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O caso da gestante temerosa - ou uma das diversas formas da liberdade de locomoção

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31/05/2014 às 15:15
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Decisão judicial importante entendeu que o marido da gestante acompanhar sua esposa na sala de parto é uma forma de exercício do direito de locomoção.

RESUMO: Este artigo apresenta um estudo de caso bem sucedido de impetração de um habeas corpus preventivo fora da seara criminal. Ele esta organizado em dois tópicos: Da Teoria, e Da Prática. Na primeira foi exposto o instituto do Habeas Corpus, seu histórico, suas modalidades (repressiva e preventiva), e sua área de aplicação. Quanto à Prática, é apresentado ao leitor o caso, conforme o autor tivera contato com ele, em seguida foi elencado a solução jurídica idealizada, sua execução (a confecção da peça processual), e seus resultados no mundo sensível.

Palavras-chave: Habeas Corpus, preventivo; não-criminal; liberdade de locomoção, ir e vir.


INTRODUÇÃO

O presente caso apresenta uma situação particular de violação de liberdade de locomoção, que fora solucionado por meio do remédio constitucional denominado habeas corpus. As peculiaridades são: a) impetração na forma preventiva (pois havia apenas a ameaça de lesão, e não uma lesão consumada); b) por mostrar uma aplicação do instituto fora da seara criminal, onde comumente é utilizado; c) dificuldade de se perceber a ofensa a liberdade de ir e vir, que, embora escondida, estava presente bastando apenas uma devida ponderação por parte do estudioso quando a abrangência do direito de ir e vir para vislumbrá-la.

Antes de se apresentar o caso foi traçado um histórico do habeas corpus iniciado na Magna Charta do Rei João Sem Terra de 1215, com destaque para seu desenvolvimento no Brasil, em específico sua previsão legal; a compreensão de Rui Barbosa que sua aplicação devia incluir todas as garantias individuais e sua posterior limitação de escopo à liberdade de locomoção.

O desenvolvimento do artigo encontra-se estruturado a partir da situação problema – que será apresentada como o fora ao autor -, em seguida será elencada a solução jurídica idealizada, sua execução (a confecção da peça processual), e seus resultados no mundo sensível, i.e., para a conclusão: a concessão da ordem autorizando o marido da gestante a acompanhá-la durante o trabalho de parto.

 


1. Da teoria

Dentre todas as peças processuais existentes em nosso ordenamento, seguramente o habeas corpus é a mais intrigante. Estrangeiro na origem, democrático em seus requerimentos, célere em seu trâmite, informal em sua confecção, e eficaz em suas vitórias, é fácil perceber o motivo de seu apelido de “remédio heroico”.

A origem do instituto é difícil de precisar havendo vestígios seus ainda no Direito romano, doutrinariamente, contudo estabeleceu-se a Magna Charta de 1215 como seu marco inicial:

... a mais lembrada é a do “Capítulo XXIV da Magna Carta, que, por pressão dos barões, foi outorgada pelo Rei João sem Terra em 19 de junho de 1215 nos campos de Runnymed”. Este é o antecedente remoto mais identificado com o habeas corpus. No entanto, há quem indique outras fontes, em especial”no Direito Romano”, que autorizava ao cidadão “reclamar a exibição do homem livre detido ilegalmente  Poe meio de uma ação privilegiada que se chamava interdictium libero homine exhibendo”... (TÁVORA; ALENCAR, 2011, p. 1.112)[1]

Bulos (2010, p.713) é categórico ao afirmar que “na realidade, a origem do habeas corpus está na Magna Charta Libertatum”. Pontes de Miranda, contudo é comedido e afirma:

Os princípios essenciais do habeas corpus vêm, na Inglaterra, do ano 1215. Foi no § 29 da Magna Charta libertatum que se calcaram, através das idades, as demais conquistas do povo inglês para a garantia prática, imediata e utilitária da liberdade física (MIRANDA, 1999, p.43).

Como era de se esperar, razão cabe a Pontes de Miranda. A carta de 1215, não faz menção à expressão habeas corpus e apenas garante, em seu parágrafo 29, o devido processo legal e o julgamento por um júri de iguais:

Nenhum homem livre será detido, ou aprisionado, ou privado de sua liberdade, ou direitos, ou costumes, ou considerado fora da lei, ou exilado, ou de qualquer outra forma destruído, nem nós nos sobrepujaremos sobre ele, nem o condenaremos, salvo por um legal julgamento por seus iguais, ou pela lei da terra. Nós não venderemos a qualquer homem, e não negaremos nem atrasaremos a qualquer homem a Justiça e o Direito. (MAGNA CHARTA LIBERTATUM, 1215, XXIX)[2][3]

Naturalmente ao se exigir o devido processo legal para cercear uma liberdade de um cidadão, qualquer cerceamento de liberdade não fundamentado em um processo será ilegal e consequentemente combatível, mas é importante destacar que não ocorreu uma positivação do meio processual capaz de atacar esta prisão ilegal. Tal registro veio apenas com o Habeas Corpus Act de 1679:

Mesmo depois da Petição de Direitos [1628], as ordens de habeas corpus eram denegadas a cada momento. Muitas vezes, o que era bem pior, desobedecidas.

[...]

Na Inglaterra, com o Habeas Corpus Act de 27 de maio de 1679, foi grande o passo que se deu para a liberdade, Daí terem-no chamado “outra Magna Carta”. A violação da liberdade passou a criar o “direito de mandado” (right to writ). (MIRANDA, 1999, p.91 e 93).

Pela citação acima, percebe-se que ainda antes da positivação do instituto (pelo ato de 1679), ele já existia. Como o objeto de estudo aqui são documentos originados na tradição common law os juristas da tradição continental devem recordar que a positivação para aquele sistema se dá após o costume ser reiterado, não é como no civil law onde a positivação cria os institutos. Assim, como se infere da própria leitura do Habeas Corpus Act de 1679 o “writ” já existia antes da formalização deste ato[4], ele não o instituiu, apenas o chancelou.

No Brasil, analogamente, a Constituição Imperial também não o previu de forma explicita, garantindo apenas a liberdade de ir e vir, o devido processo legal, bem como punições ao juiz que decretou a prisão e a quem realizou, em caso de prisão arbitrária:

Art. 179.

[...]

VI. Qualquer póde conservar-se, ou sahir do Imperio, como Ihe convenha, levando comsigo os seus bens, guardados os Regulamentos policiaes, e salvo o prejuizo de terceiro.

[...]

VIII. Ninguem poderá ser preso sem culpa formada, excepto nos casos declarados na Lei; e nestes dentro de vinte e quatro horas contadas da entrada na prisão, sendo em Cidades, Villas, ou outras Povoações proximas aos logares da residencia do Juiz; e nos logares remotos dentro de um prazo razoavel, que a Lei marcará, attenta a extensão do territorio, o Juiz por uma Nota, por elle assignada, fará constar ao Réo o motivo da prisão, os nomes do seu accusador, e os das testermunhas, havendo-as.

[...]

X. A' excepção de flagrante delicto, a prisão não póde ser executada, senão por ordem escripta da Autoridade legitima. Se esta fôr arbitraria, o Juiz, que a deu, e quem a tiver requerido serão punidos com as penas, que a Lei determinar (CONSTITUIÇÃO DO IMPÉRIO DO BRAZIL).

A Constituição Republicana foi a primeira que previu explicitamente o remédio no parágrafo 22 de seu artigo 72, e desde então, todas as constituições brasileiras o fizeram:

Art 72 –

[...]

§ 22 - Dar-se-á o habeas corpus , sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência ou coação por ilegalidade ou abuso de poder  (CONTITUIÇÃO DE 1891).

Importante destacar que o texto da Constituição de 1988 pouco alterou o texto de 1891[5]. Esta carta estabelece os parâmetros do habeas corpus na atualidade e condensa considerável quantidade de informações em sua previsão. Inicialmente o instituto tem como objeto a proteção da liberdade de ir e vir, não do devido processo legal, e acima de tudo, ele não possui caráter recursal, não sendo técnico usá-lo para analisar o mérito de uma causa, mas apenas a violação a liberdade de locomoção[6]. Ele é uma peça constitucional, não criminal, muito embora seu uso seja mais comum na seara penal (afinal é justamente esta a área do direito que limita a liberdade de ir e vir, objeto de sua proteção) ele não se restringe a essa. E finalmente, o habeas corpus possui duas modalidades: a repressiva e a preventiva.

O cabimento deste remédio tradicionalmente fora tema de calorosos debates, que atingiram seu ápice no enfrentamento doutrinário de Rui Barbosa e Pedro Lessa. Barbosa entendia que o instituto seria aplicado sempre que houvesse violência ou grave ameaça a direitos fundamentais, sua tese foi denominada “corrente extrapoladora” por Pontes de Miranda (1999). Em oposição havia a corrente tradicionalista que entendia ser matéria de do remédio apenas às limitações a liberdade de ir e vir, coerente com o significado do nome habeas corpus (possua/tenha/haja teu corpo). Lessa por sua vez encabeçava a linha mitigada que entendia que quando a houvesse ofensa a um direito que para ser exercido deveria o agente usar de sua liberdade de locomoção (a liberdade de ir e vir seria “direito-meio” para exercer o “direito-fim”) caberia habeas corpus.

A posição de Rui Barbosa foi excepcionalmente tolerada, mas nunca acatada pelo Supremo Tribunal Federal (BULOS, 2010, p. 713) que optara pela tese de Lessa:

Na verdade, três posições firmaram-se com o advento da Constituição republicana: alguns, como Rui Barbosa, sustentavam que a garantia deveria ser aplicada em todos os casos em que um direito estivesse ameaçado, manietado, impossibilitado no seu exercício por abuso de poder ou ilegalidade; em sentido oposto, afirma-se que o habeas corpus, por sua natureza e origem histórica, era remédio destinado exclusivamente à proteção da liberdade de locomoção; e finalmente, uma terceira corrente, vencedora no seio do Supremo Tribunal Federal, propugnava incluir na proteção do habeas corpus não só os casos de restrição da liberdade de locomoção como também as situações em  que a ofensa a essa liberdade fosse meio de ofender outro direito. Assim, exemplificava Pedro Lessa: quando se ofende a liberdade religiosa, obstando que alguém penetre no templo, tem cabimento o habeas corpus, pois foi embaraçando a liberdade de locomoção que se feriu a liberdade religiosa; quando se ofende a liberdade religiosa, porque se arrasam as igrejas, ou se destroem os objetos do culto, não é possível requerer o remédio, porque aí não esta em jogo a liberdade de locomoção das pessoas (GRINOVER, GOMES, FERNANDES, 2004, p. 347-348)

Em defesa do patrono da advocacia, naquela época inexistia o mandado de segurança[7] o que em parte poderia justificar a ampliação do cabimento intentada. Este artigo pode ser considerado um desdobramento da posição de Lessa, com a importante diferença de que no caso aqui apresentado, não se propõe proteger o direito-fim por meio do habeas corpus, mas usar deste para proteger a liberdade de ir e vir que será utilizada pelo agente para exercer um direito-fim.

Atualmente, contudo, se insiste diariamente na impetração de habeas corpus para fins outros que a proteção da liberdade de locomoção, em muitos casos apenas para se valer do rito simplificado e barato, o que ocasionou a resposta das cortes buscando fechar as possibilidades de cabimento do instituto no sentido de só aceitá-lo em casos de ofensa a liberdade de ir e vir:

O habeas corpus não é substitutivo do recurso de apelação, sendo essa a sede adequada para o conhecimento amplo de toda a matéria dos autos, permitindo a reapreciação de fatos e provas, além da possibilidade de eventualmente divergir-se dos fundamentos da sentença condenatória" (TRF/1ª Região, HC 2008.01.00.005385-7/BA, Rel. Juíza Federal Convocada Rosimayre Gonçalves de Carvalho, 4ª Turma, e-DJF1 de 22/04/2008, p. 286)

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O Excelso Supremo Tribunal Federal, em recentes pronunciamentos, aponta para uma retomada do curso regular do processo penal, ao inadmitir o habeas corpus substitutivo do recurso ordinário. Precedentes: HC 109.956/PR, 1.ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe de 11/09/2012; HC 104.045/RJ, 1.ª Turma, Rel. Min. Rosa Weber, DJe de 06/09/2012; HC 108.181/RS, 1.ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, DJe de 06/09/2012. Decisões monocráticas dos ministros Luiz Fux e Dias Tóffoli, respectivamente, nos autos do HC 114.550/AC (DJe de 27/08/2012) e HC 114.924/RJ (DJe de 27/08/2012). (STJ,  HC 177271 RJ 2010/0116334-5)

A jurisprudência do STF é dominante no sentido de que não terá seguimento habeas corpus que não afete diretamente a liberdade de locomoção do paciente (MENDES; COELHO; BRANCO, 2008, p. 522)

Esta limitação do escopo, embora devido, foi feito de forma excedida e acabou conferindo ao instituto na prática forense um caráter anti-prisional, de instrumento de combate às prisões ilegais, e não de proteção à liberdade de ir e vir conforme sua previsão constitucional. O mandado de segurança, com sua genérica missão de proteger direito líquido e certo, invadiu o território do “remédio heroico” vez que em casos de uma violação a liberdade de ir e vir não evidente, os advogados optam em regra pelo mandado de segurança ao invés de argumentarem e configurarem a violação a liberdade de locomoção. Ao tentar limitar o escopo do habeas corpus para proteger apenas a liberdade de locomoção, limitou-se o escopo da própria expressão que passou a significar apenas “legalidade da prisão”.

Deve-se registrar que liberdade de ir e vir por definição não é a condição de quem não esta detido no sistema prisional, mas a condição de poder se deslocar pelo mundo sem amarras. Há quem inclusive acrescente o verbo “ficar” na expressão “direito de ir, e vir (e ficar)” justamente demonstrando a amplitude do direito de locomoção que inclui também o direito de não se locomover, mas permanecer no local.

Este direito não é absoluto: para sair do país é necessário portar um passaporte (e possivelmente um cartão de vacina); para entrar em uma residência é necessária a autorização de seu dono; e um carro não pode trafegar em cima de uma calçada. Embora justificadas, as limitações aqui apresentadas são ao direito de locomoção, não a indefinido “direito líquido e certo” e se alguém se sentir coagido por alguma destas limitações e quiser discuti-las no judiciário deverá fazê-lo por meio do habeas corpus, e não do mandado de segurança.

Também é peculiar as duas modalidades do remédio, a repressiva e a preventiva. A primeira visa reprimir a coação ilegal, já a segunda busca garantir que a coação não se consume, ela surgiu no ordenamento brasileiro com a lei 2.033 de 1871:

DO HABEAS-CORPUS

Art. 18. Os Juizes de Direito poderão expedir ordem de habeas-corpus a favor dos que estiverem illegalmente presos, ainda quando o fossem por determinação do Chefe de Policia ou de qualquer outra autoridade administrativa, e sem exclusão dos detidos a titulo de recrutamento, não estando ainda alistados como praças no exercito ou armada.

A superioridade de grão na ordem da jurisdicção judiciária é a unica que limita a competencia da respectiva autoridade em resolver sobre as prisões feitas por mandado das mesmas autoridades judiciaes.

§ 1º Tem lugar o pedido e concessão da ordem de habeas-corpus ainda quando o impetrante não tenha chegado a soffrer o constrangimento corporal, mas se veja delle ameaçado. (IMPÉRIO DO BRAZIL, Lei nº 2.033 de 1871).

A orientação constitucional apenas dá continuidade a previsão legal instituída ainda no Império no sentido de que não é necessário que a violação a liberdade de ir e vir se consume para caber o remédio. A justificativa desta permissividade é que, dada a própria natureza da liberdade por ele protegida, uma vez ocorrido o seu cerceamento torna-se difícil repará-lo, até por que uma vez detido, o cidadão não poderá de deslocar até o órgão competente para impetrar a ordem, terceiro terá de fazê-lo. A liberdade de locomoção é um direito-meio necessário para o gozo de outros direitos-fins (MIRANDA, 1999), logo sua proteção deve ocorrer de forma mais desenvolta que a proteção aos outros direitos.

A modalidade preventiva filosoficamente é sustentável e necessária, processualmente contudo há uma grande dificuldade por parte dos advogados de efetivamente demonstrarem ao julgador que a ameaça realmente exista, sendo comum decisões que negam a ordem por exigir tantos indícios da presença da ameaça, que em realidade se esta exigindo a própria consumação da violação.


2. Da Prática

2.1         O problema

Uma gestante de Brasília, Distrito Federal, em vias de dar a luz (37ª semana) enquanto buscava informações sobre partos e hospitais tomou conhecimento da Lei do SUS (nº 8.080 de 1990) que em seu artigo 19-J autorizava-a a ser acompanhada por alguém de sua escolha no trabalho de parto:

Art. 19-J. Os serviços de saúde do Sistema Único de Saúde - SUS, da rede própria ou conveniada, ficam obrigados a permitir a presença, junto à parturiente, de 1 (um) acompanhante durante todo o período de trabalho de parto, parto e pós-parto imediato.

§ 1º O acompanhante de que trata o caput deste artigo será indicado pela parturiente. (LEI nº 8.080 de 1990)

Essas buscas também produziram a informação de que, muito embora a lei obrigue a equipe médica a permitir a presença do acompanhante da parturiente, por diversas vezes tal lei não fora cumprida por vários hospitais da rede pública. Temerosa, ela recorreu a um advogado buscando garantir o seu direito de ser acompanhada por seu marido.

Após ser questionado pela gestante, o advogado iniciou seus estudos e localizou uma notícia de importante jornal do país com o título: “64% das grávidas não tiveram direito a um acompanhante no parto no SUS”, e a portaria nº 2.418, de 02 de dezembro de 2005 do Ministério da Saúde que regulamentava o direito previsto no artigo 19-J da Lei do SUS. Localizou ainda um projeto de lei que tramitava na Câmara cujo objeto era obrigar os hospitais públicos a exporem um aviso avisando as parturientes de seu direito:

PLC - PROJETO DE LEI DA CÂMARA, Nº 21 de 2012

 Autor: DEPUTADO - Carlos Bezerra

Ementa: Altera a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, obrigando os hospitais de todo o País a manter, em local visível de suas dependências, aviso informando sobre o direito da parturiente a acompanhante.

Data de apresentação:   04/04/2012

Local: 21/11/2012 - Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa

Situação: 21/11/2012 - PRONTA PARA A PAUTA NA COMISSÃO

Origem no Legislativo: CD  PL.  05672 / 2009

(grifamos)

Com base na matéria jornalística, e especialmente no Projeto de Lei que ainda tramitava, restou clara a necessidade da impetração do habeas corpus pois vislumbrava-se real risco de ser o paciente impedido de acompanhar a gestante, e ter violado seu direito de ir e vir, o que fundamentaria a denegação da ordem de habeas corpus preventivo.

2.2         A solução jurídica

Inicialmente, houve uma dificuldade em estabelecer qual era o direito que estava em vias de ser violado, se seria o direito da gestante de indicar um acompanhante, ou o direito de seu acompanhante (devidamente indicado) entrar na sala de parto. Ponderou-se que a gestante certamente não seria impedida de indicar seu companheiro, mas provavelmente esta indicação não teria eficácia: este após ser indicado não poderia exercer seu direito de entrar na sala de parto. Concluiu-se que a peça visaria garantir o direito da pessoa indicada pela gestante (neste caso seu marido) penetrar e permanecer na sala de parto durante todo o trabalho de parto, o parto em si, e o pós-parto, e que, provavelmente tal direito seria violado pela equipe médica do hospital (esta seria a entidade coatora).

Uma vez decidido que o marido da gestante e não ela figuraria como paciente do remédio constitucional, surgiu considerável dúvida se o remédio devido seria um Mandado de Segurança ou um Habeas Corpus, após extenso estudo restou evidenciado que naquele caso haveria uma violação ao direito de locomoção.

Foi usada a seguinte definição de liberdade de locomoção:

Liberdade ambulatória ou de locomoção:

Artigo 5º, XV, da CF – é livre a locomoção no território nacional em tempos de paz. Tanto os brasileiros natos ou naturalizados como nos estrangeiros, residentes ou não no Brasil, podem, observadas as exigências legais, entrar, permanecer, ou sair com seus bens sem qualquer cerceamento. Locomover significa andar, sair, passear, transitar, parar, ir, vir, ficar, estacionar, correr. Numa acepção ampla, é o mesmo que circular. Conseqüentemente, o Poder Público não poderá cercear o livre trânsito, salvo em hipóteses excepcionais. Exemplos: interdição ou isolamento de uma via afetada ao uso público, impedimento de passagem em local sujeito a obras de melhoria, aplicação de infrações penais, casos de infecções e doenças de massa infecto-contagiosas (BULOS, 2010, p. 712) grifo nosso.

Entendeu-se que a priori existe a liberdade de locomoção que é o direito de circular no território brasileiro. Evidentemente este direito não é absoluto, e sofre diversas limitações. Exemplos: por previsão constitucional a casa é inviolável, o que limita a liberdade de locomoção de terceiro que deseje adentrar imóvel alheio; a própria segurança nacional impede que os brasileiros transitem livremente em uma instalação militar; e é razoável que um hospital impeça o acesso da população a um centro cirúrgico, ou, como no caso em análise, a uma sala de parto.

Ocorre que o artigo 19-J da Lei do SUS permite à gestante escolher um acompanhante para com ela se locomover até a sala de parto, e, ao assim proceder, o escolhido tem sua liberdade de locomoção ampliada para, além das áreas públicas do território brasileiro, incluir também aquela sala de parto, pelo período de tempo que vai desde o início do trabalho de parto, até o pós-parto.

Excepcionalmente, o acompanhante (devidamente autorizado pela gestante) possui o direito de se locomover, entrar e permanecer na sala de parto.Vez que “locomover”, “entrar” e “permanecer” são verbos de movimento, típicos da liberdade de locomoção, se há uma ameaça que impede alguém de realizar uma dessas condutas, por lógica gramatical esta ameaça será também a liberdade de locomoção. É impossível impedir alguém de se locomover sem violar seu direito de ir e vir.

Sendo este o direito ameaçado, protegê-lo seria matéria exclusiva de habeas corpus, e não de mandando de segurança:

Extensão do habeas corpus – com o advento do mandado de segurança, introduzido pela Carta de 1934, o habeas corpus ficou para garantir a liberdade de ir, vir e ficar, amparando exclusivamente a liberdade de locomoção (BULOS, 2010, p. 717) grifo nosso.

Não se tratava do direito de locomoção regular, mas um expandido pela previsão legal e pelo requerimento da gestante, logo, tratava-se da seara do “remédio heróico”.

2.3         A peça

Logo do início da confecção, surgiu uma dúvida sobre qual juízo seria competente. A gestante teria seu filho em um hospital público de Brasília. Figurava como coatora em potencial a equipe médica do hospital, vinculado a Fundação Hospitalar do Distrito Federal, o que chamou a aplicação do parágrafo 6º do artigo 37 da Carta de Outubro em vista da condição de servidores públicos dos prováveis coatores:

§ 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. (CONSTITUIÇÃO, art. 37)

O artigo acima, no caso, responsabilizaria a Fundação Hospitalar do Distrito Federal se seus agentes gerassem dano a terceiros (impedisse o paciente de acompanhar a gestante). Esta responsabilização da Fundação por sua vez, insere o caso na competência das Varas de Fazenda pública[8].

Sanada a preliminar de competência foi feita outra preliminar sobre o cabimento do habeas corpus, que se dividira em três: uma sobre o caráter preventivo da ordem, outra sobre o não cabimento do mandado de segurança, e a terceira sobre o cabimento per se do instituto. Foi alegado o que já consta em tópicos anteriores: que a violação seria a liberdade de locomoção e que, portanto o único meio cabível de protegê-la seria por um habeas corpus.

Neste subtópico, foi reconhecido que a ameaça de violação a liberdade de ir e vir que visava ser evitada não era evidente, e declarou-se que os advogados não se oporíam se em caso análogo o juízo aceitasse um mandado de segurança em reverência ao princípio da fungibilidade e a celeridade processual, mas foi reiterado a posição de que tecnicamente, tratava-se de matéria exclusiva de habeas corpus.

No mérito alegou-se o direito da gestante ser acompanhada (segundo o artigo 19-J), e a real possibilidade da equipe médica impedir o acesso do acompanhante a sala de parto (conforme notícia do Estadão e o projeto de lei que evidenciou esta prática dos hospitais).

Foi pedido uma liminar. O fumus boni iuris foi satisfatoriamente demonstrado pelos anexos[9]: a gestante estava grávida (conforme ecografia), desejava ser acompanhada pelo paciente (conforme sua declaração), possuía o direito de ser acompanhada (segundo o artigo 19-J), e havia real possibilidade da equipe médica impedir o acesso do acompanhante a sala de parto (conforme notícia do Estadão e o projeto de lei supratranscrito que evidenciou esta prática dos hospitais). O periculum in mora neste caso era tão evidente que chegava a ser cômico: a gestante se encontra na 37ª semana de gravidez, podendo dar a luz a qualquer momento.

O último tópico argüiu que, ainda que houvesse dúvida quanto a decisão, mesmo assim a ordem deveria ser concedida pois o que se pedia era apenas que se garantisse o cumprimento da lei: a concessão da ordem (ainda que o pedido fosse falso) não geraria prejuízo a qualquer pessoa. Não se pedia que se transferisse um direito de outrem, que “tirasse de um e desse pra outro”, mas apenas que se garantisse ao paciente o exercício de um direito que era seu.

Foi elencada a tabela de possibilidades abaixo reproduzida, que visava conflitar as possíveis decisões do juiz, combinada com a validade ou não do pleito:

 

Decisão favorável

Decisão desfavorável

Pedido

Legitimo/Verdadeiro

A gestante será acompanhada nos termos que deseja e conforme a lei.

A gestante terá seu parto desacompanhada, de forma diversa da que deseja e que lhe é de direito.

Pedido

Ilegítimo/Falso

Nada acontece - a ordem é concedida mas será inútil.

Nada Acontece.

Caso o pedido fosse ilegítimo [seja por que a gestante na verdade não estivesse grávida, ou sua declaração (de que deseja a companhia do paciente) fora falsificada], e a decisão ainda assim o concedesse não haveria qualquer dano. Simplesmente seria garantido que o paciente acompanhasse uma grávida inexistente a sala de parto.

Se o pedido fosse ilegítimo e negado, nada aconteceria.

Alternativamente, se o pedido fosse verdadeiro, mas ainda assim o magistrado não se convencesse, e negasse a ordem, a gestante poderia ser cerceada de um direito seu, que seguramente geraria danos irreparáveis: realizaria um parto sem a presença de uma pessoa de seu convívio para auxiliá-la; sofreria uma ilegalidade (em um momento de altíssima fragilidade). Como se não bastasse, ela não teria os benefícios gerados pelo acompanhante, benefícios estes reconhecidos pelo próprio Ministério da Saúde (conforme os primeiros parágrafos da portaria já citada): o acompanhante reduz a duração do trabalho de parto, o uso de medicações para alívio da dor e o número de cesáreas, a depressão pós-parto e se constitui em apoio para amamentação.

O intuito deste tópico era demonstrar que caso o pedido fosse falso, a decisão judicial seria inerte, simplesmente não geraria efeitos na realidade, independente da decisão do juízo seja negatória ou denegatória. Mas sendo o pedido verdadeiro (como de fato o era) seu indeferimento produziria drásticos efeitos. Por isso, ainda que em caso de dúvida, a decisão prudente era a denegação da Ordem.

Foi pedido a concessão da ordem preventiva, e a expedição de salvo-conduto autorizando o marido da gestante a acompanhá-la na sala de parto do hospital ou em qualquer outro ambiente a que fosse levada.

2.4         A decisão

A Ordem foi impetrada às 16h47 do dia 03 de setembro de 2013. Às 13h13 do dia seguinte, menos de vinte e quatro horas após a impetração, a liminar foi deferida.

O judicante entendeu que o marido da gestante acompanhar sua esposa na sala de parto é uma forma de exercício do direito de locomoção; considerou concreta a ameaça a este exercício; e teve como demonstrados a verossimilhança da alegação e o perigo da demora, o que permitiram não só a concessão da ordem, mas a concessão por meio de liminar.

Determinou-se de ofício a correção do pólo passivo da demanda para o Diretor do hospital. Ordenou-se a notificação imediata da autoridade impetrada, por meio do oficial de justiça de plantão, para que tomasse ciência e cumprisse a decisão. Embora a decisão tenha concedido o salvo-conduto, este não fora expedido.

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Sobre o autor
Marcelo de Siqueira Zerbini

Graduando em Direito do Centro Universitário IESB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ZERBINI, Marcelo Siqueira. O caso da gestante temerosa - ou uma das diversas formas da liberdade de locomoção . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3986, 31 mai. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29045. Acesso em: 22 dez. 2024.

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