Memorando aos Colegas da Advocacia e da Magistratura
1. Era de razão que se voltassem para o Supremo Tribunal Federal, aos 23 de março de 2021, os espíritos preocupados com os graves assuntos nacionais; afinal, nesse dia, julgariam seus Ministrosprocesso que, segundo abalizadas opiniões, iria pôr cobro à nefasta impunidade e corrupção que, sem contradita honesta, arruínam o País.
Como o viajor do deserto, que, exausto, se imagina diante do oásis que o irá dessedentar e, pois, manter-lhe a vida, assim milhões de brasileiros dirigiram sua atenção para o pórtico de nossa principal Corte de Justiça, com o desejo ardente de que ela não lhes frustrasse enorme expectativa. Queriam, em suma, confirmar-se na crença de que o Supremo Tribunal Federal, além de guardião das leis e intérprete máximo da Constituição, era o precioso repositório da ciência jurídica e, pelo raro saber e conselho de seus Ministros, o oráculo infalível nas questões que entendem com os direitos, obrigações e garantias dos cidadãos.
Mas, o que se não esperava (e excedeu toda a imaginação) foi que esse julgamento, a estarmos pelo sentimento geral das pessoas de limado juízo, deu causa e pretexto a que — “horribile dictu”! — se fulminassem contra a Suprema Corte críticas e impropérios tão acerbos e desabridos, como iguais ainda não haviam registrado os fastos do Poder Judiciário.
Numa palavra: o efeito que tal decisão provocou nos sujeitos mais advertidos e briosos não foi muito diverso do assombro que se infundiria no ânimo do homem comum que, ao deitar os olhos para as fímbrias do horizonte, percebesse, no alvor de um dia aziago, aparecer o Sol no ponto cardeal oeste, onde precisamente costuma descambar!
2. Os Senhores Ministros de nossa Mais Alta Corte de Justiça tinham entre mãos causa mais relevante que complexa (“Habeas Corpus” nº 164.493), em que o paciente armava ao fito de obter de Suas Excelências declaração de nulidade de ação penal, por alegada parcialidade do juiz.
Por uma de suas Turmas (a 2a.), deferiu o Supremo Tribunal Federal ao paciente a ordem para o fim que constituía o objeto da impetração: anular a ação penal (cujos termos se haviam processado perante o Juízo de Direito da 13a. Vara Federal de Curitiba), à conta de parcialidade do juiz (Sérgio Fernando Moro) que presidira à instrução criminal, sentenciara o feito, decretara a condenação do paciente (Luiz Inácio Lula da Silva) e enviara-o à sombra do cárcere.
Se, em todas as instâncias da Justiça Criminal, passa por fato ordinário isto da concessão de “habeas corpus”, por que, no caso de que se trata, foi o resultado do julgamento severamente impugnado não só pelo vulgo profano senão ainda por figuras exponenciais das carreiras jurídicas, de seu natural discretas e que, em linha de princípio, costumam abster-se de comentar com estrépito decisões proferidas pelos magistrados com assento nas primeiras cadeiras da Justiça?!
De uma das mais lúcidas inteligências, de que justamente se ufana a república das boas letras, ficou-nos este alvitre: “Não há coisa mais dificultosa que dar a razão de uma sem-razão”[1].
Tentarei, contudo, examinar os móveis ou argumentos que, ao parecer, concorreram para a discordância de muitos brasileiros com a referida decisão, que houveram por anômala e acintosa; e, por isso, deram o toque de rebate para que juízes, membros do Ministério Público e advogados comparecessem à barra do tribunal do povo, para responder aos artigos de informal libelo por pretensas infrações éticas, funcionais e até pela prática de crimes de prevaricação e lesa-pátria.
Fez as vezes de estendal da insatisfação pública a Imprensa — “a vista da nação”, na frase lapidar de nosso maior patrício[2] —, secundada pelos mais veículos de informação. Com efeito, jornais, emissoras de rádio, canais de televisão e instrumentos de acesso às redes sociais continuam a realejar o tema do julgamento do “habeas corpus” que recebeu já a tacha pejorativa de abundantes adjetivos: “nefasto”, “aberrante”, “esdrúxulo”, “monstruoso”, etc.
3. Circunstâncias da vida ensejaram-me integrasse por largo tempo, de corpo e alma, as carreiras assim da Advocacia como da Magistratura, esta até a aposentadoria. Conheço, pois, o seu tanto as aptidões e qualidades necessárias aos que as exercem, o que me habilita a delas discorrer, posto incidentalmente. Trata-se, não há para que se negue, de profissões, cargos ou dignidades que sempre mereceram à voz pública os mais altos e distintos louvores. Da primeira disse um grande espírito que era a mais bela profissão do mundo[3]; a Magistratura, esta se honra com o magnífico epíteto com que a exornou o imenso Rui: “(…) a mais eminente das profissões, a que um homem se pode entregar neste mundo”[4].
Defensor de uma das partes litigantes em juízo (e constituído para assisti-la com toda diligência e sem desfalecimento), submete-se o advogado, no exercício do múnus público, às severas cláusulas do juramento que fez, ao receber sua prestigiosa carteira profissional[5].
Por formal compromisso também o magistrado se obriga à reta exação no desempenho de seu cargo[6].
E bem estava que, em cerimônia penetrada de simbolismo e resignação, o advogado e o juiz prestassem realmente compromisso de cumprir seus deveres com “retidão, amor à Justiça e fidelidade às leis e instituições vigentes”, provendo à segurança do País, que o preconizavam os atributos de seu múnus e ofício.
Enfim, os integrantes das carreiras jurídicas (advogados, juízes, membros do Ministério Público, etc.) atendem, pelo comum, ao compromisso com que se aprestaram para as coisas e negócios da Justiça e do Estado. O advogado, a dar-se o caso que, esquecido das normas do público proceder, ofenda o decoro da profissão ou, no patrocínio da causa, destoe da praxe e uso forense, haverá quem o chame a contas e lhe emende a mão: o órgão disciplinar da Ordem ou, na esfera judiciária, o próprio juiz do processo. O juiz que transgride seus deveres funcionais ou desacerta no dizer o direito (“quod Deus avertat a bonis”!), esse fica sob o poder disciplinar do Conselho Nacional de Justiça, ou é submetido à autoridade de hierarquia superior, nas hipóteses de erro de julgamento (“error in judicando”).
Para mais, são brasileiros esses profissionais do Direito e, destarte, presume-se-lhes o natural sentimento de patriotismo. No rol de seus desígnios constará, por força, a preocupação pela prosperidade do Brasil e bem-estar de seu povo. (Os acordes do Hino Nacional ainda lhes espertam um frêmito de entusiasmo na arca do peito!).
4. Agora, ao cerne da questão: o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, de um “habeas corpus”, cujo resultado até a leigos surpreendeu… (O que depõe a favor da teoria de que não é preciso ser musicista de escol para perceber quando, ao entoar melodia conhecida, o cantor desafina).
O instituto do “habeas corpus” — remédio jurídico-processual mais célere e eficaz para conjurar abusos e ilegalidades contra o direito à liberdade de locomoção do indivíduo — rege-se por princípio rigorosamente observado em todos os graus de jurisdição, que o Supremo Tribunal Federal, muito há, cristalizou em sua jurisprudência: “O processo de habeas corpus não comporta exame interpretativo de prova, notadamente prova testemunhal” (HC nº 48.894-GB; 2a. Turma; rel. Min. Antonio Neder; j. 6.8.71; in Revista Trimestral de Jurisprudência, vol. 58, p. 523).
Era a aplicação da doutrina que o ínclito jurista Pedro Lessa[7] professava a propósito do “habeas corpus”: se, para concedê-lo, for de mister exame de “alegações e provas, que devem ser exibidas em uma ação qualquer, sob qualquer exame processual, ao juiz cumpre indeferir o pedido” (apud Manoel Costa Manso, O Processo na Segunda Instância, 1923, p. 391).
Ultimamente, Heleno Cláudio Fragoso: “Não se pode admitir em habeas corpus matéria de prova duvidosa ou controvertida” (Jurisprudência Criminal, 1979, vol. II, p. 432).
Ora, a questão que se pretendia desatar na via angusta do “habeas corpus” ninguém, em seu acordo e razão, dirá que era simples e estreme de dificuldades; ao revés, cobria-a véu espesso e impenetrável; ao demais, no transcurso de seis anos, escrutínios de probos, cultos e diligentes Magistrados de nossas Cortes Superiores de Justiça não acharam o que desvendar nem trazer à luz, em contradição com a legalidade do processo-crime em que oficiara o juiz estigmatizado com o ferrete de parcial.
Eis por que a doutos e semidoutos não desconcertou o voto do Senhor Ministro-Relator (Edson Fachin), ao denegar, sob aquele fundamento (isto é, não tolerar o “habeas corpus”, por seu rito peculiar, análise aprofundada de prova), a ordem impetrada; nem o do 2º Juiz (Cármen Lúcia), que o acompanhou, abundando nas mesmas razões de decidir.
Certo exame de prova — desde que perfunctório, rápido e superficial — sempre se admitiu nos raios do “habeas corpus”; o que aí não tem lugar é a ampla indagação, própria só das dilações probatórias ordinárias.
Proferido o segundo voto, pediu vista dos autos o 3º Juiz (Gilmar Mendes), como lho facultava o art. 134 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal[8].
A partir daí, introduziram-se na tramitação dos autos práticas insólitas, das quais foi a primeira a demora inaudita em sua devolução à mesa para a continuidade do julgamento[9], e isso em tanta maneira, que adquiriu foros de realismo o oportuno epigrama de Rui: “Não sejais, pois, desses magistrados, nas mãos de quem os autos penam como as almas penadas do purgatório, ou arrastam sonos esquecidos, como as preguiças do mato” (Oração aos Moços, 1a. ed., p. 42).
Pode ter havido razões atendíveis — que não é para aqui liquidar —, mas, em pontos de retenção de autos de “habeas corpus”, por pedido de vista, não se sabe que alguém deitasse a barra tão longe!
5. Outro fato, que abismou as pessoas que o puderam testemunhar, foi o teor de proceder do Senhor Ministro a quem competia dar a conhecer o voto ansiosamente aguardado: com veemência, e melhor diria fúria retórica, discorreu à larga das circunstâncias do pedido de “habeas corpus”, fazendo grande caso e cabedal de matérias de vária ordem, colhidas de processos-crimes instaurados contra o paciente; onde, entretanto, mais se comprazeu, reservando-lhes magna parte de suas diatribes, foi nuns elementos (ou narrativas) a que a malícia emprestara força e prestígio, sem embargo de sua absoluta imprestabilidade, por obtidos com violação de conversas telefônicas resguardadas pelo sigilo.
Ao caráter de nada jurídico (atento seu vício de origem) juntava-se a tal corpúsculo de provas a nódoa irremissível de não ter sido submetido a perícia, que lhe comprovasse a autenticidade.
Com as mãos nessa congérie de elementos disformes e sem fomento de direito — que, de regra, não têm entrada no átrio da Justiça —, foi que Sua Excelência votou pela concessão do “habeas corpus”, tendo-o seguido o 4º Juiz (Ricardo Lewandowski). Ao mesmo tempo, anunciava-se com pregão que algum Ministro estaria excogitando alterar seu voto, agora para deferir o “habeas corpus”. Solicitou, nesse ínterim, vista dos autos o 5º Juiz (Nunes Marques), que iria desempatar a votação.
Firme na lição da doutrina mais bem recebida e na jurisprudência consolidada dos Tribunais, Sua Excelência acompanhou o Ministro-Relator e denegou o pedido.
Então, à maneira de iracundo mestre-escola — que, empunhando temível férula, determina chamar à ordem rapazelhos díscolos e recalcitrantes —, o mesmo Senhor Ministro (que retivera consigo, por obra de um biênio, os autos do processo de “habeas corpus”) retomou a palavra e, reabrindo a discussão da causa, entendeu de avigorar os fundamentos do voto que proferira na sessão anterior da Turma, discrepante do que dera o Ministro-Relator. Em exaustiva peroração, reiterou argumentos extraídos de vários tópicos processuais; submeteu a aturada análise fatos relativos ao paciente e deles pretendeu inferir a parcialidade do juiz da condenação. Já esgotada a sua eloquência (e talvez a paciência de muitos que o escutavam), fechou a abóbada de seu voto, no qual encareceu a concessão da ordem de “habeas corpus”.
As palavras, que milhares de espectadores da TV Justiça acabávamos de ouvir, não lembraram — pesa-me dizê-lo — as que soem brotar dos lábios do magistrado refletido, prudente e sábio (atributos que lhe são inerentes), mas as de um demagogo atrabiliário que, erguendo a voz[10] e gesticulando arrebatadamente num rude palanque, prestes a romper as ilhargas, expectora frases minazes e tremebundas e, ao final, promete, em tempestuosa oratória, atar ao pelourinho quem dele ouse discordar[11].
6. Após a segunda manifestação de Sua Excelência, deparou ensejo a novo ato no julgamento do “habeas corpus” a intervenção de outro integrante da Turma, que, embora já tivesse proferido seu voto (pelo qual denegava a ordem), propunha-se reconsiderá-lo; o que fêz.
Nos Tribunais, é incidente ordinário isto de um juiz mudar seu voto, se o determinarem razões forçosas e inabaláveis. Proceder é esse que, aliás, tem por si brasão de aforismo jurídico: “Sapientis est mutare consilium”. Sim, é próprio do sábio mudar de parecer ou opinião, desde que o faça para melhor!
É que a mudança de opinião ou voto, sem que o inculquem novas razões e sustentem melhores fundamentos, é operação mental que desfecha em ilogismo, pois encadeia o raciocínio e amortalha o bom-senso.
Ora, nenhum argumento sério constava dos autos — e o que não está nos autos não está no mundo, reza a parêmia[12] —, suficiente a abalar o convencimento expresso no voto que acabava de abjurar.
Onde o argumento-Aquiles, o argumento de grande calado, bastante a abrir mossa no espírito do Ministro do Supremo Tribunal Federal e justificar-lhe a excepcional alteração de entendimento acerca de matéria processual simples e correntia, em sacrifício de sua decisão anterior, tão bem exarada?!
Fora acaso a menção, no debate da causa, de fatos extraídos de gravações telefônicas não autorizadas e talvez desabonadoras da conduta do magistrado arguido de parcial?!
Estou que não; obtidas criminosamente — demais de não periciadas —, não se eximiam tais provas da nota de ilícitas e indignas de fé; repugnariam, pois, liminarmente, à sã consciência de todo aquele que as houvesse de aferir…[13].
No mudar seu voto, dar-se-ia o caso que o Juiz acedera a sugestões e fatores exógenos, sem algum liame com o processo?! Seria leviandade supô-lo; não fora de presumir quisesse rastejar na lama o que tem asas para voar!
Poderia, enfim, ter influído na alteração (ou metamorfose) do voto um inexplicável temor reverencial ou rendição da vontade do súcubo à prepotência de algum soturno íncubo? Não há afirmá-lo, que isto implicava perscrutar os arcanos do subjetivismo alheio, empresa vã e pretensão desvairada!
Em resumo: atinar com os reais motivos da mudança de voto (que tanta honra conferia a seu prolator!) não parecera menos difícil que “endireitar a sombra da vara torta”, como diria um galante escritor[14].
Daí a estupefação da maior parte daqueles que se inteiraram do resultado do julgamento, no qual se alegava parcialidade do juiz que condenou o paciente. Muitos, a essa conta, não tiveram mão em si que não se autorizassem, desde logo e com desconhecida energia, a vituperar juízes e advogados.
7. Que os agravados em sua reputação não viessem a terreiro para se defender foi também matéria para ásperas controvérsias. Mas o seu silêncio (antes estudado que obsequioso) terá, decerto, fundamentos sólidos que o relevem, e isto bem se adivinha.
Com referência aos advogados — que não poucas pessoas tiveram por agrestes e incivis, por amor do extremo denodo com que atuaram em suas causas —, esses estão sujeitos ao Estatuto da Advocacia e ao Código de Ética e Disciplina.
Por seu teor normativo particular, e em proveito da boa inteligência das prerrogativas do advogado, faz ao propósito reproduzir aqui artigo áureo do Estatuto da Advocacia: “O advogado tem imunidade profissional, não constituindo injúria, difamação ou desacato puníveis qualquer manifestação de sua parte, no exercício de sua atividade, em juízo ou fora dele, sem prejuízo das sanções disciplinares perante a OAB, pelos excessos que cometer” (art. 7º, § 2º).
Para ele, o mesmo é trair a grandeza de seu ministério que não poder exercê-lo com independência. Donde o elementar corolário: para advogar é mister ampla liberdade. Ou, como sentia aquele sujeito de raro espírito e talentos que foi Alfredo Pujol: “O advogado tem de ser inteiramente livre, para poder ser completamente escravo de seu dever profissional! O único juiz de sua conduta há de ser sua própria consciência (…)” (Processos Criminais, 1908, p. 128).
Sobretudo a liberdade de expressão há sempre de garantir-se aos advogados, aos quais tocou a palavra por instrumento de luta.
Em obséquio ao alcance de seu ofício, houve quem reputasse dignas de tolerância as palavras do advogado, ainda nos seus excessos: “O advogado precisa da mais ampla liberdade de expressão para bem desempenhar o seu mandato. Os excessos de linguagem, que porventura cometa, na paixão do debate, lhe devem ser relevados” (Rafael Magalhães, in Revista de Jurisprudência, vol. I, p. 375).
E, ouso dizer, não lhe faltaram carradas de razão. Naquelas defesas onde se reclama certa vivacidade e animação de linguagem, que mais fácil, com efeito, que ir o advogado além da marca?! Excelentemente, o conspícuo Sobral Pinto: “É que o patrono de uma causa precisa, muitas vezes, para bem defendê-la, assegurando assim o seu êxito, ser veemente, apaixonado, causticante. Sem que o advogado revista a sua defesa de tais características, a sorte de seu cliente estará, talvez, irremediavelmente perdida” (apud Carvalho Neto, Advogados, 1946, p. 481).
Mas, ainda quando algum advogado, mentindo a augustos ideais, venha a cair em desgraça, não é possível que desdoure o fulgor de toda sua Ordem: grandes vultos, em todas as quadras da História — Cícero, Berryer, Malesherbes e Rui Barbosa —, já lhe fizeram perpétua apoteose. (Ainda ressoam nos Tribunais, já que a morte as não pôde silenciar, as vozes de um Waldir Troncoso Peres, de um Dante Delmanto e de um Raimundo Pascoal Barbosa, nos quais a flama da advocacia militante rivalizava com os primores da ética profissional)[15].
8. Mais que o silêncio (ou talvez indiferença) dos advogados quanto às licenças com que, ultimamente, se apadrinharam julgamentos do Supremo Tribunal Federal, incomodou a opinião pública o conformismo, com feições de apatia, que pareceu haver penetrado a alma de eleição da Magistratura brasileira.
Juízes houve, é bem verdade, que, não sopitando desapontamento e desagrado, vieram a público e declararam-se estarrecidos com os rumos que tomava a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal; diziam-se igualmente acabrunhados pelo proceder (que haviam por temerário) de alguns de seus Ministros no aplicar o direito e dispensar justiça.
Para não ser demasiado prolixo, e reputá-las expressivas que farte para evidenciar a desconformidade do sentimento (ia quase a dizer unânime) dos juízes com os recentes julgados daquela Alta Corte, citarei só as palavras do ex-Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Desembargador Márcio Martins Bonilha, jurista de alto quilate, varão de claro entendimento, vasto saber e peregrinas virtudes: “(…) quero bradar meu clamor, porque assisti com estupefação à sessão de julgamento no caso da imputada parcialidade do juiz Sergio Moro, em processo da denominada Operação Lava Jato, mal acreditando no aberrante desfecho da causa, que não honra as tradições de justiça daquela Alta Corte” (in O Estado de S. Paulo, 25.3.21, p. A3).
Teria tal clamor, que não se atirava às pedras do deserto, deixado de propagar-se entre os colegas de toga? Não, decerto! Antes é para crer que o tenham ouvido e de boa mente confirmado, pois que, fortes nas escorreitas letras jurídicas, sempre tiveram em muito as regras do direito positivo, as tradições do Judiciário e os preceitos da Justiça. Para mais, o sangue não lhes esquecera ainda o caminho do rosto!
Mas, por que se retraíram quando deles se esperava que adiantassem o passo, de viseira erguida?!
Duas razões acredito lhes guiaram o propósito de prestigiar o silêncio: a notória escassez de tempo, que não permite aos juízes cuidar senão das coisas que interessam diretamente à sua judicatura; e a persuasão de que o referido julgamento em nada irá alterar a Jurisprudência que, de longa data, vem iluminando nossos Tribunais.
Fato de todos conhecido, a sobrecarga de trabalhos com que se veem a braços os juízes estaduais, reduzidos a condição análoga à de escravos, era já poderosa para mantê-los afastados de questões extra-autos. Neles operou, todavia, causa de maior monta: a convicção da parva relevância do resultado de tal julgamento nas instâncias judiciárias inferiores.
Com efeito, o acórdão do Supremo Tribunal Federal, que deferiu ordem de “habeas corpus” ao paciente, em rixa aberta com o voto do Senhor Ministro-Relator, terá dificuldade para elidir o estigma de casuístico (que outro nome não convém a decisão que faz rosto ao bom direito e à jurisprudência mansa e pacífica).
Sem receio de cair em erro, auguro que os integrantes da heroica e assaz honrada Magistratura brasileira continuarão, pela maior parte (se não totalidade de seus membros), a dizer o direito e a distribuir justiça em harmonia com a nossa veneranda tradição jurisprudencial e os ditames da razão esclarecida, a exemplo daqueles juízes doutos e integérrimos, infinitos em número, que orgulham o Poder Judiciário[16].
9. Um aspecto do julgamento em exame não deve correr sem reparo, que isto importaria transigir com violação de regra que a legislação penal define com ênfase.
É o caso que a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, ao atribuir ao “habeas corpus” a qualidade de via judicial idônea para apurar arguição de suspeição de juiz, às testilhas com o ensinamento dos autores de melhor nota e com a jurisprudência dominante, quebrantou preceito legal básico. Dispõe, com efeito, o Código de Processo Penal que, “nos procedimentos ordinário e sumário” (art. 396), “a exceção será processada em apartado, nos termos dos arts. 95 a 112 deste Código” (art. 396-A, § 1º).
Ao demais, a parcialidade do juiz, a quem se deu por “inimigo capital” do paciente, não podia prescindir da prática formal do princípio do contraditório, já que instaurada a instância pela via judicial do “habeas corpus”. Imputação era essa que traía verdadeiro libelo; pelo que, não havia acolhê-la sem prévia audiência do interessado, conforme preconizava o milenar brocardo jurídico “Audiatur et altera pars”. Ouça-se também a parte contrária.
Tal garantia, que a Constituição Federal (art. 5º, nº LV) assegura até ao pior facínora, ao juiz foi denegada, com manifesto desprezo do direito positivo e da doutrina comum de juristas de prol: “Sêneca, que viveu e floresceu três séculos antes de Cristo, deixou, entre outros, este pensamento admirável: Julgar alguém sem ouvi-lo é fazer-lhe injustiça, ainda que a sentença seja justa” (Vicente de Azevedo, Curso de Direito Judiciário Penal, 1958, vol. I, p. 93).
Cai a lanço notar mais que o magistrado, quando julga, tem diante de si o interesse do meio social em que vive. Assim como prevalece, nas hipóteses de legítima defesa, a regra jurídica de que todo cidadão é autoridade (“omnis civis est miles”), de igual passo, naquelas em que a própria sociedade é vítima da torrente de delitos graves, caberá ao juiz (lídimo guardião dos valores que ela lhe confiou) aplicar, à luz do direito penal subjetivo, o rigor da lei; trata-se de inexorável medida política de prevenção da delinquência e de defesa da sociedade, meta primeira do Estado e aspiração permanente da Justiça. Tanto viola a lei o juiz que condena o inocente, como o que, por mero arbítrio, absolve o culpado. Para esse, aliás, já a Antiguidade cunhava máxima de infâmia: Condena-se o juiz quando o culpado é absolvido[17].
Também naquele processo relacionado com a competência do Juízo da condenação do paciente, o julgamento do Supremo Tribunal Federal não ficou a salvo dos tiros da crítica, pela fragilidade, e até carência, de fundamentos plausíveis.
Realmente, nenhum espírito refletido e limpo de baixas preocupações se contentará das razões que anularam, por deliberação de um só Juiz (o Senhor Ministro-Relator), sentença condenatória que Desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4a. Região (TFR-4) e Ministros do Superior Tribunal de Justiça haviam confirmado, após detido e individuado exame dos autos, com estrita observância dos princípios capitais de nosso sistema jurídico, notadamente o da plenitude do direito de defesa.
Donde veio a perguntar, autorizado por sua honrosa, brilhante e ilibada presença nas províncias da Justiça, o ex-Ministro do Tribunal Superior do Trabalho Almir Pazzianotto Pinto: “Houve colapso mental ou perda da lucidez pela maioria? Se não houve, qual o motivo para arbitrária concessão de habeas corpus que fulmina a Operação Lava Jato e consagra a impunidade contra a corrupção?”[18].
Para Mário Guimarães, insigne ministro do Supremo Tribunal Federal, cujo nome se lê no frontão do Fórum Criminal de São Paulo, “a jurisprudência é, nos tribunais, a sabedoria dos experientes. É o conselho precavido dos mais velhos (…). Manter quanto possível a jurisprudência, será obra de boa política judiciária, porque inspira no povo confiança na Justiça”[19].
Assim, embora os Tribunais Superiores não obriguem os inferiores salvo quanto ao caso concreto, será de bom exemplo guardar conformidade àquelas decisões que, proferidas sob o influxo da reta razão e da equidade, aproveitem às partes sem ofender o zelo da Justiça.
10. Quisera não lhes coubesse, às ideias e conceitos aqui emitidos — parece bem preveni-lo — o laivo de destempero de fantasia ou amplificação retórica. São, em verdade, expressão a mais genuína da grande mágoa que feriu a alma de velho advogado e desembargador, já no ocaso da existência (e a de milhares de colegas e milhões de patrícios), nascida da percepção de que enorme descrédito, qual perfil sombreado, ameaça deslustrar a imagem da Justiça brasileira, e mazelas hediondas (como a corrupção e a perda da consciência profissional) obstinam-se em atrofiar as fibras saudáveis da Pátria.
Desenganem-se, contudo, os que alguma hora descreram da Justiça do País e avaliaram por craveira mesquinha os seus juízes… Estes permanecerão quais sempre foram: a despeito de suas naturais imperfeições e misérias, continuarão a exercer, com nobreza de sentimentos, dignidade de inteligência e firmeza de caráter, a sublime função que, na frase de um engenho feliz, o homem usurpou a Deus: julgar[20].
Mas, perguntará alguém, esses julgamentos que surpreenderam a maioria dos brasileiros não terão lançado no ânimo dos juízes um como germe de desalento e frustração? Palpito que não! Preferirão atender ao conselho do sumo Poeta: “Non raggioniam di loro, ma guarda e passa” [21].
E ouvirão, com a alegria dos justos, aquela profissão de fé e letra de louvor: “A esperança nos juízes é a última esperança”![22].