A edição do Tema 793 do Supremo Tribunal Federal foi amplamente comemorada por toda a comunidade jurídica dedicada à proteção e defesa individual e coletiva de grupos vulneráveis. Esse importante enunciado finalmente solucionou a questão da legitimidade passiva nas demandas de saúde pública, afastando, de uma só vez, todas as teses restritivas dos entes públicos que postergavam a entrega da tutela jurisdicional definitiva ao cidadão.
De fato, o Tema 793 reafirma o disposto no art. 196 da Constituição Federal de 1988, que não exime nenhum ente público de sua missão e dever de zelar pelo direito fundamental à saúde de todos, de forma universal e igualitária. A seguir, vejamos a redação original do acórdão do Supremo Tribunal Federal que fundamentou a sua edição:
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. DIREITO À SAÚDE. TRATAMENTO MÉDICO. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES FEDERADOS. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. REAFIRMAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. O tratamento médico adequado aos necessitados se insere no rol dos deveres do Estado, porquanto responsabilidade solidária dos entes federados. O polo passivo pode ser composto por qualquer um deles, isoladamente, ou conjuntamente.
(RE 855178 RG, Relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 05/03/2015, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-050 DIVULG 13-03-2015 PUBLIC 16-03-2015)”
Ocorre que, após a oposição de Embargos de Declaração, esse acórdão foi posteriormente aditado pelo STF, com a inclusão de uma questão relativa ao direito de regresso, que deverá ser expressamente consignada pelo juiz de 1º grau na sentença. Confira-se:
“CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. AUSÊNCIA DE OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE. DESENVOLVIMENTO DO PROCEDENTE. POSSIBILIDADE. RESPONSABILIDADE DE SOLIDÁRIA NAS DEMANDAS PRESTACIONAIS NA ÁREA DA SAÚDE. DESPROVIMENTO DOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO.
1. É da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que o tratamento médico adequado aos necessitados se insere no rol dos deveres do Estado, porquanto responsabilidade solidária dos entes federados. O polo passivo pode ser composto por qualquer um deles, isoladamente, ou conjuntamente.
2. A fim de otimizar a compensação entre os entes federados, compete à autoridade judicial, diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, direcionar, caso a caso, o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro.
3. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na ANVISA deverão necessariamente ser propostas em face da União. Precedente específico: RE 657.718, Rel. Min. Alexandre de Moraes.
4. Embargos de declaração desprovidos.
(RE 855178 ED, Relator(a): LUIZ FUX, Relator(a) p/ Acórdão: EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 23/05/2019, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-090 DIVULG 15-04-2020 PUBLIC 16-04-2020)”
Diante da interposição desses Embargos de Declaração, a redação final do Tema 793 do STF ficou expressa nos seguintes termos:
“Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro”.
É desnecessário mencionar a enxurrada de Embargos de Declaração que vêm sendo opostos pelo Poder Público em 1º grau, em razão da emenda promovida pelo STF no Tema 793.
Pois bem. Uma leitura precipitada da nova redação do Tema 793 pode sugerir que o juiz, na sentença, deveria promover quase que uma exclusão do polo passivo da lide, condenando apenas e tão somente o ente público que seria “verdadeiramente” responsável pelo cumprimento da obrigação, conforme as regras de repartição de competências administrativas. Sob esse entendimento apressado, o efetivo cumprimento da liminar, da sentença ou da execução cível deveria ser direcionado exclusivamente ao ente público determinado pelas normas legais de descentralização e hierarquização administrativas.
No entanto, essa interpretação não condiz com o que se extrai do Tema 793 do STF, nem antes nem depois de sua redação definitiva. A responsabilidade solidária dos entes públicos em matéria de direito à saúde permanece intocável e indiscutível. Não se pode perder de vista, em hipótese alguma, a expressão “determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro”. Essa expressão denota uma pretensão de regresso, ou seja, uma lide secundária, consequência da obrigação solidária. Em última análise, seria transformar o juiz de 1º grau em um promovente de denunciação da lide de ofício, uma intervenção de terceiros não provocada—o que nada tem a ver com a discussão principal do mérito da ação.
Dessa forma, a interposição de Embargos de Declaração por determinado ente público, pleiteando que seja determinado o ressarcimento à Fazenda Pública que suportou o ônus financeiro, não altera a natureza de obrigação principal solidária de todos os entes públicos no cumprimento da decisão liminar ou da sentença. Muito menos afasta a legitimidade passiva de qualquer ente público na ação de obrigação de fazer que versa sobre demandas de saúde pública.
“Ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro” é reembolso, nada mais. Esse direito de regresso é uma característica essencial e inquestionável das obrigações solidárias no Direito Civil. Do Código de Napoleão ao Código Civil de 2002, ninguém jamais ousou duvidar disso:
“Art. 285. Se a dívida solidária interessar exclusivamente a um dos devedores, responderá este por toda ela para com aquele que pagar”.
Assim, o capítulo principal da sentença em demandas de saúde, não impugnado mediante recurso de apelação, transitará em julgado. Eventual interposição de Embargos de Declaração, questionando apenas o ressarcimento do ônus financeiro a determinado ente público embargante (direito de regresso), não impedirá a formação da coisa julgada parcial.
Aliás, o autor da ação sequer terá legitimidade para apresentar contrarrazões nessa discussão secundária via Embargos de Declaração, pois lhe faltará capacidade de representação ou assistência a qualquer dos entes públicos envolvidos. Esses declaratórios, por envolverem pretensão fazendária de regresso, deverão se restringir aos entes públicos.
Discutir, em Embargos de Declaração, exclusivamente o ressarcimento do ônus financeiro implica o reconhecimento expresso do julgado na parte que acolhe o pedido principal, caracterizando coisa julgada parcial. Assim, a Fazenda Pública deve optar por uma das seguintes estratégias:
Negar a obrigação/dever frente ao pedido principal do autor, interpondo Apelação ao Tribunal;
Pleitear o ressarcimento do ônus financeiro, via Embargos de Declaração, caso haja omissão na sentença;
Pleitear simultaneamente a improcedência do pedido principal e, subsidiariamente, o direito de regresso, por meio de recurso de Apelação dirigido ao Tribunal.
Abro um parêntese. Poderá o juiz redirecionar o cumprimento da decisão, com base nas regras de repartição de competências, e determinar o ressarcimento contra um ente público não citado, ou que não foi demandado pelo autor, sem que isso implique violação das garantias do contraditório e da ampla defesa? Penso que não. Esse redirecionamento somente será cabível se os entes públicos forem conjuntamente demandados, sob a regra da solidariedade constitucional do artigo 196 da Constituição Federal e do Tema 793, garantindo-lhes a oportunidade de se manifestarem sobre os “critérios constitucionais de descentralização e hierarquização”.
Além disso, caso os entes públicos permaneçam silentes em contestação quanto a esse ponto, o juiz estaria obrigado a assegurar, de ofício, o direito de regresso automaticamente? Penso que não. Nesse caso, deve-se entender que os entes públicos deverão se valer de ação autônoma para discutir o direito de regresso, pois a não dedução da pretensão ressarcitória em contestação caracteriza preclusão.
Por fim, é importante registrar que a interposição de Embargos de Declaração questionando o ressarcimento ao ente público que suportou o ônus financeiro, além de não impedir a formação da coisa julgada parcial sobre o capítulo principal da sentença de mérito nas ações de saúde, evidentemente não suspenderá a força e eficácia executiva da prestação jurisdicional, seja em sede liminar, seja em sede de execução forçada/cumprimento de sentença.
O Tema 793 não cria um “super Embargos de Declaração” em favor da Fazenda Pública. A obrigação principal solidária deverá sempre ser cumprida, direcionada e exigida de todos os entes públicos. O direito de regresso é uma questão distinta, a ser discutida entre os entes públicos em um capítulo paralelo da sentença.
Somente o Relator no Tribunal poderá suspender o cumprimento da sentença, mediante pedido liminar de tutela recursal, caso o objetivo seja a improcedência do pedido principal de mérito do autor/apelado. Subsidiariamente, se for o caso, poderá ser pleiteado o direito de regresso.