição, para, em seguida, tratar das formas de reaproveitamento dos pneumáticos usados. O fato é que seja na reforma de pneus, seja os utilizando como arrecifes artificiais de corais, seja os aproveitando na composição de asfalto ou na fabricação de cimento, os danos ambientais e à saúde humana são consideráveis.

Nesse sentido diz que a preocupação com o meio ambiente em termos globais e a preocupação com a destinação conferida aos resíduos domésticos e industriais decorrem da conclusão de dois fatores: a) os recursos naturais têm se tornado mais escassos, pelo mau uso a eles dado pelo homem; b) a ameaça de segurança à saúde que deles decorre.

Ciente disso, o Brasil, mesmo antes da Constituição Federal de 1988, promulgou a lei n. 6.938/81, que dispondo sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, em seu art. 3º, I, definiu o meio ambiente como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”[23], sendo que com o advento da Constituição de 1988, pela primeira vez na história do constitucionalismo pátrio, se dedicou um capítulo inteiro e exclusivo ao meio ambiente, adotando-se, por meio da norma inscrita no art. 225[24], o princípio da responsabilidade e da solidariedade intergeracional.

Portanto, afirma em seu voto a relatora que “a existência do meio ambiente ecologicamente equilibrado significa não apenas a sua preservação para a geração atual, mas, também, para as gerações futuras.” E prossegue afirmando que se nos dias atuais a palavra de ordem é desenvolvimento sustentável, tal conceito deve compreender tanto o crescimento econômico quanto a garantia paralela da saúde da população, cujos direitos devem ser observados tendo-se em mira não apenas as suas necessidades atuais, mas também as que se podem prever e que se devem prevenir para as futuras gerações (p. 109).

Lembra que na ECO-92 foi confeccionado documento denominado “Declaração do Rio de Janeiro” o qual contém 27 princípios dentre os quais destaca o da “precaução”[25] que, indo além da simples prevenção, prevê que “quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão para postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental”.

Por essa razão é que não há de se esperar a comprovação de um risco real, atual e comprovado de dano que pode sobrevir de uma dada atividade para que se adotem medidas que visem impedi-lo. Essa é a diferença básica entre prevenção e precaução: naquela o risco precisa ser iminente e comprovado, enquanto que nesta o risco pode ser apenas potencial, ou seja, é a prevenção de algo que não se tem certeza se vai ou não ocorrer.

Deste modo, ainda que se entenda necessária e imperiosa a garantia do desenvolvimento econômico, não se pode superar uma crise gerando outra potencialmente mais danosa, como seria um severo desequilíbrio ambiental com implicações sérias à saúde da população. Tanto é assim, que a própria Constituição em seu art. 170, VI, destaca a relatora, alça a proteção ao meio ambiente como fundamento próprio do desenvolvimento econômico.

Não é por outra razão que a Ministra Cármen Lúcia conclui no que tange ao preceito fundamental da proteção ao meio ambiente:

As medidas impostas nas normas brasileiras, que se alega terem sido descumpridas nas decisões judiciais anotadas no caso em pauta, atendem, rigorosamente, ao princípio da precaução, que a Constituição cuidou de acolher e cumpre a todos o dever de obedecer. E não desacata ou desatende os demais princípios constitucionais da ordem econômica, antes com eles se harmoniza e se entende, porque em sua integridade é que se conforma aquele sistema constitucional (p. 112).

Quanto à proteção da saúde, a relatora lembra que a Constituição Federal de 1988 a trouxe em seu art. 196[26] como sendo direito de todos e dever do Estado, verdadeiro corolário da vida digna. Sendo de relevância pública as ações e os serviços destinados à saúde da população em geral, consoante disposto no art. 197[27].

De igual modo, a Constituição de 1988, em seu art. 6º[28], também classificou o direito à saúde como sendo espécie de direito social, previsto no Título destinado aos direitos e garantias fundamentais.

Assim, a relatora destaca que o reconhecimento Constitucional do direito à saúde como direito social fundamental tem como consequência serem exigíveis do Estado ações positivas para assegurá-lo e dotá-lo de eficácia plena. Nesse contexto relembra que a ADPF em análise tem por escopo a proteção do preceito fundamental “saúde” visando impedir a importação de pneumáticos usados que podem causar (princípio da precaução) severos danos à saúde da população, não podendo, deste modo, quedar-se inerte ou omisso o Estado.

Sem discrepar da linha de raciocínio seguida, a Ministra Cármen Lúcia argumenta:

Seja realçado que o direito à saúde não é apenas o direito à ausência de doença, mas, também, o direito ao bem-estar físico, psíquico e social, como se tem no preâmbulo da Constituição da Organização Mundial da Saúde - OMS.

É vedado, portanto, ao Poder Público ser insuficiente ou imprevidente em suas ações e decisões que tenham o precípuo objetivo de dotar de proteção os direitos fundamentais, sob pena de essa inoperância ou ausência de ações afrontar o núcleo central desses direitos. Desta insuficiência ou imprevidência afastou-se o Poder Público brasileiro ao adotar as medidas normativas proibitivas de importação de resíduos que conduzem ao comprometimento da saúde pública e da saúde ambiental. É isto o que se busca, aqui, resguardar e garantir a efetividade dos direitos constitucionais fundamentais.

19. Constatado que o depósito de pneus ao ar livre - a que se chega, inexoravelmente, com a falta de utilização dos pneus inservíveis, mormente quando se dá a sua importação nos termos pretendidos por algumas empresas - é fator de disseminação de doenças tropicais, o razoável e legítimo é atuar o Estado de forma preventiva, com prudência e com a necessária precaução, na adoção de políticas públicas que evitem as causas que provoquem aumento de doenças graves ou contagiosas. (p. 116-117)

E mais à frente arremata a Ministra relatora (p. 118): “Se a proteção à saúde é dever do Estado, manifestando-se por cada qual de seus três poderes, cabe ao Judiciário assegurar a plena, efetiva e eficaz aplicação das normas que determinam as medidas necessárias para assegurá-la”.

Lembra que excesso de pneus na natureza, sem utilização, produz o ambiente mais favorável possível à proliferação de doenças tropicais, especialmente a dengue. Pondera, ademais, que do mesmo modo que os ovos do Aedes Aegypti podem permanecer vivos em meio seco por até um ano, vindo a eclodir com o primeiro contato com a água (acumulada nos pneus), o Brasil pode, juntamente com os pneus usados, estar importando doenças (ovos em estado de adormecimento) ainda não incidentes no país, ou dele já erradicadas, o que demandaria maiores gastos do Estado com a já precária saúde pública nacional (p. 118-119).

Contra-argumentando, os interessados na importação aduzem que a sua proibição afrontaria o princípio constitucional da livre iniciativa e a busca pelo pleno emprego, já que inúmeras fábricas e inúmeros postos de trabalho seriam fechados.

A Ministra Cármen Lúcia, por sua vez, rebate a crítica com a seguinte afirmação:

Os dados assim apresentados, contudo, não conectam os princípios constitucionais definidos para a ordem econômica e para a ordem social, como antes acentuado. Nem há desenvolvimento, incluído o econômico, sem educação e sem saúde. Porque o desenvolvimento constitucionalmente protegido é o que conduz à dignidade humana, não à degradação - inclusive física - humana (p. 120).

Nesse sentido, sustenta que a importação de pneus usados causa potencialmente mais danos à saúde e ao meio ambiente que benefícios econômicos e pondera que, no caso, quem mais sofre com a situação criada com o lixo gerado pelos pneus é a população de baixa renda, que não dispõe de meios materiais para se desfazer ou se proteger dos males advindos do referido lixo.

Argumenta ainda, que “sendo o direito à saúde um bem não patrimonial, sua tutela faz-se na forma inibitória, preventiva, impedindo-se a prática de atos de importação de pneus usados – prática, aliás, adotada pelos Países ricos que deles querem se livrar –, quando demonstrado que estes não são plenamente aproveitados pela indústria.” (p. 122)

Ao enfrentar o argumento de que a proibição da importação de pneus só poderia se dar por meio de lei formal, a relatora afirmou que o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, criado pela Medida Provisória n. 1.911-8, de 29.7.99, tem como área de competência o desenvolvimento de “políticas de comércio exterior” e a “regulamentação e execução das atividades relativas ao comércio exterior”, sendo que no referido Ministério há o Departamento de Comércio Exterior - Decex, responsável pelo monitoramento e pela fiscalização do comércio exterior, cujas normas, por si editadas, são imediatamente aplicáveis, em especial aquelas proibitivas de trânsito de bens no território nacional.

Assim, amparado pelo Decreto 99.244/90[29] (alterado pelo Decreto n. 99.267/90), o Decex no uso de suas atribuições restringiu a emissão de licenças de importação e exportação de bens que poderiam causar danos ao País e editou a Portaria n. 8/91, que obstou, por sua vez, a importação de bens de consumo usados, entre eles, o pneu.

Deste modo, não se há que falar em ofensa ao princípio da legalidade, pois é expresso o fundamento no Decreto 99.244/90, editado em face do artigo 237 da Constituição, matéria esta que já foi, inclusive, examinada pelo Supremo Tribunal que, no julgamento do Recurso Extraordinário n. 202.313, Relator o Ministro Carlos Velloso (Plenário, DJ 19.12.1996) e do Recurso Extraordinário n. 203.954, Relator o Ministro Ilmar Galvão (Plenário, DJ 7.2.1997), decidiu pela constitucionalidade das Portarias Decex n. 8/91 e Secex n. 8/00, que vedam a importação de bens de consumo usados, tendo aquelas normas fundamento direto na Constituição.

Lembre-se, ademais, que em 1995 foi editada Portaria Interministerial n. 3/95, entre os Ministérios da Fazenda e o Ministério da Indústria, do Comércio e do Turismo, impedindo a importação de qualquer bem de consumo usado.

Noutro turno, sustenta a relatora, a Convenção da Basiléia, da qual o Brasil é signatário, determinou a adoção de procedimentos para o controle de resíduos perigosos, o que deu ensejo à edição da Resolução CONAMA[30] n. 23/1996 que, dentre outras providências, proibiu a importação de pneus usados. Posteriormente, o CONAMA editou duas outras resoluções, a de n. 258/1999 e a de n. 301/2002 que, diferentemente do alegado pelos arguidos, não revogaram, ao contrário confirmaram, a resolução n. 23/1996.

A única exceção a essa expressa proibição foi dada em razão da decisão do Tribunal Arbitral ad hoc do Mercosul que, como dito diversas vezes, obrigou o Brasil a permitir a importação de pneus reformados (não para uso como matéria-prima) provenientes de países integrantes do bloco do cone sul, não podendo tal exceção, destaca a Ministra Cármen Lúcia (p. 127), ser caracterizada como prática discriminatória relativamente aos países não integrantes do Mercado Comum do Sul.

Corroborando o dado trazido pela AGU de que a importação de pneu usado é mais barata do que a compra do mesmo material no mercado interno, a relatora põe em dúvida a real justificativa para tal “generosidade” dos países exportadores, acaso esse material não fosse prejudicial à saúde e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado[31].

Nessa esteira, pondera a relatora, cai por terra o argumento dos arguidos de que a proibição da importação feriria os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, pois, como afirma em seu voto (p. 132), “se fosse possível atribuir peso ou valor jurídico a tais princípios relativamente ao da saúde e do meio ambiente ecologicamente equilibrado preponderaria a proteção desses, cuja cobertura, de resto, atinge não apenas a atual, mas também as futuras gerações.”

A título de conclusão a Ministra relatora conduz seu raciocínio do seguinte modo:

Os preceitos fundamentais da saúde e do meio ambiente ecologicamente equilibrado são constitucionalmente protegidos e estão a ser descumpridos por decisões que, ao garantir a importação de pneus usados ou remoldados, afronta aqueles direitos fundamentais.

A Arguente demonstrou que a) a gama de elementos que compõem o pneu, dando-lhe durabilidade, é responsável pela demora na sua decomposição quando descartado em aterros – mais de cem anos -; b) a dificuldade de seu armazenamento impele a sua queima, o que libera substâncias tóxicas e cancerígenas no ar; c) quando compactados inteiros, os pneus tendem a voltar à sua forma original e retornam à superfície, ocupando espaços que são escassos e de grande valia, em especial nas grandes cidades; d) a desintegração dos pneus para serem depositados em aterros é procedimento de alto custo; e) os pneus inservíveis e descartados a céu aberto são ideais para o criadouro de insetos e outros vetores de transmissão de doenças, em razão de seu formato; f) se de um lado o alto índice calorífico dos pneus é interessante para as indústrias cimenteiras, quando queimados a céu aberto, tornam-se focos de incêndio difíceis de extinguir, podendo durar dias, meses e até anos; g) o Brasil produz pneus usados em quantitativo suficiente para abastecer as fábricas de remoldagem de pneus, do que decorre não faltar matéria-prima a impedir a atividade econômica.

[...]

30. Os Interessados insistem em que o que os leva a demandar a permissão para continuar a importação de pneus usados é a má qualidade das rodovias brasileiras, que deterioram bastante os pneus a serem remoldados. Na audiência pública realizada pelo Supremo Tribunal, especialistas informaram que os pneus usados importados não são previamente classificados antes da importação, havendo resíduo da ordem de 30% a 40% nos contêineres, que são simplesmente passivo ambiental, inservível para remoldagem. Isso apenas reforça a conclusão de afronta aos preceitos fundamentais relativos à saúde e ao meio ambiente. Ao contrário do que sustentam eles, as decisões judiciais que autorizaram as importações de pneus usados é que afrontam o art. 170 da Constituição brasileira, pois o material refugado agride o meio ambiente, causa impacto ambiental, contrariando o disposto no inciso VI do art. 170, bem como aos arts. 196 e 225, especialmente. Ademais, essa transferência de material inutilizável representa, por si só, afronta ao disposto na Convenção da Basiléia, da qual o Brasil é signatário.

[...]

Assim, apesar da complexidade dos interesses e dos direitos envolvidos, a ponderação dos princípios constitucionais demonstra que a importação de pneus usados ou remoldados afronta os preceitos constitucionais da saúde e do meio ambiente ecologicamente equilibrado e, especificamente, os princípios que se expressam nos arts. 170, inc. I e VI e seu parágrafo único, 196 e 225, da Constituição do Brasil.

25. Pelo exposto, encaminho voto no sentido de ser julgada parcialmente procedente a presente Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental para:

a) declarar válidas constitucionalmente as normas do art. 27, da Portaria DECEX n. 8, de 14.05.1991; do Decreto n. 875, de 19.7.1993, que ratificou a Convenção da Basiléia; do art. 4º, da Resolução n. 23, de 12.12.1996; do art. 1º, da Resolução CONAMA n. 235., de 7.1.1998, do art. 1º, da Portaria SECEX n. 8, de 25.9.2000; do art. 1º da Portaria SECEX n. 2, de 8.3.2002, do art. 47-A no Decreto n. 3.179, de 21.9.1999 e seu 2º, incluído pelo Decreto 4592, de 11.2.2003; do art. 39, da Portaria SECEX n. 17, de 1.12.2003; e do art. 40, da Portaria SECEX n. 14, de 17.11.2004 com efeitos ex tunc;

b) declarar inconstitucionais, com efeitos ex tunc, as interpretações, incluídas as judicialmente acolhidas, que, afastando a aplicação daquelas normas, permitiram ou permitem a importação de pneus usados de qualquer espécie, aí incluídos os remoldados, ressalva feita quanto a estes àqueles provenientes dos Países integrantes do MERCOSUL, na forma das normas acima listadas.

c) Excluo da incidência daqueles efeitos pretéritos determinados as decisões judiciais com trânsito em julgado, que não estejam sendo objeto de ação rescisória, uma vez que somente podem ser objeto da Arguição de Preceito Fundamental atos ou decisões normativas, administrativas ou judiciais impugnáveis judicialmente. Ora, as decisões cobertas pelo manto constitucional da coisa julgada, cujo conteúdo já tenha sido executado e exaurido o seu objeto, já não podem ser desfeitas, menos ainda pela via eleita pelo Arguente, que, de toda sorte, teve opções processuais para buscar o seu desfazimento, na forma da legislação vigente, não se tendo a comprovação de que tenha buscado atingir tal objetivo ou que tenha tido sucesso em suas ações.

Não se incluem nesta exceção conteúdos decisórios em aberto ou dispostos de forma ilimitada para o futuro, pois a partir do que aqui definido ficam proibidas importações de pneus, dando-se o estrito cumprimento das normas vigentes com os contornos e exceções nela previstas (p. 135-140).

O Ministro Eros Grau[32], por sua vez, ao trazer em mesa seu voto vista acompanhando a relatora na sua conclusão, fez questão de destacar que não acatava as razões de decidir do voto da Ministra Cármen Lúcia, pois não entendia possível a chamada ponderação de princípios defendida pela referida magistrada[33].

No caso, ponderou o Ministro Eros Grau que a decisão acerca da inconstitucionalidade dos atos tidos por descumpridores dos preceitos fundamentais referentes à defesa da saúde e do meio ambiente ecologicamente equilibrado devem surgir não de sua ponderação com relação à livre iniciativa e liberdade de comércio, pois o que se pondera são valores e não princípios e a ponderação de valores é discricionária, o que gera, por consequência, insegurança jurídica.

No caso, entende o referido Ministro que a inconstitucionalidade advém da interpretação da totalidade da Constituição, do todo que a Constituição é.

Em seu voto (p. 04), afirma textualmente que:

Interpretar o direito é formular juízos de legalidade, ao passo que a discricionariedade é exercitada mediante a formulação de juízos de oportunidade. Juízo de legalidade é atuação no campo da prudência, que o intérprete autêntico desenvolve contido pelo texto.

Ao contrário, o juízo de oportunidade comporta uma opção entre indiferentes jurídicos, procedida subjetivamente pelo agente. Uma e outra são praticadas em distintos planos lógicos.

Segundo defende, o direito moderno é racional, pois pautado por critérios de legalidade que permitem uma previsibilidade e calculabilidade em relação aos comportamentos humanos, deixando de ser, portanto, arbitrário e aleatório em suas decisões[34]. Nesse sentido, reafirma a impossibilidade de ponderação entre princípios, mas de interpretação sistêmica. Todavia, como dito, embora discorde das razões de decidir, conclui da mesma forma que a Ministra relatora concluiu.

Noutro turno, o Ministro Gilmar Mendes[35], acompanhando na íntegra o voto da Ministra Cármen Lúcia, desenvolve uma fundamentação muito próxima à externada pela Ministra relatora e, consequentemente, acatando diversos argumentos deduzidos na inicial da ADPF pela Advocacia-Geral da União.

De início aduz ser inequívoca a relevância da questão posta à análise da Corte sob a ótica da proteção aos preceitos fundamentais do direito à saúde e a um meio ambiente ecologicamente equilibrado em sua interpretação sistêmica especialmente com relação ao princípio da liberdade de iniciativa. E acrescenta, tal qual observado pela AGU em sua manifestação, que a Corte já fixou a desnecessidade de o direito fundamental, que segundo entende “rima” com preceito fundamental, estar elencado no rol do art. 5º, já que o mesmo não é taxativo a teor do que dispõe o seu § 2º[36].

Na sequência, após destacar a especial atenção com que a preservação ambiental e a saúde pública são tratadas pela Constituição, destaca que na inicial da AGU é dito que a comercialização de pneus usados no Brasil contribui para incrementar o risco ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e, consequentemente, à saúde, já que não há meio seguro e eficaz de eliminação dos resíduos apresentados pelos pneumáticos de qualquer espécie. Deste modo, diante da potencial nocividade dos referidos resíduos, o controle de sua produção, consubstanciado no caso pela vedação de sua importação, seria medida condizente com a proteção à saúde e ao meio ambiente preconizadas pela Constituição Federal. Ademais, destaca o Ministro Gilmar Mendes, não se pode esquecer que a proibição de importação dos pneumáticos é medida que milita em favor da proteção à saúde humana na medida em que impede a criação de ambiente favorável à proliferação de doenças tropicais, como é o caso da dengue[37].

Nesse sentido, assevera que a preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado é cofator necessário à proteção do direito à saúde, bem como à execução de políticas públicas sanitárias, sendo que a interpretação do artigo 170 que veicula a liberdade de iniciativa e de comércio sofre relevantes temperamentos constitucionais, uma vez que tal prerrogativa deve restar harmonizada com a defesa do meio ambiente, nos termos do seu inciso VI, tal qual apontado pela Advocacia-Geral da União[38].

Lembrando o princípio da responsabilidade e da solidariedade intergeracional de proteção do meio ambiente, destaca a faceta da prevenção e da precaução que permeiam a norma Constitucional inserta no art. 225 e, de igual modo, aduz que a redação dada ao art. 196 da Lei Fundamental aponta para um dever geral de garantia da saúde, sendo, ambas, determinações constitucionais que visam evitar riscos, o que, via de consequência, autoriza o Estado a adotar medidas de proteção ou prevenção à saúde e ao meio ambiente, inclusive quanto ao desenvolvimento técnico ou tecnológico, o que deságua, por conseguinte, na utilização (importação) de pneumáticos de qualquer espécie[39].

Nesse contexto, traz à baila o inciso V do § 1º do art. 225 da Constituição, que determina expressamente que o Poder Público poderá controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias nocivas à vida, à saúde e ao meio ambiente, de modo que a noção de controle de produção e de comercialização veicula em seu significado a possibilidade de restrição da importação de bens que ao menos tragam potencialmente riscos aos bens constitucionalmente tutelados (voto do ministro Gilmar Mendes, p. 16-17).

Por fim, o Ministro Gilmar Mendes tratando dos atos normativos federais que disciplinam a importação de pneus usados e sua relação com uma provável inviabilização da atividade comercial, acentua que:

Os atos normativos federais aqui discutidos não proíbem, contudo, a comercialização dos pneus usados de qualquer espécie, oriundos do mercado nacional. A principal alegação econômica dos interessados no processo de importação seria a baixa qualidade dos pneus usados de origem nacional em relação aos pneus usados importados.

Contudo, apreende-se que, em tese, não se inviabiliza a atividade comercial das empresas de reforma de pneus usados, mas restringe-se sua liberdade de livre iniciativa de importação ilimitada daqueles bens, em razão da proteção e da defesa da saúde, do meio ambiente e, em última instância, da soberania nacional junto à OMC. (voto do Ministro Gilmar Mendes, p. 21)

Importante mencionar que o Ministério Público Federal[40] aderiu à tese sustentada pela AGU e, em seu, parecer opinou pela total procedência da ADPF.

Em seu parecer, o Procurador-Geral da República afirma, acerca da importação de pneumáticos usados, não ter dúvidas quanto ao potencial extremamente prejudicial à saúde e ao meio ambiente, tanto em face da sua complexa composição química, cuja queima produz elevados índices de toxicidade, somada às condições físicas do produto e sua tendência ao amontoamento em larga escala, bem como, no que toca ao amontoamento referido, por ser berço para procriação de insetos vetores de doenças tropicais infectocontagiosas[41].

Além disso, o parquet advoga o cabimento da medida judicial proposta pela AGU, “ante a provocação articulada de questão constitucional viva, de relevo incontestável[42], [...], avaliado sob a perspectiva – ilegítima – por meio de decisões judiciais reiteradas que, em seu conjunto, estabelecem quadro de preocupante reversão de determinada política pública” (Parecer do PGR, p. 08).

Ingressando no mérito da questão posta em discussão, o Ministério Público afirma que a inexistência de destinação viável para os pneumáticos usados ou reformados, finalizada a vida útil econômica do bem, é um argumento insuperável no que toca ao acerto da medida governamental de vedação de sua importação. Ademais, não se sustenta o argumento de que a utilização/importação de pneus usados diminuiria a fabricação de pneus novos, o que implicaria em um ganho ao meio ambiente, pois, como sustentado pela AGU, cerca de 30% dos pneumáticos usados importados já ingressam em solo nacional em estado imprestável para qualquer utilização. Ou seja, cerca de 30% do que se importa é essencialmente lixo, nocivo ao meio ambiente e, por consequência, à saúde humana[43].

Deste modo, aduz que, de saída, a importação de material absolutamente inutilizado para armazenamento em terras brasileiras milita contra a responsabilidade e solidariedade intergeracional na proteção ao meio ambiente prevista no texto do art. 225, caput, razão pela qual a atividade econômica desenvolvida pelos importadores de pneumáticos usados deveria ser contida[44]. E, nesse contexto, prossegue em sua linha de raciocínio afirmando que a proibição da importação do referido material não anula a iniciativa privada nesse setor de comércio e indústria, já que o solo nacional é fértil na produção de pneumáticos reformáveis, sendo que a insistência na importação desse produto reflete exclusivamente interesses econômicos individuais, focados na redução do preço da referida matéria-prima[45].

Por fim, o Ministério Público Federal defende que as decisões judiciais que admitem a importação de pneumáticos de modo amplo nulificam a política pública de defesa do meio ambiente e proteção à saúde pretendidas pelo Estado brasileiro, sendo equivalente a dizer, especialmente à comunidade internacional, que a atividade econômica pode ser exercida ainda que contrarie decisão soberana adotada pelo Brasil em sentido diametralmente oposto. Ademais, a mencionada violação não afeta tão só os artigos 196 e 225 da Constituição, mas o próprio dispositivo constitucional que regula a livre iniciativa e a liberdade da atividade comercial, que deverá observar tanto a soberania nacional quanto a defesa do meio ambiente, como princípios fundantes para o seu exercício[46].

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Sobre o autor
Filipo Bruno Silva Amorim

Procurador Federal, atualmente exercendo o cargo de Vice-Diretor da Escola da Advocacia-Geral da União. Bacharel em Direito pela UFRN. Especialista em Direito Constitucional pela UNISUL. Mestre em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMORIM, Filipo Bruno Silva. ADPF nº 101: a atuação da AGU no caso da importação de pneus usados. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3407, 29 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22895. Acesso em: 16 abr. 2024.

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