Capa da publicação Casos canabidiol e fosfoetanolamina e a jurisprudência do STF sobre medicamentos não padronizados pelo SUS
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Paradigmas traçados pela jurisprudência do STF para condução de demandas por medicamentos não padronizados pelo SUS.

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12/12/2015 às 14:33
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Reflexão sobre as definições trazidas pela STA n.º 175 do STF que nortearam a maioria dos julgamentos de demandas por medicamentos e tratamentos médicos não padronizados pelo SUS. Considerações sobre o caso do Canabidiol e da Fosfoetanolamina.

RESUMO: Este trabalho se propõe a refletir sobre as definições trazidas pela Suspensão de Tutela 175 julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que balizou grande parte das decisões judiciais sobre medicamentos e tratamentos médicos depois de sua prolação, fazendo uma esquematização das diferentes situações e o cotejo com casos práticos atuais e de grande repercussão, como o do Canabidiol e da Fosfoetanolamina Sintética.

TERMOS-CHAVE: Direito à Saúde. Jurisprudência do STF sobre concessão de medicamentos não padronizados pelo SUS. Suspensão de Antecipação de Tutela n.º 175. Canabidiol. Fosfoetanolamina Sintética.


INTRODUÇÃO:

O escritor português José Saramago, em sua obra Intermitências da Morte[1], desenvolve uma história fantástica, onde a morte, dita “indesejada das gentes”, magoada com constante incompreensão, cansada de ser detestada pela humanidade, resolve fazer greve, e naquele estranho canto do mundo que serve de cenário, ninguém mais morre, o que inicialmente é festejado, mas logo se revela um problema de efeito cascata, porque as pessoas continuavam a ficar doentes e lotar os hospitais, só não morriam. Os idosos avançavam na decrepitude sem esperança de descanso nem para eles, nem para as suas famílias. Os serviços funerários ficaram sem trabalho e a própria igreja, desacreditada sem a esperança da ressureição. O capricho da morte em se negar a trabalhar, implicou em questões previdenciárias, econômicas, etc., que nos conduzem a inúmeras reflexões.

Trabalhar com pretensões relacionadas ao direito à saúde e as suas limitações, de forma menos fantasiosa, também nos conduz por labirintos de difícil saída, justamente porque são reais e nos causam empatia.

A concretização, pelo Estado, de ações eficientes de saneamento, campanhas de vacinação e, em geral, foco na saúde básica da população ensejaram, com o seu desenvolvimento, a erradicação e/ou controle de doenças mais simples, elevando a expectativa de vida da população, retardando a morte de um modo geral. Essa situação, de forma menos fantasiosa do que a fábula de Saramago, também traz consequências. Uma delas é que, devido às diferenças regionais brasileiras, e a maneira não uniforme com que esse desenvolvimento chega à população, como aponta Gustavo Amaral[2], uma parte da sociedade brasileira sofre de doenças “modernas” ou “da riqueza” (consideradas típicas de países desenvolvidos), ao passo que outra parcela da população ainda sofre com as “doenças da miséria” (como febre amarela, cólera e malária). Todas essas situações, porém, concorrem pelos mesmos recursos estatais, que tem de ser alocados planejadamente, levando em consideração fatores estatísticos, como o número de cidadãos atingidos pela política eleita, a efetividade e a eficácia do serviço a ser prestado, a maximização dos resultados. Políticas públicas são uma questão de macro justiça.

O direito à saúde é universal, portanto, mesmo os integrantes da parcela do Brasil que sofre das “doenças da riqueza”, têm direito à concretização de seu direito constitucional. Normalmente, até porque essa parcela da população está em um outro patamar de esclarecimento, eventualmente não se contenta com os tratamentos disponíveis em condições de igualdade para todos os usuários do sistema de saúde pública, e buscam na Justiça, o custeio, pelo SUS, de tratamentos não incorporados às diretrizes terapêuticas estabelecidas para a sua doença. Esses medicamentos ou tecnologias diferenciadas são frequentemente caríssimos e de eficácia não comprovada, mas o seu pleito judicial coloca os magistrados na dificílima situação de, sendo responsáveis pelo micro justiça, ter de negar ou deferir medicamentos a uma pessoa com nome, sobrenome, identidade, ou seja, uma vida humana determinada, o que é muito diferente de trabalhar com estatísticas.

Nada é simples nessa seara. Basta ver a grande discussão do momento, que é a distribuição da Fosfoetanolamina Sintética, propalada como o milagre contra o câncer, e que levou o STF a contradizer suas próprias recentes afirmações e determinar o custeio, pelo Estado, de uma droga que estava em fase de estudos e que sequer havia sido testada em humanos, enquanto boa parte dos mais renomados oncologistas do país critica o emprego de verbas públicas na pesquisa da Fosfoetanolamina. Em extensa matéria veiculada no jornal Zero Hora[3], a comunidade médica gaúcha atesta receber com desconforto a decisão do governo do Estado do Rio Grande do Sul de dedicar esforços e recursos do laboratório farmacêutico do estado (LAFERGS) para o estudo da substância, considerando que o Rio Grande do Sul estaria “quebrado”, sem dinheiro sequer para fornecer aos pacientes do SUS as drogas que já estão liberadas, que dirá para fazer pesquisas a fundo perdido. Já os doentes terminais de câncer, bem como seus familiares, veem como absurdo não desenvolver o estudo da fosfoetanolamina, cujo uso compassivo pode ser a sua única esperança.

O comprometimento do nosso país com o direito fundamental social à saúde, um dos pilares da dignidade da pessoa humana, está acertado, inclusive, em acordos internacionais.  O Brasil  é firmatário do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 16 de dezembro de 1966 (ratificado pelo Decreto n.º 591 de 6/07/1992), cujo artigo 12 impõe aos estados o dever de adotar medidas apropriadas de caráter legislativo, administrativo, orçamentário, judicial ou de outra natureza para conferir plena efetividade ao direito à saúde, ainda que com certa margem de discricionariedade para adaptação às circunstâncias específicas de cada país[4]. O Brasil também é signatário do Protocolo de São Salvador adicional à Convenção Interamericana de Direitos Humanos de (CIDH) de 1988 (promulgado em 30/12/1999 pelo D. n.º 3.321), em cujo artigo décimo é afirmado que toda pessoa tem direito à saúde, entendida como o gozo do mais alto nível de bem‑estar físico, mental e social.  Os compromissos internacionais assumidos se coadunam com o que a nossa Constituição assegurou, ou seja, a saúde como direito social fundamental previsto no artigo 6º, e explicitado melhor no artigo 196, que baliza as políticas públicas na área da saúde pelos princípios da universalidade, integralidade e isonomia no atendimento.

O Legislador constituinte delineou as políticas públicas para a saúde no art. 196 e 198 da Constituição, remetendo, no art. 197, a sua disciplina mais específica para a lei. Cidadãos brasileiros e também estrangeiros que estiverem no país (CF, 5º, caput) tem assegurado o direito à saúde.

Ao Poder Executivo, coube, e cabe, cumprir essas políticas públicas, o que é feito através do Sistema Único de Saúde, regulamentado pelas leis n.º 8.080/90 (Lei Orgânica da Saúde) e 8.142/90 (que dispõe sobre a participação da comunidade e transferências intergovernamentais), pelas Normas Operacionais Básicas (NOBs) 91, 93, 96 e Normas Operacionais da Assistência à Saúde (NOAS-SUS) 01/01 e 01/02; Pacto pela Saúde 2006; Decreto 7.508/11 e as atualizações constantes como a Portaria 2.488/11, Lei Complementar 141/12 e Lei 12.401/11, além, é claro de uma gama de atos normativos que delineiam de forma mais abrangente todas as especificidades do sistema.

Ao Judiciário, por sua vez, cabe dizer o direito nos casos em que for provocado, observando a legislação de regência sobre a matéria e, sobretudo, a Constituição.

A provocação do Judiciário para a efetivação de pretensões relativas à salvaguarda e promoção da saúde dos cidadãos é constante e cresceu de tal forma nos últimos anos, que o Comitê Estadual de Saúde do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS) hoje comemora a redução do “estoque” de aproximadamente trinta mil (30.000) ações judiciais relacionadas a medicamentos e tratamentos médicos, só na Justiça Estadual. Essa diminuição é atribuída a adoção da Recomendação nº 36 do CNJ e a Resolução n.º 107, que instituiu o Fórum Nacional do Judiciário para monitoramento e resolução dessas ações.

A preocupação do Conselho Nacional de Justiça é plenamente justificada. Levantamento[5] do número de ações judiciais dessa natureza feito em 2011 revelava que no Brasil, apenas na Justiça Estadual, em 2011, haviam 240.980 (duzentas e quarenta mil, novecentos e oitenta ações), sendo que o Estado do Rio Grande do Sul concentrava quase a metade do número delas. Ao mesmo tempo, outro tanto de ações começou a migrar ou ser ajuizado diretamente na Justiça Federal, com a inclusão da União no polo passivo dessas demandas, legitimidade passiva que ficou assentada de forma cristalizada com o recente julgamento do tema 793 do STF pelo sistema de recursos representativos de controvérsia.

Segundo levantamento divulgado em 25/11/2015, no Blog do Jornalista Fernando Rodrigues para o site UOL[6], os gastos do Ministério da Saúde com decisões judiciais aumentaram 744% (em valores reais, isto é, corrigidos pela inflação) de 2005 a 2015, segundo dados levantados junto ao Ministério da Saúde. Em 2005, a pasta gastou R$ 62,6 milhões (valor da época) para cumprir determinações da Justiça relativas a tratamentos e medicamentos. Em 2015, até agora, o valor é de pelo menos R$ 922,4 milhões, sendo que das vinte drogas mais demandadas, dez sequer possuem registro na ANVISA.

O cálculo do próprio Ministério é de que o valor já superou R$ 1 bilhão de reais em 2015, sendo que apenas 38 pacientes consumiram R$ 56.000.000,00 (cinquenta e seis milhões de reais), e o paciente que consumiu mais recursos consumiu, sozinho, R$ 3.600.000,00 (três milhões e seiscentos mil reais).

Registre-se que a judicialização das questões relativas à proteção do direito à saúde não são um fenômeno exclusivamente brasileiro. Ricardo Perlingeiro[7] ressalta que há semelhante proporção em países como Uruguai, Argentina, Chile, Paraguai, Colômbia, Equador, Venezuela, Bolívia, Peru e México. Isso ocorre, como afirmou o Ministro Luis Roberto Barroso[8] porque as normas constitucionais deixaram de ser percebidas como integrantes de um documento estritamente político, mera convocação à atuação do Legislativo e do Executivo, e passaram a desfrutar de aplicabilidade direta e imediata por juízes e tribunais. Nesse ambiente, os direitos constitucionais em geral, e os direitos sociais em particular, converteram-se em direitos subjetivos em sentido pleno, comportando tutela judicial específica.

No Brasil, inicialmente, as demandas judiciais na área da saúde, em sua maioria, diziam respeito a medicamentos e/ou insumos (lato sensu) constantes das listas do SUS, de modo que ações de planejamento e gestão sistêmicos conseguiram reduzir esse contingente. Apesar de as falhas do serviço, como falta de leitos hospitalares de urgência e emergência (inclusive UTI) e filas de espera excessivamente demoradas, ainda representarem boa parte dos processos ajuizados, se “evoluiu” para uma “segunda fase” da judicialização. Hoje parcela significativa da judicialização diz respeito à pretensão de obter do SUS o custeio de medicamentos, insumos, órteses, próteses ou tratamentos não incorporados ao Sistema e, portanto, indisponíveis em condições de igualdade para toda a população.

Via de regra, são demandas por tecnologias, medicamentos, tratamentos ou técnicas novas, que pelos mais diversos motivos, ainda não foram (e talvez sequer sejam) incorporadas ao SUS. Outras vezes, o objeto demandado sequer possui registro na ANVISA, e, portanto, não podem ser comercializados no país, trata-se de medicamento ou tratamento importado ou experimental.

As demandas por tratamentos diferentes dos disponíveis crescem exponencialmente, em sua maioria patrocinadas pelo Ministério Público e Defensoria Pública, embora também a advocacia privada tenha larga participação na judicialização. É interessante observar que “hipossuficiência” em matéria de saúde é algo muito relativo: mesmo uma pessoa com boas condições financeiras pode não ter condições de custear tratamentos médicos excessivamente caros, os chamados “medicamentos de alto custo”.

O foco do presente trabalho, que tem um viés bastante prático, porque a autora trabalha na COREMED (Coordenação Regional de Medicamentos) da Procuradoria Regional da União na 4ª Região, defendendo a União justamente em ações judiciais versando sobre direito à saúde, é demonstrar como a decisão na Suspensão de Tutela n.º 175 proferida pelo STF traçou limites que foram absorvidos e aplicados pelos operadores do direito, e como os mais recentes e polêmicos casos de judicialização se enquadram nas definições traçadas por essa antológica decisão.


 A Suspenção De Tutela Antecipada n.º 175 – Comentários às definições trazidas pela decisão.

Como salientam Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco[9], os contornos do direito à saúde há tempos vem sendo delineados em diversos julgados do Supremo Tribunal Federal. A legitimidade e a solidariedade entre os entes federativos (União, Estado e/ou Distrito Federal e Município demandados) no que diz respeito ao cumprimento das decisões deferindo medicamentos, órteses, próteses, suplementos alimentares, ações e serviços de saúde, etc., foi inicialmente assentada no ano de 2000, no Recurso Extraordinário n.º 195.192-3/RS, cuja ementa do acórdão referia que Incumbe ao Estado (gênero) proporcionar meios visando a alcançar a saúde, especialmente quando envolvida criança e adolescente. O Sistema Único de Saúde torna a responsabilidade linear alcançando a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. Esse entendimento foi recentemente reafirmado no RE 855178, (tema 793 do STF), julgado, em 16/03/2015, pela sistemática dos recursos repetitivos.

O STF, por unanimidade, reputou constitucional a questão e reconheceu a repercussão geral do tema 793. No mérito, por maioria, vencidos os Ministros Teori Zavascki, Roberto Barroso e Marco Aurélio, reafirmou que o tratamento médico adequado aos necessitados se insere no rol dos deveres do Estado, porquanto responsabilidade solidária dos entes federados, podendo o polo passivo ser composto por qualquer um deles, isolada ou conjuntamente.

De fato, a explosão de ações judiciais buscando medicamentos e tratamentos médicos junto ao Sistema único de Saúde (SUS), tem implicado em um protagonismo significativo do Judiciário sobre a questão, inclusive ensejando reconfigurações orçamentárias e estratégicas no âmbito governamental[10], diante do volume de recursos que as condenações judiciais movimentam. As liminares antecipatórias em matéria de saúde, principalmente em ações coletivas, cedo bateram às portas do STF, mediante a utilização de Procedimentos Excepcionais: Suspensão de Execução de Liminar (Lei 8.437/92), Suspensão de Execução de Tutela Antecipada (Lei 9.494/97) e Suspensão de Segurança ou de Sentença (Lei 4348/64). Foi através do julgamento de um desses procedimentos excepcionais que o STF delineou boa parte dos parâmetros que são utilizados até hoje para julgamento de ações de postulando prestações em saúde.

Esses procedimentos ajuizados perante a presidência dos Tribunais Superiores, STF e STJ, conforme a matéria seja constitucional ou infraconstitucional, não possuem natureza jurídica de recurso, e não se prestam à cassação da decisão guerreada ou à análise do mérito da causa, mas à simples “suspensão” de decisões cuja extrema gravidade à ordem pública possa ser demonstrada documentalmente. As suspensões são uma forma de uma “contracautela”, embasada em aspectos políticos que não “devolvem” o conhecimento da matéria de fundo para a reforma. São procedimentos acautelatórios especiais, incidentes processuais de cunho cautelar[11], cuja análise deve-se restringir à verificação de efetiva e grave lesão à ordem pública (ordem jurídica, administrativa, econômica ou saúde pública).

Pois bem, aqui começa a história da Suspensão de Tutela Antecipada n.º 175, para a qual se dedica este capítulo.

Principalmente a partir do ano de 2005, muitas ações coletivas vinham sendo ajuizadas pelo Ministério Público, e posteriormente também pela Defensoria Pública, em face dos entes federativos visando a concessão de medicamentos não previstos nas políticas públicas de saúde. Temendo o chamado “efeito multiplicador” dessas decisões e o decorrente temor de abalo à ordem pública (organização do SUS) e econômica (desvio de verbas da saúde para tratamentos não previstos), e atentas ao fato de que a matéria de fundo das ações em questão era eminentemente de fundo Constitucional, as Procuradorias dos entes públicos demandados, esgotadas as vias ordinárias de recurso contra as liminares, que passaram a ser sistematicamente concedidas, ajuizavam perante o Supremo Tribunal Federal, suspensões de segurança, ou suspensões de tutela antecipada, conforme fosse a figura apropriada, em razão da sede em que proferida a decisão: se uma liminar em mandado de segurança, ou se uma antecipação de tutela.

A Ministra Ellen Grace Northfleet, que sucedeu o Ministro Nelson Jobim na presidência da Suprema Corte, a partir de 2006, tal qual seu imediato antecessor, julgou inúmeros pedidos de suspensão, como, p.ex., o requerido pelo Estado da Paraíba[12], em relação a suspensão de diversas liminares em mandado de segurança que ordenaram àquele ente federado que fornecesse, gratuitamente, Citrato de Sildenafil (nome comercial Viagra). O fundamento residia no alegado prejuízo à ordem administrativa, uma vez que estariam sendo subvertidas as regras previstas pela Portaria Ministerial n° 1.318/2002, que estipulam quais medicamentos devem ser distribuídos à população, ilegitimidade passiva do ente demandado em razão da repartição de competências do SUS,  vulneração à economia pública, pela absorção de recursos muito elevados para um pequeno número de beneficiários, interferindo no orçamento para a saúde do Estado, bem como o chamado efeito multiplicador . Considerando que decisões liminares estavam amparadas nos princípios constitucionais garantidores da inviolabilidade do direito à vida e à saúde (arts. 5°, caput e 196 da Constituição Federal a presidência do STF reconheceu sua competência e julgou no sentido de que a grave lesão não poderia ser presumida, devendo ser demonstrada, o que não teria ocorrido. Ademais, configurava-se o chamado periculum in mora inverso aos impetrantes, uma vez que a opção era por prestigiar o direito à vida e à saúde. Já em 2006, a Presidência do STF citando o parecer da Procuradoria-Geral da República:  

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 "9. De forma reiterada, esse Supremo Tribunal Federal, por meio de sua Presidência, tem se pronunciado no sentido de que o deferimento da medida da contracautela, em casos como este, acarretaria o chamado periculum in mora inverso ao beneficiário, uma vez comprovada a necessidade vital do medicamento e a impossibilidade do custeio da aquisição da medicação ora pleiteada, pelo particular. À propósito, SS 2793, SS 2842, SS 2873, entre outras. (...)"

Sucedeu a Ministra Ellen Gracie Northfleet, em 2008, o Ministro Gilmar Ferreira Mendes sendo que não tardou a se deparar com semelhantes pedidos de suspensão de segurança e de tutela antecipada que viraram rotina na suprema corte, o que o motivou a convocar uma Audiência Pública para discutir a questão, oportunidade em que ocorreram cinquenta e uma palestras sobre o tema, sendo que o objetivo precípuo foi identificar potenciais medidas para contornar o problema da massiva judicialização das demandas por medicamentos e tratamentos médicos.

Mendes e Branco[13] referem que foi justamente a existência de um número significativo de demandas judiciais relacionadas ao direito à saúde que motivou a convocação pela Presidência do STF da audiência pública que ocorreu entre os dias 27 a 29 de abril e 4 a 7 de maio de 2009, transformando a Suprema Corte em um Fórum para reflexão e argumentação entre elaboradores e executores de políticas públicas, profissionais da área da saúde e a sociedade civil como um todo.

A conclusão, referem indigitados autores, é que restou clara a necessidade de redimensionar a questão da judicialização da saúde no Brasil. Isso porque, como já indicado, na maioria dos casos, a intervenção judicial não ocorre tendo em vista uma omissão (legislativa) absoluta em matéria de políticas públicas voltadas à proteção do direito à saúde, mas ao cumprimento inadequado de políticas já existentes.

A oportunidade de uma nova diretriz em relação às ações postulando medicamentos e tratamentos médicos veio em seguida, em setembro de 2009, com o julgamento de um pedido de suspensão ajuizado ainda em 2007, contra decisão da 1ª Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, que  deferiu, nos autos da Apelação Cível no 408729/CE, antecipação de tutela recursal para determinar à União, ao Estado do Ceará e ao Município de Fortaleza o fornecimento do medicamento denominado Zavesca (Miglustat), em favor de CLARICE ABREU DE CASTRO NEVES, portadora da doença Niemann-Pick Tipo “C”. O medicamento em questão, à época, sequer possuía registro na ANVISA. Apenas a título de curiosidade, atualmente, trata-se de medicamento registrado na ANVISA, passível de comercialização no Brasil, porém não incorporado ao SUS.

Essa antecipação de tutela ensejou o ajuizamento do pedido de suspensão de tutela antecipada nº 175, (pela União), e nº 178 (pelo Município de Fortaleza), que vieram a ser julgados conjuntamente. Tratava-se de uma ação civil pública, com pedido de extensão dos efeitos para todos os pacientes em semelhantes condições, que necessitassem do medicamento.

A decisão na STA 175[14] redimensionou a questão da judicialização da saúde no Brasil, trazendo de forma sistemática diversas definições importantíssimas para a solução segura desse tipo de demanda. Já se passaram vários anos desde a publicação da decisão em questão, e até hoje ela vem sendo o principal precedente invocado nos julgamentos destas ações. Note-se que apesar de a suspensão de segurança ter sido indeferida, o Ministro Gilmar Mendes estabeleceu uma série de parâmetros muito úteis para conter o abuso na judicialização, estimulado por precedentes ilimitadamente favoráveis, que acarretam uma situação nociva à própria manutenção e mesmo existência do sistema de saúde pública.

Sueli Gandolfi Dallari[15] resumiu muito bem os parâmetros sistematizados pela STA 175, para serem utilizados como uma espécie de guia na condução dos processos judiciais sobre direito à saúde:

1.Verificar se existe política pública que diga respeito à prestação de saúde pleiteada no caso concreto.

2. Na hipótese de que não haja a política estatal específica, o Judiciário deve considerar:

a) a existência de vedação legal para o fornecimento do medicamento, ou seja, os juízes devem verificar se o medicamento possui registro na ANVISA;

b) a existência de decisão do SUS de não fornecer o medicamento, expressa em Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas do SUS atualizados;

c) se o medicamento encontra-se em fase de testes clínicos na indústria farmacêutica;

d) se o tratamento alternativo oferecido pelo sistema público é adequado para o caso específico do paciente;

e) se o Executivo comprovou se haveria grave lesão à ordem, à economia, à saúde e à segurança pública na hipótese de concessão da tutela jurisdicional pretendida pelo paciente. Nesse voto o Ministro Gilmar Mendes insiste em que nenhum dos parâmetros é irrecorrível, mas que nas hipóteses suscitadas é imprescindível que haja instrução processual, com ampla produção de provas, o que poderá configurar-se um obstáculo à concessão de medida cautelar.

Se a salvaguarda ilimitada à saúde do indivíduo, em um ambiente de natural escassez, foge à razoabilidade, se existem limites, vemos a necessidade de sedimentar a compreensão desses parâmetros traçados pelo STF, bem como trazê-los para o estudo das diferentes situações vivenciadas no dia-a-dia forense, em relação aos tratamentos postulados pelos jurisdicionados.

I.I. Comentários à primeira definição – A existência de política pública e os diferentes casos de demandas por medicamentos.

O primeiro dado a ser considerado é a existência, ou não, de política estatal que abranja a prestação de saúde pleiteada pela parte. Ao deferir uma prestação de saúde incluída entre as políticas sociais e econômicas formuladas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o Judiciário não está criando política pública, mas apenas determinando o seu cumprimento. Nesses casos, a existência de um direito subjetivo público a determinada política pública de saúde parece ser evidente.

Se a prestação de saúde pleiteada não estiver entre as políticas do SUS, é imprescindível distinguir se a não prestação decorre de uma omissão legislativa ou administrativa, de uma decisão administrativa de não fornecê-la ou de uma vedação legal a sua dispensação.

 O STF estabelece, nesse trecho, que o passo inicial para a análise de um pleito por medicamentos e/ou tratamentos médicos (lato sensu) é verificar se o SUS possui algum tratamento para a patologia apresentada pelo demandante. Em outras palavras, é aferir se o SUS possui uma política pública para tratamento da doença apresentada pela parte. A princípio, pelo princípio da integralidade, não deve existir doença sem tratamento no SUS, o que também não significa que todo e qualquer tratamento existente deve estar disponível.

Então a pergunta inicial a ser feita é: existe no SUS previsão de tratamento para esta doença (teoricamente tem que existir) e qual é esse tratamento previsto? Este tratamento já foi tentado no paciente? Sim ou Não? Se sim, porque não é possível que ele utilize o tratamento disponível em condições de igualdade para toda a população?

Essas perguntas são cruciais na medida em que, como Refere Luciano Benetti Timm[16], analisando a questão sob a perspectiva econômica do Direito, há um conflito de interesses entre quem está pleiteando um medicamento e a coletividade (contribuinte que está sendo tributado pelo Estado com vistas ao fornecimento de bens ou serviço público alternativo àquele discutido em um processo judicial).  Trata-se de analisar o tema sob a perspectiva das chamadas externalidades inerentes a essa situação, como bem ressalta Suélen Farenzena[17], ao pontuar que o argumento de que apenas a decisão justa entre as partes é que interessa é falacioso, pois, se terceiros são atingidos pela decisão, o caso não é mais apenas entre as partes. Por suposto que deferir, judicialmente, um medicamento e/ou tratamento diferenciado daquele disponível na via administrativa (sem socorro judicial), importa em remanejo de recursos escassos e traz consequentes efeitos reflexos.

O Ministério da Saúde refere que a gravidade do quadro da judicialização da saúde no Brasil não está limitada ao gasto irracional que promove (tendo como consequências a perda da capacidade de administrar compras, a ineficiência em relação à escala, mas também, e principalmente, refere-se aos prejuízos à própria lógica do Sistema, o que induz novos gastos e a criação de um atendimento ao cidadão absolutamente diverso do estabelecido pelas Políticas traçadas.[18]

Assim, se há uma política pública, a princípio, é ela que tem de ser aplicada, e só em caso de comprovada ausência pontual de efetividade do tratamento disponível, é que se pode passar a pensar em uma solução diferenciada.

O STF entende, que pelo princípio da universalidade, o Judiciário ao deferir uma prestação de saúde que esteja prevista nas políticas públicas, não está criando (e com isso interferindo) em uma política pública, mas apenas assegurando seu cumprimento. Mas e quando o tratamento determinado não é previsto?

Se a prestação de saúde pleiteada não estiver prevista entre as políticas do SUS para tratamento daquela doença (pois eventualmente os tratamentos estão disponíveis para outras doenças, mas não para aquela de que padece o autor da ação), é imprescindível distinguir se a não prestação desse tratamento decorre de uma omissão legislativa ou administrativa, de uma decisão administrativa de não fornecê-la ou de uma vedação legal a sua dispensação, como é o caso, por exemplo, dos medicamentos utilizados de modo off label (grosso modo, utilizados para fins diferentes da previsão da bula e autorizada pela ANVISA).    

Então, dentre os tratamentos não previstos nas políticas públicas, é possível vislumbrar as mais diferentes situações, a seguir descritas.

I.I.a. Medicamento registrado na ANVISA, mas não incorporado ao SUS para a patologia apresentada pelo autor da ação, embora previsto para outras patologias.

Considerando que os medicamentos de um modo geral possuem mais de uma indicação, para tratar de diferentes doenças, é bastante comum que um determinado remédio ou tratamento não esteja incorporado ao SUS para a patologia apresentada pelo autor da ação, embora esteja previsto para outra (s) patologia (s). Esse é, por exemplo, o caso envolvendo o Medicamento Rituximabe (nome comercial Mabthera, da Roche) que está previsto para ser fornecido pelo SUS para tratamento de linfoma não-hodgkin de células “b”, folicular, cd20 positivo, em 1ª e 2ª linha e para artrite reumatoide. Embora o SUS forneça este medicamento de alto custo para esses casos específicos, a medicação possui registro na ANVISA, e indicação em bula para tratar diversas outras patologias, tais como outras subespécies de linfoma não Hodgkin, leucemia mielóide crônica e granulomatose de Wegener.

Em suma aqui temos os casos em que o medicamento tem registro na ANVISA e indicação em bula para a finalidade perseguida, mas não é fornecido pelo SUS, para a doença apresentada pelo autor da ação, e tão-somente para outros casos.

Isso vai ocorrer porque a incorporação de novas tecnologias ao SUS depende de uma proposta de incorporação (que pode ser feita pelos próprios laboratórios ou por outros agentes) para tratamento de uma determinada doença, e do trâmite regular e resultado de um processo administrativo disciplinado em lei[19], que vai analisar a relação custo-efetividade dessa inclusão para um sistema de saúde pública.

I.I.b. Medicamento registrado na ANVISA para o uso pretendido, mas não incorporado ao SUS.

O registro de um medicamento na ANVISA é requisito sine qua non para que um medicamento possa ser comercializado dentro do território nacional, o que não significa, em absoluto, que esse fato garanta a disponibilidade desse medicamento no sistema público de saúde. O registro na ANVISA pode ser um primeiro passo, mas propicia apenas que o produto possa ser adquirido legalmente dentro do Brasil.

A incorporação de um medicamento ao sistema público de saúde pode ser considerada uma segunda etapa, independente da primeira (registro na ANVISA) e que pode ou não acontecer, mas é o que viabiliza a disponibilização gratuita e universal aos pacientes que necessitarem. Trata-se de um processo administrativo rigoroso que se desenvolve com base em análises técnico-científicas a partir das melhores evidências disponíveis, acompanhadas por estudos de impacto financeiro para o sistema público de saúde. Esse processo hoje disciplinado pela Lei 8.080/90, com a redação dada pela Lei n.º 12.401/2011, é fundamental para a disponibilização de medicamentos eficazes, seguros e com uma relação custo-benefício adequada.

Desde a edição lei 12.401, o Ministério da Saúde incluiu, em um ano, 29 medicamentos e procedimentos no Sistema Único de Saúde (SUS), o que equivale ao dobro da média de incorporações feitas nos últimos seis anos antes da criação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec). A CONITEC já analisou quatro vezes mais tecnologias do que a média entre 2006 e 2011. Mais de 20% das tecnologias foram aprovados e observados os prazos foram colocados à disposição na rede pública[20].

A relação custo-benefício é um pré-requisito fundamental utilizado não só no Brasil, mas na maioria dos sistemas de saúde semelhantes, uma vez que a prioridade é o interesse público de atender bem à coletividade. Acima de tudo, porém, está a questão da segurança, eficácia e qualidade dos tratamentos de saúde disponibilizados à população.

Note-se que no tipo de caso que estamos abordando neste item, assim como no caso abortado no item anterior, porque há registro na ANVISA, se o autor da ação tivesse condições, poderia tranquilamente comprar o medicamento de forma privada, em uma farmácia. A questão é que o medicamento, embora registrado e prescrito conforme a bula, não está disponível na rede pública de saúde, em condições de igualdade, para todos os pacientes em igual condição, porque não foi incorporado ao sistema ou, pelo menos, não para o caso do autor.

Assim, não raras vezes acontece de um paciente demandar em juízo medicamentos que, embora possuam registro na ANVISA para o uso pretendido, não foram incorporados ao SUS para nenhuma patologia. Isso não significa que o SUS não disponibilize nenhum tratamento para a doença que o autor apresenta. Até pelo princípio da integralidade da assistência, no SUS não se deve conceber uma doença sem tratamento. O fato de um determinado medicamento não estar incorporado ao sistema, e não estar disponível na rede pública, deve significar que o SUS optou por disponibilizar outro (s) tratamento (s), outra (s) alternativa (s) terapêutica (s).

Gilmar Ferreira Mendes[21] refere-se às “questões delicadas” que geram a individualização da demanda, em relação aos casos em que o medicamento, pleiteado para tratamento de determinada doença, possui registro na ANVISA, mas não está incorporado ao SUS, e não existe outro tratamento disponível no sistema para aquele paciente. Nesse caso considerando que um dos significados do princípio da integralidade é o de que toda doença deve ter tratamento na rede pública, a exceção deve ser tratada como tal, gerando a necessidade de que a instrução da demanda deixe clara a situação que leva à necessidade de tratamento diferenciado.

Essas circunstâncias podem decorrer da mais variada gama de causas: o paciente pode ter alergia ao medicamento disponível na rede pública, pode padecer de alguma variação da doença para a qual o medicamento disponível não se aplique, pode já ter adquirido resistência à medicação disponível, pode mesmo ter, simplesmente, utilizado sem êxito a medicação disponível. Há casos também em que um medicamento novo apresenta resultados mais promissores ou com menos efeitos colaterais.

Atualmente, sem dúvida alguma, a demanda por medicamentos não incorporados ao sistema soma um volume de ações tão importante quanto as questões atinentes às falhas do sistema (ausência de leitos, demora nas filas de espera, etc.). São casos de judicialização tão frequentes que se tornaram um crescente problema para a saúde pública, além de uma contradição ao princípio constitucional de que o SUS deve prestar atendimento universal, igualitário e integral (a todos, indistintamente, e para todos os males).

A guarida às demandas por medicamentos e tratamentos não incorporados ao sistema geram despesas que forçam o Poder Público a realocar recursos não previstos para atender casos específicos, desorganizando o sistema e criando duas classes de usuários: a dos que obtém tratamentos diferenciados (e invariavelmente mais caros) na via judicial, e os demais.

I.I.c. Medicamentos com pretensão de uso “off label”

Uma terceira situação é a do chamado uso “off label” de uma medicação que possui registro na ANVISA, mas não para a finalidade prescrita e que o paciente/autor pretende.

Cada medicamento registrado no Brasil recebe aprovação para uma ou mais indicações, as quais passam a constar na sua bula, e que são as respaldadas pela Agência, pois foram comprovadas a qualidade, a eficácia e a segurança do medicamento. Quando o medicamento é empregado fora dessas situações descritas está caracterizado o uso off label do medicamento, ou seja, o uso ainda não aprovado, que não consta da bula.

Esse uso não é necessariamente errado, até porque novas funcionalidades para uma mesma droga são descobertas frequentemente, como foi o caso Viagra (substância Sildenafila), inicialmente sintetizado pela Pfizer para tratamento da hipertensão arterial pulmonar, descobriu-se, posteriormente, que também auxiliava no tratamento da disfunção eréctil masculina, funcionalidade que culminou por ser aprovada pela ANVISA.

Antes da aprovação e registro, a prescrição, todavia, é feita por conta e risco do médico que prescreve, e pode eventualmente vir a caracterizar um erro médico, embora em grande parte das vezes trate-se de uso essencialmente correto, apenas ainda não aprovado. De qualquer forma, é vedado o custeio desse tipo de tratamento pelo SUS (Lei 8.080/90 art. 19-T).[22]

I.I.d. Medicamentos não registrados na ANVISA, mas registrados em outras agências internacionais.

Existem, ainda, os medicamentos que não possuem registro na ANVISA, mas possuem registro em outra (s) agência (s) de regulação mundo a fora, como a americana Food and Drug Administration[23] (FDA) ou a Agência Europeia de Medicamentos[24] (European Medicines Agency – EMA). Esses medicamentos podem estar ou não incorporados aos sistemas de saúde pública de outros países, ou apenas possuir registro para a comercialização em outros países.

Um medicamento que está em evidência no momento, e que se encontra nesta situação, é a melatonina sintética. Essa substância amplamente utilizada na Europa e Estados Unidos ainda não está registrada no Brasil, até porque não foi postulado, por nenhuma indústria farmacêutica o registro na ANVISA[25]. Todavia, muitos brasileiros têm importado para uso próprio a substância que nada mais é do que um hormônio sintetizado, cuja produção natural pelo organismo está ligada ao ciclo de iluminação ambiental característico do dia e da noite (pico da produção). A melatonina é essencial no processo de sincronização circadiana do organismo, em particular, do sono e vigília e do metabolismo energético e tem seu uso estabelecido na clínica médica no tratamento de alguns distúrbios do sono, bem como no papel de importante agente antioxidante e coadjuvante terapêutico em doenças neurológicas e degenerativas (como doenças do espectro do autismo, síndrome de déficit de atenção e hiperatividade, etc.). A melatonina é vista como um poderoso cronobiótico (agente capaz de influir no ritmo biológico), podendo sincronizar muitas funções do organismo. Por isso tem, também, sido usada na correção dos distúrbios causados pelo "jet-lag". Em muitos casos, porém, a melatonina sintética está em fase de experimentação clínica: tratamento de certos tipos de enxaqueca, distúrbios depressivos, anestesia, como um coadjuvante no tratamento antitumoral e/ou antimetastático, como um poderoso agente limitador das lesões pós-isquêmicas (associadamente à hipotermia no caso da hipóxia e isquemia perinatais, na displasia broncopulmonar do prematuro, AVC), em doenças metabólicas, síndrome do ovário policístico, etc.[26]

O Ministério Público Federal em Canoas (MPF/RS) está questionando a ANVISA sobre a eventual proibição da melatonina no Brasil em um Inquérito Civil Público[27] deflagrado por representação de interessado que pede a liberação do produto no país, justificando não haver motivos para a proibição do comércio e manipulação da substância. A resposta preliminar da ANVISA recebida pelo MPF informa que não ocorreu nenhum pedido de registro do princípio ativo para análise dos especialistas na vigilância sanitária.

A melatonina vem sendo postulada em juízo, tendo o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro[28], no início de 2015 publicado acórdão que analisa didaticamente a questão, ao referir que o fármaco melatonina não possui registro na ANVISA e, apesar de o autor possuir direito à saúde, e os entes federativos o dever de sua prestação (o que incluiria o fornecimento dos medicamentos necessários), o verbete n. 180 da Súmula do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro diz que: "A obrigação dos entes públicos de fornecer medicamentos não padronizados, desde que reconhecidos pela ANVISA e por recomendação médica, compreende se no dever de prestação unificada de saúde e não afronta o princípio da reserva do possível." Assim, muito embora o medicamento seja indicado para a doença que acomete o Autor, bem como receitado pelo médico assistente que lhe atende, não possuem os Réus o dever de prestá-lo.

I.I.e. Medicamentos experimentais.

Finalmente, temos os medicamentos ainda experimentais, e que além de não possuírem registro na ANVISA, não possuem registro em nenhuma das grandes agências reguladoras internacionais. São medicamentos ainda muito novos e carentes de comprovação de eficácia e segurança.

Pela legislação nacional, para que haja pesquisas científicas envolvendo seres humanos, é necessário o preenchimento de alguns requisitos dispostos na Resolução n° 196 de 10 de outubro de 1996 do Conselho Nacional de Saúde – CNS.

Na referida norma são adotadas as seguintes definições sobre os participantes:

Sujeito da pesquisa - é o(a) participante pesquisado (a), individual ou coletivamente, de caráter voluntário, vedada qualquer forma de remuneração.

Protocolo de Pesquisa - Documento contemplando a descrição da pesquisa em seus aspectos fundamentais, informações relativas ao sujeito da pesquisa, à qualificação dos pesquisadores e à todas as instâncias responsáveis.

Pesquisador responsável - Pessoa responsável pela coordenação e realização da pesquisa e pela integridade e bem integridade e bem integridade e bem estar dos sujeitos da pesquisa.

Instituição de pesquisa - organização, pública ou privada, legitimamente constituída e habilitada na qual são realizadas investigações científicas.

Promotor - indivíduo ou instituição responsável pela promoção da pesquisa.

Patrocinador - pessoa física ou jurídica que apoia financeiramente a pesquisa. Consentimento livre e esclarecido - anuência do sujeito da pesquisa e/ou de seu representante legal, livre de vícios (simulação, fraude ou erro), dependência, subordinação ou intimidação, após explicação completa e pormenorizada sobre a natureza da pesquisa, seus objetivos, métodos, benefícios previstos, potenciais riscos e o incômodo que esta possa acarretar, formulada em um termo de consentimento, formulada em um termo de consentimento, autorizando sua participação voluntária na pesquisa autorizando sua participação voluntária na pesquisa[29]

A pesquisa sobre um medicamento é um negócio jurídico que impõe ao patrocinador da pesquisa (laboratório farmacêutico, na maioria dos casos) a obrigação de, ao final do teste clínico, manter o fornecimento do tratamento clínico integral ao sujeito da pesquisa (inclusive as drogas utilizadas no experimento), até o final do tratamento, sob pena de estar excedendo os limites da boa-fé, eis que não é concebível a utilização do ser humano como mero objeto de pesquisa.

O medicamento em fase de pesquisa é um medicamento experimental e não pode ser comercializado, mas tão-somente testado para fins científicos, de acordo com a legislação de regência.

Na STA 175, assim se pronunciou o Ministro Gilmar Ferreira Mendes:

Os tratamentos experimentais (sem comprovação científica de sua eficácia) são realizados por laboratórios ou centros médicos de ponta, consubstanciando-se em pesquisas clínicas. A participação nesses tratamentos rege-se pelas normas que regulam a pesquisa médica e, portanto, o Estado não pode ser condenado a fornecê-los.

Como esclarecido pelo Médico Paulo Hoff na Audiência Pública realizada, Diretor Clínico do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo, essas drogas não podem ser compradas em nenhum país, porque nunca foram aprovadas ou avaliadas, e o acesso a elas deve ser disponibilizado apenas no âmbito de estudos clínicos ou programas de acesso expandido, não sendo possível obrigar o SUS a custeá-las. No entanto, é preciso que o laboratório que realiza a pesquisa continue a fornecer o tratamento aos pacientes que participaram do estudo clínico, mesmo após seu término.

A posição do STF foi clara ao fazer distinção entre os medicamentos novos e os medicamentos ainda experimentais, referindo que estes, por não terem segurança e eficácia comprovadas, não poderiam ter seu fornecimento imposto ao Estado (e também não aos planos de saúde privados), inclusive em razão do risco potencial à saúde do próprio requerente e titular do direito à saúde. Diariamente, porém, são ajuizadas ações na Justiça pedindo que o SUS forneça, tanto medicamentos novos, quanto os experimentais, e liminares são frequentemente deferidas em afronta ao art. 19-T da Lei 8.080/90, como é o caso das substâncias Canabidiol e Fosfoetanolamina

Mariana Filchtiner Figueiredo[30], trazendo a experiência do direito comparado, faz importante menção a decisões do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) sobre o uso compassivo de medicamentos experimentais. A autora analisa dois casos recentes: Hristozov and others v. Bulgaria (applications nº 47039/11 and 358/12) o qual tinha por objetivo declarar que o Tribunal Búlgaro violara o art. 8º da Convenção Europeia de Direitos Humanos[31] (CEDH) ao não permitir a utilização compassiva do medicamento de combate ao câncer MBVax Coley Fluid, desenvolvido por um laboratório canadense e ainda sem registro; e Durisotto v. Italy (application nº 62804/13) onde era alegada a violação dos artigos 2º[32] e 8º da mesma convenção, pela negativa de autorização judicial para uso experimental de terapia com células tronco. Em ambos os casos, da Bulgária e da Itália, as decisões judiciais guerreadas haviam negado os pleitos de uso experimental baseados em legislação interna, voltada à proteção da saúde pública, tendo o Tribunal Europeu de Direitos Humanos confirmado as decisões, afirmando que não incumbiria ao juiz internacional se substituir às autoridades nacionais competentes para determinar o nível de risco aceitável pelos pacientes que desejem aceder aos cuidados compassivos no quadro de uma terapia experimental, e que não se estava diante de casos de pura e simples negativa de assistência à saúde.

I.II. O registro na ANVISA como requisito para a comercialização de medicamentos no Brasil, situação que precede e condiciona a análise para  incorporação de um tratamento ao SUS.

A STA 175 destaca:

Como ficou claro nos depoimentos prestados na Audiência Pública, é vedado à Administração Pública fornecer fármaco que não possua registro na ANVISA.

A Lei Federal nº 6.360/76, ao dispor sobre a vigilância sanitária a que ficam sujeitos os Medicamentos, as drogas, os insumos farmacêuticos e correlatos, determina em seu artigo 12 que “nenhum dos produtos de que trata esta Lei, inclusive os importados, poderá ser industrializado, exposto à venda ou entregue ao consumo antes de registrado no Ministério da Saúde”. O artigo 16 da referida Lei estabelece os requisitos para a obtenção do registro, entre eles, que o produto seja reconhecido como seguro e eficaz para o uso a que se propõe. O Art. 18 ainda determina que, em se tratando de medicamento de procedência estrangeira, deverá ser comprovada a existência de registro válido no país de origem.

O registro de medicamento, como lembrado pelo Procurador-Geral da República, é uma garantia à saúde pública. E, como ressaltou o Diretor-Presidente da ANVISA, a agência, por força da lei de sua criação, também realiza a regulação econômica dos fármacos. Após verificar a eficácia, segurança e qualidade do produto e conceder o registro, a ANVISA passa a analisar a fixação do preço definido, levando em consideração o benefício clínico e o custo do tratamento. Havendo produto assemelhado, se o novo medicamento não trouxer benefício adicional, não poderá custar mais caro do que o medicamento já existente com a mesma indicação.

Por tudo isso, o registro na ANVISA mostra-se como condição necessária para atestar a segurança e o benefício do produto, sendo a primeira condição para que o Sistema Único de Saúde possa considerar sua incorporação.

Claro que essa não é uma regra absoluta. Em casos excepcionais, a importação de medicamento não registrado poderá ser autorizada pela ANVISA.  A Lei nº 9.782/99, que criou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), permite que a Agência dispense de “registro” medicamentos adquiridos por intermédio de organismos multilaterais internacionais, para uso de programas em saúde pública pelo Ministério da Saúde.

A decisão da STA 175 é de setembro de 2009 e já alçava o registro na ANVISA como condição de partida para a possível inclusão de um medicamento no rol dos fornecidos pelo SUS. Anos depois, o artigo 19-T da Lei 8.080/90 (que foi incluído pela Lei nº 12.401, de 2011) deixa claro que é vedado à Administração Pública fornecer fármaco que não possua registro na ANVISA:

Art. 19-T.  São vedados, em todas as esferas de gestão do SUS:          

I - o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento, produto e procedimento clínico ou cirúrgico experimental, ou de uso não autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA;        

II - a dispensação, o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento e produto, nacional ou importado, sem registro na Anvisa.”

A norma do art. 19-T até hoje não teve inconstitucionalidade declarada pelo STF, então presume-se constitucional e não pode deixar de ser aplicada sob pena de infração à Súmula Vinculante nº 10 do STF:

"Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público, afasta a sua incidência no todo ou em parte."

Em sendo assim, toda a decisão que determina ao Poder Público o custeio de medicamento sem registro na ANVISA é ilegal, e se essa norma não for expressamente declarada inconstitucional, em procedimento que observe a cláusula de reserva de plenário, não há justificativa para a lei  não ser respeitada.

Os três últimos casos mencionados no tópico anterior (itens “c”, “d” e “e”), ou seja, medicamentos com pretensão de uso off label, medicamentos sem registro na ANVISA, e medicamentos em fase experimental, tem as mesmas consequências no ordenamento jurídico nacional: o impedimento legal[33] para a sua comercialização no país, salvo exceções expressas na legislação, bem como o expresso impedimento para o seu fornecimento pelo SUS.

Em síntese apertada, o registro de um medicamento na ANVISA tem por objetivo: 1. Analisar sua segurança; 2. Analisar sua eficácia; 3. Analisar sua qualidade; 4. Analisar e monitorar o seu preço[34].

Para que haja registro de medicamentos no Estado brasileiro, com a respectiva autorização para comercialização e circulação do produto em território nacional, o laboratório farmacêutico deverá instar a ANVISA para tal fim, comprovando, minimamente, que o medicamento é: seguro, eficaz e de qualidade, bem como deverá apresentar informações a respeito do preço que pretende praticar, a fim de que a ANVISA possa realizar análise prévia acerca do preço que será fixado para o produto, bem como monitorar a evolução dos preços dos medicamentos, coibindo eventuais abusos.

O processo de aprovação e registro de fármacos pela Anvisa é de fundamental importância para a garantia do próprio sistema de saúde no Brasil, a exemplo do que ocorre nas demais grandes agências internacionais, como a FDA americana e a EMA europeia. Dentre as competências da ANVISA, está a de conceder registros de medicamentos e produtos, segundo as normas de sua área de atuação, procedendo-se à análise a respeito de sua segurança e eficácia, concluindo se o uso do medicamento traz mais benefícios que malefícios para a saúde do paciente (segurança), assim como se o medicamento utilizado traz efetivamente combate à doença a que se propõe tratar (eficácia).[35]

Claro está que se o medicamento já possui registro em outras agências internacionais, boa parte desse caminho já foi trilhado no estrangeiro, e essa experiência servirá de norte para a ANVISA, donde, à contrario sensu, a ausência total de registro em outras partes do mundo, é situação ainda mais “grave” em termos de permitir a comercialização de um medicamento no território nacional.

Cabe mencionar aqui os recentes e polêmicos casos relacionados às substâncias Canabidiol e Fosfoetanolamina, ambas sob intensos e recentes holofotes da mídia brasileira, por se apresentarem como medicamentos revolucionários.

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Sobre a autora
Renata Morsch

Advogada da União

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORSCH, Renata. Paradigmas traçados pela jurisprudência do STF para condução de demandas por medicamentos não padronizados pelo SUS.: Casos polêmicos do canabidiol e fosfoetanolamina. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4546, 12 dez. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/45096. Acesso em: 28 mar. 2024.

Mais informações

O presente texto foi elaborado como um dos papers para o curso de Pós Graduação em Direito Público e Advocacia de Estado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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