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Quebra dos sigilos bancário e fiscal e o necessário contraditório prévio

01/02/2020 às 08:40
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Recentemente, o Poder Judiciário do Rio de Janeiro votou pela anulação da quebra de sigilos bancário e fiscal do senador Flávio Bolsonaro, que havia sido decretada ano passado. Analisa-se o comportamento da jurisprudência acerca da decisão.

O desembargador Antonio Carlos Nascimento Amado, da 3.ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio (TJRJ), votou ontem pela anulação da quebra de sigilos bancário e fiscal do senador Flávio Bolsonaro (sem partido - RJ), que havia sido decretada pela Justiça ano passado.

O magistrado se manifestou em julgamento de habeas corpus pedido pela defesa do parlamentar, investigado pelo Ministério Público (MP) pela suposta prática de “rachadinha” (apropriação de parte dos salários de assessores que nomeou) quando era deputado estadual, entre 2003 e 2018.

O voto de Amado se baseou no fato de Flávio não ter sido ouvido antes do pedido de quebra de sigilo feito pelo MP em abril de 2019. De acordo com Amado, isso fere o direito ao contraditório. Não houve, no entanto, nenhuma decisão definitiva na sessão. Duas desembargadoras, também integrantes da 3.ª Câmara, pediram mais tempo para analisar o caso. A votação foi suspensa. A próxima sessão da 3.ª Câmara está marcada para o dia 4, mas o HC de Flávio não está na pauta.

Observe-se o artigo 282 do CPP, no parágrafo terceiro:

Art. 282. As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se a: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

I - necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

II - adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

§ 1o As medidas cautelares poderão ser aplicadas isolada ou cumulativamente. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

§ 2o As medidas cautelares serão decretadas pelo juiz, de ofício ou a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

§ 3o Ressalvados os casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida, o juiz, ao receber o pedido de medida cautelar, determinará a intimação da parte contrária, acompanhada de cópia do requerimento e das peças necessárias, permanecendo os autos em juízo. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

A regra é que o Juiz, antes de decidir sobre um pedido de cautelar, deve disponibilizar ao sujeito passivo da medida a possibilidade de contra- argumentar, inclusive fornecendo-lhe cópia do requerimento ou representação e demais peças consideradas necessárias. Já a exceção refere-se aos casos de urgência ou perigo de ineficácia da medida. E esta última se dá em sede de investigação criminal.

Seria medida que beira ao ridículo determinar o juiz a oitiva de investigado previamente com relação a busca e apreensão ou ainda quebra de sigilo bancário ou fiscal que se pretende fazer a bem da investigação.

É natural que as medidas cautelares revelem urgência e perigo de ineficácia acaso comunicadas previamente ao indiciado ou acusado, podendo-se antever que a aplicação do dispositivo será um tanto quanto limitada, tendo em vista certos casos como os acima mencionados.

Data vênia, em matéria de um inquérito policial, que se dá em sede de procedimento, não há que falar em partes. A medida certamente leva em conta o processo, quando aí sim, se dá a obrigatoriedade de contraditório prévio.

Sobre essa temática já se manifestou Luiz Flávio Gomes (Prisão e medidas cautelares, 2011, pág. 72) nos seguintes termos:

“O diploma legal comentado fala em ‘parte contrária’. Isso é criticável (s. M. J). Quem deve sempre (que possível) ser intimado é o indiciado ou acusado. O texto não foi claro quanto à forma da resposta do acusado ou indiciado (oral ou escrita). Sendo assim, nada impede que o juiz adote uma ou outra. Pode conferir um determinado prazo para resposta (escrita) ou marcar uma audiência para ouvir o acusado. O que compete ao juiz é garantir o contraditório e a ampla defesa”.

No inquérito policial não há autor e réu. Há o Estado investigador e o investigado.

Ora, o inquérito policial constitui mero procedimento administrativo, de caráter investigatório, com o intuito de subsidiar a atuação do Parquet.  

Sabe-se que o Juiz pode conceder cautelares de ofício na fase processual (artigo 282, § 2º., CPP). Considerando esse fato, torna-se muito estranha a determinação de “intimação da parte contrária” para resposta prevista no artigo 282, § 3º., CPP. Isso porque é evidente que o Juiz não é “parte” em processo algum,

Não há uma norma que taxativamente determine que haja o depoimento do acusado antes da decretação da quebra de sigilo. Existem situações em que a quebra de sigilo é feita por flagrante delito, por exemplo, e se há o aviso ao suspeito perde-se o fator surpresa, que é necessário à investigação produzida a bem do interesse público. O investigado deve falar depois, utilizando-se do habeas corpus, se possível.

O requerimento da defesa de manifestação prévia, além de não encontrar respaldo legal, vai de encontro frontal à jurisprudência desta Corte:

“EMENTA: - INQUERITO. AGRAVO REGIMENTAL. SIGILO BANCARIO. QUEBRA. AFRONTA AO ARTIGO 5.-X E XII DA CF: INEXISTÊNCIA. INVESTIGAÇÃO CRIMINAL. CONTRADITORIO. NÃO PREVALECE. I - A quebra do sigilo bancário não afronta o artigo 5, X e XII, da Constituição Federal (Precedente: PET.577). II - O princípio do contraditório não prevalece na fase inquisitorial (HC 55.447 e 69.372; RE 136.239, inter alia). Agravo regimental não provido” (Inq 897 AgR, Relator(a): Min. FRANCISCO REZEK, Tribunal Pleno, julgado em 23/11/1994, DJ 24-03-1995 PP-06806 EMENT VOL-01780-01 PP-00171) . Nessa linha, destacou o Min. Celso de Mello, em seu voto, “que nada impede que, instaurado o inquérito policial e observadas as cautelas determinas pelo ordenamento normativo , seja decretada a quebra de sigilo bancário, sem necessidade, em tal situação, de prévia audiência do indiciado. Presente esse contexto, não há cogitar de instauração incidental do contraditório em procedimento nitidamente qualificado pela nota de unilateralidade e da inquisitividade”.

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Observe-se a esse respeito o que foi decidido no Inq. 3993/DF, relator ministro Teori Zavascki, julgado em 1º de junho de 2015.

Confira-se, a propósito, o seguinte julgado:

“INQUÉRITO. AGRAVO REGIMENTAL. SIGILO BANCÁRIO. QUEBRA. AFRONTA AO ARTIGO 5º, X E XII, DA CF: INEXISTÊNCIA. INVESTIGAÇÃO CRIMINAL. CONTRADITÓRIO. NÃO PREVALECE. I – A quebra do sigilo bancário não afronta o artigo 5º, X e XII, da Constituição Federal (Precedente: PET. 577). II - O princípio do contraditório não prevalece na fase inquisitória (HHCC 55.447 e 69.372; RE 136.239, inter alia). Agravo regimental não provido” (Inq 897-AgR, Rel. Min. Francisco Rezek, Plenário, DJ 24.3.1995).

Em seu voto o Ministro Celso de Mello asseverou que:

“nada impede que, instaurado o inquérito policial – e observadas as cautelas determinadas pelo nosso ordenamento normativo -, seja decretada a quebra do sigilo bancário, sem necessidade, em tal situação, de prévia audiência do indiciado. Presente esse contexto, não há cogitar da instauração incidental do contraditório em procedimento nitidamente qualificado pela nota da unilateralidade e da inquisitividade”.

No mesmo sentido, os seguintes julgados: HC 82.354, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, DJ 24.9.2004; e HC 69.372, Rel. Min. Celso de Mello, Primeira Turma, DJ 7.5.1993.

Assim, tem-se que a unilateralidade das investigações desenvolvidas pela polícia judiciária na fase preliminar da persecução penal (informatio delicti)  e o caráter inquisitivo que assinala a atuação da autoridade policial não são autorizadas, sob pena de grave ofensa À garantia constitucional do contraditório e da plenitude da defesa.

Quanto à pretensa afronta ao direito ao sigilo bancário, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido de que este não é absoluto, podendo haver situações em que seja permitido superá-lo, a depender, uma vez mais, da prudente avaliação do Poder Judiciário. Confira-se, a propósito, o seguinte excerto do voto do Ministro Carlos Velloso, na Pet 577-QO:

“O sigilo bancário protege interesses privados. É ele espécie de direito à privacidade, inerente à personalidade das pessoas e que a Constituição consagra (C.F., art. 5º, X), além de atender ‘a uma finalidade de ordem pública, qual seja a de proteção do sistema de crédito’, registra Carlos Alberto Hagstrom, forte no magistério de G. Ruta (‘Le Secret Bancaire em Droit Italien’, Rapport, p. 17; Carlos Alberto Hagstrom, ‘O Sigilo Bancário e o Poder Público’, Ver. de Direito Mercantil, 79/34). Não é ele um direito absoluto, devendo ceder, é certo, diante do interesse público, do interesse da justiça, do interesse social, conforme aliás, tem decidido esta Corte (RMS nº 15.925-GB, Relator o Ministro Gonçalves de Oliveira; RE nº 71.640-BA, Relator Ministro Djaci Falcão, RTJ 59/571; MS 1.047, Relator Ministro Ribeiro da Costa, Ver. Forense 143/154; MS 2.172, Relator Ministro Nelson Hungria, ‘DJ’ de 5.1.54; RE nº 94.608-SP, Relator Cordeiro Guerra, RTJ 110/195). Esse caráter não absoluto do segredo bancário, que constitui regra em direito comparado, no sentido de que deve ele ceder diante do interesse público é reconhecido pela maioria dos doutrinadores (Carlos Alberto Hagstrom, ob. cit., pág. 37; Sérgio Carlos Covello, ‘O Sigilo Bancário como Proteção à Intimidade’, Rev. dos Tribs., 648/27, 29; Ary Brandão de Oliveira, ‘Considerações Acerca do Segredo Bancário’, Rev. de Dir. Civil, 23/114, 119). O Segredo há de ceder, entretanto, na forma e com observância de procedimento estabelecido em lei.”

E, ainda, os seguintes julgados: RE 219.780, Rel. Min. Carlos Velloso, Segunda Turma, DJ 10.9.1999; Pet 2.790-AgR, Rel. Min. Nelson Jobim, Segunda Turma, DJ 11.4.2003; Pet 1.564-AgR, Rel. Min. Octavio Gallotti, Tribunal Pleno, DJ 27.8.1999; RMS 23.002, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 27.11.1998; e RE 541.265, Rel. Min. Carlos Velloso, Segunda Turma, DJ 4.11.2005.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Quebra dos sigilos bancário e fiscal e o necessário contraditório prévio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6058, 1 fev. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/79259. Acesso em: 18 abr. 2024.

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