Artigo Destaque dos editores

“Disponibilidade obstétrica”: uma análise à luz da ética médica, da regulamentação da ANS e do direito do consumidor

Exibindo página 2 de 3
30/04/2014 às 15:22
Leia nesta página:

6 – Da análise da cobrança da disponibilidade obstétrica sob a luz do direito do consumidor.

Ultrapassada a análise da cobrança da “disponibilidade obstétrica” sob a luz da ética médica e da regulamentação da ANS, cabe, ainda, a análise a luz do direito do consumidor.

Em que pese ainda haver questionamentos acerca da existência de relação de consumo na relação médico-paciente[14],[15], é majoritária a posição de que a atividade médica é considerada prestação de serviço para fins de aplicação do Código de Defesa do Consumidor, tendo o profissional liberal, contudo, tratamento diferenciado no Código de Defesa do Consumidor - CDC.[16]

Para a análise do tema, compete identificar os principais preceitos aplicáveis à relação em apreço e eventuais violações ao CDC advindas da adoção da cobrança da disponibilidade obstétrica.

Primeiramente, cumpre citar os objetivos e princípios da Política Nacional das Relações de Consumo - PNRC (art. 4º) e dos direitos básicos dos consumidores (art. 6º).

São princípios da PNRC, aplicáveis ao caso, o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo, a harmonização dos interesses dos participantes da relação de consumo, o respeito à sua saúde, a transparência e harmonia das relações de consumo, a boa-fé e o direito à educação do consumo e a informação.

Quanto aos direitos básicos, ressalta-se o direito à informação e educação, à proteção contratual a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como à liberdade de escolha e a igualdade nas contratações.

Pois bem. De todos os direitos e garantias citados, temos que o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor, a harmonização dos interesses na relação de consumo, o direito à informação e a garantia da atuação leal do fornecedor são basilares e deles derivam todos os demais direitos.

Considerando que o presente estudo não se trata de uma análise de caso concreto, mas a apresentação abstrata da polêmica, objetivar-se-á a conciliação da conduta realizada pelos médicos (com aval do CFM) e os princípios basilares acima descritos.

Primeiro princípio que deve ser avaliado é o da harmonização dos interesses dos participantes da relação de consumo.

O consumidor que contrata um plano de saúde, regra geral, procura a garantia de atendimento às suas necessidades quando padece de um mal. Diz-se garantia do atendimento porque, independente do valor de mercado do procedimento, estando este previsto no rol mínimo editado pela ANS a OPS terá obrigação de custeá-lo. Neste tipo de contrato, o consumidor não pretende o atendimento pelo médico A ou B, mas a garantia do seu atendimento quando necessário. A contratação do plano visa garantir o consumidor de um imprevisto o qual, muitas vezes, pode não ter condições de arcar financeiramente.

Por outro lado, o médico ao celebrar o contrato com a OPS tem a liberdade de determinar, de acordo com a contraprestação financeira respectiva, quais procedimentos irá prestar aos beneficiários. Embora legalmente habilitado a realizar todos os procedimentos (de sua especialidade) previstos no rol da RN 338/13, possui o direito de não realizar aqueles que não deseje, qualquer que seja o motivo, inclusive por não concordar com a remuneração respectiva, configurando infração, na forma da Resolução Normativa 124/06 da ANS, qualquer violação à liberdade de atividade do médico.[17]

Assim, considerando os legítimos interesses dos participantes da relação de consumo ora exposta, verifica-se que o direito do consumidor será respeitado acaso a OPS indique qualquer profissional especialista para realização do procedimento que o consumidor necessite, sendo, também, permitido ao médico, no momento da celebração do contrato de credenciamento, indicar apenas os procedimentos que tenha efetivo interesse (por questões pessoais, técnicas e, inclusive, econômicas) de realizar em nome da OPS.

Cabe ressaltar que a defesa do consumidor não pode ser utilizada de forma a alargar indiscriminadamente as obrigações do fornecedor sob risco de inviabilizar a própria prestação do serviço. Quanto maior os ônus a cargo do fornecedor, maior será o preço do serviço. Portanto, a defesa do consumidor como princípio garantidor da ordem econômica (art. 170, V da CF/88) deve garantir não só os direitos do consumidor, mas também um equilíbrio entre prestação (pelo consumidor) e contraprestação (pelo fornecedor) de forma a garantir o acesso daqueles (consumidores) aos produtos e serviços a preços justos e acessíveis.

Diferente do que afirmam alguns órgãos de defesa do consumidor, o médico não tem obrigação de realizar procedimentos os quais não foram expressamente dispostos no contrato de credenciamento. Estender ao médico a obrigação da realização de qualquer procedimento, além de violar a sua liberdade contratual e profissional, desequilibraria a harmonia da relação de consumo.

Segundo princípio a ser avaliado, é o da vulnerabilidade do consumidor. Segundo ensina a doutrina de Cláudia Lima Marques, Herman Benjamim e Bruno Miragem[18], a vulnerabilidade do consumidor pode ser Técnica, Jurídica e Fática. Regra geral a proteção do consumidor em relação à sua patente vulnerabilidade se dá através da obrigação de fornecimento de informações claras, precisas e ostensivas, em linguajar ordinário de fácil entendimento, a proibição de determinadas condutas (práticas abusivas) e da proibição de inserção, em contratos de consumo, de determinadas cláusulas, dentre outros mecanismos.

É patente no caso da contratação de planos de saúde, a ocorrência da vulnerabilidade do consumidor seja técnica (considerando a especificidade dos serviços da área de saúde) quanto fática, quanto jurídica, em especial pela complexidade destes contratos. Para reduzir a disparidade informacional, exige-se que o consumidor receba educação para o consumo por meio de cartilhas e documentos de fácil linguagem (art. 4º e 6º), que receba informações sobre o produto ou serviço em linguagem clara e precisa (art. 6º) e que tenha oportunidade de tomar conhecimento prévio do conteúdo do contrato, tendo plena ciência do seu sentido e alcance (art. 46).

Assim, em relação ao caso em debate, o consumidor somente não se sentirá lesado e efetivamente entenderá que a proposta do médico de pagamento pela disponibilidade que lhe é oferecida se: 1) Antes do processo de contratação do plano de saúde lhe for disponibilizado cartilhas explicativas sobre o contrato a ser celebrado; 2) Durante o processo de contratação lhe for explicado a dinâmica essencial do serviço, que é a disponibilização de profissionais (de forma impessoal) para realização de todos os procedimentos definidos como obrigatórios pela ANS. 3) Durante o processo de contração lhe for apresentada a relação dos profissionais e estabelecimentos credenciados e, principalmente, quais procedimentos estão habilitados a fazer; 4) Durante a execução do contrato informar ao consumidor qualquer modificação na rede de prestadores de serviços e prestar os esclarecimentos que forem necessários.

O terceiro princípio diz respeito à atuação leal, de boa-fé, do fornecedor em todas as fases da contratação (pré-contratual, contratual e execução do contrato). A boa-fé na fase pré-contratual está ligada ao momento da oferta e da publicidade. É o momento que, muitas vezes o fornecedor procura “seduzir” o consumidor com falsas promessas ou então gerando confusão pela falta ou mesmo excesso de informação. Durante a fase contratual significa a redação do contrato de forma a obter a compreensão do objeto, seu alcance e sentido, sem cláusulas dúbias, restritivas de direito ou abusivas. Por fim, na fase pós-contratual ou de execução do contrato é a manutenção das legitimas expectativas do consumidor (princípio da confiança). Ressalte-se, neste ponto, a ênfase à expressão “legítimas expectativas”, já que o consumidor, quando devidamente informado e esclarecido, não cria falsas expectativas sobre o objeto contratual.

Quanto ao princípio da confiança, transportando para o caso em discussão, seria não só informar o consumidor das eventuais modificações da rede de prestadores de serviço, mas também de manter o mesmo nível de qualidade dos profissionais ou estabelecimentos para realização dos procedimentos que o consumidor necessite.

Poder-se-ia relatar uma série de outros princípios e sub-princípios aplicáveis na esfera da defesa do consumidor mas, para avaliação do caso em debate, são os acima citados os mais relevantes de serem mencionados.

Concluindo, observa-se que, respeitado o direito do consumidor à informação clara e precisa, e observada a redação clara e objetiva das cláusulas contratuais (contrato de plano de saúde), a cobrança pelo médico por serviço distinto daquele previsto contratualmente, (prestação de serviço em caráter pessoal por profissional que não se obrigou a realizar o procedimento em nome do plano) não se mostra ilegal, nem mesmo abusiva.

Repita-se, mais uma vez, que a análise aqui realizada não se refere a um caso concreto. O que se pretende demonstrar é que, em abstrato, obedecidas as regras éticas, a legislação de regência do mercado (normativas da ANS) e à legislação de proteção ao consumidor, é juridicamente viável que um profissional médico OFEREÇA ao consumidor um serviço o qual o mesmo tenha interesse, em razão da relação de confiança naquele profissional, estando, ainda, este consumidor ciente, que 1) o profissional não realiza o procedimento pelo plano; 2) o serviço pode ser prestado gratuitamente por outro médico credenciado pelo plano, 3) a contratação de serviço de forma particular é opção do consumidor.


7 – Conclusões

Diante de tudo o que foi discorrido conclui-se que é possível (sob a ótica ética, regulamentar e legal), se observadas todas considerações acima expostas, que consumidor e médico celebrem contrato visando obter deste segundo, a garantia de acompanhamento pessoal durante o período final da gravidez.

Todavia, algumas precauções devem ser tomadas pela OPS e pelo médico.

PRIMEIRO, médico e OPS devem celebrar contrato escrito que contenha as cláusulas mínimas exigidas pela RN 71/04 da ANS.

SEGUNDO, o consumidor deve ser informado pela OPS, no momento da contratação, acerca da rede de prestadores credenciados informando, no mínimo: 1) Nome; 2) Especialidade e nº do CRM; 3)Procedimentos que o médico/estabelecimento realiza; 4) Locais, dias e horários de atendimento; 5) modalidade de atendimento (ambulatorial, hospitalar e urgência).

TERCEIRO, o médico no primeiro contato com o beneficiário do plano de saúde deve esclarecer acerca dos dados acima referidos de forma a permitir ao beneficiário do plano de saúde que decida, conscientemente, se deseja prosseguir com o atendimento ou se deseja se informar com a operadora acerca de outro profissional que realize todos os procedimentos desejados ou necessários.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

QUARTO, a OPS deve cumprir os prazos máximos para realização dos procedimentos na forma do art. 3º da RN 259/11.

QUINTO, a OPS na hipótese de indisponibilidade temporária ou inexistência, no município, de profissional credenciado apto a realização de procedimento previsto no Rol do anexo I da RN 338/13 deverá tomar as providências previstas na RN 259/11 para garantir a execução do procedimento por profissional não credenciado ou mesmo por profissional em outro município, sempre sem ônus ao consumidor.

SEXTO, deverá a OPS manter canal de atendimento ao cliente para esclarecimento aos beneficiários dos planos por ela comercializados, das informações descritas nos itens anteriores.

SÉTIMO, que tanto OPS quanto médico orientem o consumidor quanto às respectivas obrigações e deveres. Ademais, devem esclarecer ao beneficiário do plano que qualquer serviço não coberto pelo plano, isto é, não constante do rol da RN 338/13 ou no contrato, será objeto de negociação direta com o médico.

OITAVO, nos casos em que o médico não realize procedimentos de cobertura obrigatória pelo Rol da RN 338/13, o mesmo deve, primeiramente, informar ao paciente que este poderá procurar a OPS para receber indicação de outro profissional da rede credenciada apto a realizar o procedimento sem ônus. Somente depois de prestada esta informação, acaso o paciente ainda assim, conscientemente, deseje a realização do procedimento em caráter pessoal e particular, o médico deverá colher do paciente Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE, esclarecendo as circunstâncias da celebração do contrato particular de prestação de serviços médicos.

De forma a sistematizar as conclusões supra, foram produzidos dois modelos de documentos distintos que podem ser utilizados por médicos para prestar os esclarecimentos acima referenciados[19].

Importante esclarecer, quanto ao modelo de TCLE constante no anexo IV deste estudo, que o mesmo tem caráter mais amplo daquele constante no anexo do Parecer 39/12 do CFM. Isto porque, o referido parecer, em que pese correto em seu conteúdo, não abrange de forma completa a questão, sendo ainda, em certos pontos, confuso em especial por considerar, em algumas passagens, a disponibilidade como procedimento, o que por certo não é.

Outra questão que deve ser frisada é o cuidado do médico ao indicar, no contrato com a OPS, os dados obrigatórios segundo a RN71/04 a fim de não apresentar incongruências ou incompatibilidades que podem ser questionadas no futuro. Se o médico informa, por exemplo, que realiza consultas (pré-natal), acompanhamento ao trabalho de parto, parto por via vaginal, e parto cesáreo e indica que o atendimento é realizado apenas no consultório às segundas, quartas e sextas (exceto feriados), das 08 às 12h, apenas com horário pré-agendado, na modalidade “atendimento ambulatorial”, observa-se uma incongruência, já que os procedimentos referentes ao trabalho de parto e parto ocorrem em ambiente hospitalar e em circunstancia, muitas vezes, emergencial.

Para mostrar coerência, portanto, o médico que não deseja atender a casos inesperados, deve definir com clareza os dias e horários de atendimento ambulatorial (indicando os devidos locais) bem como os dias e horários de atendimento hospitalar (indicando o hospital) indicando, ao fim, não realizar procedimentos em caráter emergencial.

Por fim, cabe fazer uma crítica ao posicionamento da ANS[20] sobre a questão da “disponibilidade obstétrica”. Primeiro, em que pese a competência do referido Órgão Público em fiscalizar a atuação das OPS, não compete à mesma fiscalizar a atuação médica nem mesmo criticar, de público, parecer emitido pelo Órgão de fiscalização da atividade médica[21]. Ademais, é deselegante um Órgão Público afirmar, sem ter conhecimento do caso concreto, e pior, sem o devido contraditório e ampla defesa, que as OPS devem descredenciar os médicos que cobrem pela “disponibilidade obstétrica”[22],[23], já que, ao menos em tese, trata-se de conduta aceita pelo órgão de fiscalização profissional. Prosseguindo, novamente extrapola sua competência legal ao afirmar que a disponibilidade do médico para acompanhamento da gestante no fim da gestação estão incluídos no procedimento de “assistência ao trabalho de parto”. Faltou cuidado de consulta à doutrina médica para esclarecer o que, efetivamente, se entende pelo procedimento. Como visto pela lição de ZUGAIB (2012) e REZENDE (2013), por certo a disponibilidade do médico para, a qualquer momento, ser acessado pela paciente, em nada se assemelha ao procedimento de assistência ao trabalho de parto. Por fim, outra impropriedade é o fato da ANS se imiscuir em relação ao eventual descumprimento ou fiscalização do contrato particular de prestação de serviços médicos e do TCLE, já que esta competência é do CFM e, eventualmente, dos órgãos de defesa do consumidor. O somatório de todas estas questões gera uma dúvida. Afinal de contas, a posição da ANS é mesmo pela defesa do mercado de saúde suplementar sadio, isto é, um mercado onde consumidores, OPS e médicos interagem com harmonia e em benefício mútuo?

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FLORIANO, Eduardo. “Disponibilidade obstétrica”: uma análise à luz da ética médica, da regulamentação da ANS e do direito do consumidor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3955, 30 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27875. Acesso em: 22 dez. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos