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Ação Popular (PET) nº 3388: a atuação da AGU na demarcação daterra indígena Raposa Serra do Sol

Ação Popular (PET) nº 3388: a atuação da AGU na demarcação daterra indígena Raposa Serra do Sol

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Segundo a AGU, a demarcação da TIRSS não configura ato constitutivo de posse, mas sim ato meramente declaratório que define a real extensão da posse e torna eficazes o mandamento constitucional e o Estatuto do Índio.

1.  Apresentação do caso

A atuação da Advocacia-Geral da União no caso em tela visa garantir a higidez constitucional de ato do Poder Executivo Federal na implementação de política pública voltada à defesa de povos indígenas e das terras tradicionalmente por eles ocupadas, tal qual previsto pelo art. 231 da Constituição[1], cumulado com o Decreto 1.775/1996[2], que dispõe sobre o procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas, e com os artigos 17[3] e 19[4] da Lei 6.001/1973, que dispõe sobre o Estatuto do Índio.

No caso, trata-se de Ação Popular n. 3388[5] (Pet n. 3388) movida pelo Estado de Roraima e por dois Senadores da República que impugnava a Portaria n. 534/2005[6] do Ministério da Justiça – que modificou a Portaria n. 820/98 –, homologada pelo Decreto Presidencial de 15 de abril de 2005, que demarcou em limites contínuos a terra indígena Raposa Serra do Sol (TIRSS), e de qualquer outra Portaria que tenha por finalidade frustrar o andamento judicial das ações que discutam a demarcação da referida terra indígena.

Os autores sustentavam que a Portaria n. 534/2005, além de afrontar os princípios da proporcionalidade, razoabilidade, segurança jurídica, legalidade e devido processo legal, incidiria nas seguintes irregularidades: a) nulidade do procedimento administrativo, por violação aos Decretos n. 22/91 e n. 1.775/96, tendo em vista a não participação de todos os interessados na lide e não apresentação de relatório circunstanciado por parte do Grupo Interinstitucional de Trabalho; b) nulidade do estudo antropológico conclusivo posto ter sido o mesmo assinado por um único profissional; c) iminentes prejuízos à economia do Estado de Roraima caso a demarcação da Reserva Indígena ocorra em área contínua; d) instabilidade quanto à segurança nacional, porquanto a Reserva Indígena estaria contida em faixa de fronteira do Brasil com a Venezuela e Guiana; e) ofensa ao equilíbrio federativo, haja vista que a área demarcada ocupa grande parte do território do Estado de Roraima.

A União e a FUNAI, representadas pelo Advogado-Geral da União e pelo Procurador-Geral Federal, respectivamente, defenderam a constitucionalidade da Portaria n. 534/2005, homologada via Decreto Presidencial, bem como a permanência dos povos indígenas na referida reserva. Os principais fundamentos elencados na peça de defesa e relembrados nos memoriais[7] apresentados ao STF podem ser assim descritos:


2. Dos argumentos da AGU

No que se refere à tradicional ocupação indígena na região objeto da disputa judicial, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, no Brasil existem cerca de 604 (seiscentas e quatro) áreas reconhecidas como indígenas, compreendendo 12,5% do território nacional, com significativa concentração na Amazônia Legal, sendo que 70% delas são terras devidamente demarcadas e homologadas.

A área debatida na presente causa é habitada tradicionalmente por grupos indígenas de filiação linguística Carib e Aruak, distribuídos em 194 (cento e noventa e quatro) aldeias (memoriais da AGU, p. 5)[8].

Com efeito, a ocupação indígena na área é comprovada por documentação historiográfica (juntada aos autos do processo), sendo que no período republicano de nossa história foi instalada na região objeto desta contenda judicial uma sede do antigo Serviço de Proteção aos Índios – SPI, órgão oficial que antecedeu a FUNAI. Tal instalação tinha por escopo garantir a permanência da ocupação indígena na área, em razão do aumento dos conflitos ocasionados com a chegada dos colonos civis na região (memoriais da AGU, p. 6-7).

O Indigenato, por sua vez, é instituto jurídico cuja origem remonta à época do Brasil colonial quando o Alvará Régio de 1º de abril de 1680 firmou o princípio de que, nas terras outorgadas a particulares, seria sempre reservado o direito dos índios, primários e naturais senhores dela. Deste modo, não se trata de reconhecimento de simples ocupação ou mera posse por parte dos índios, mas, ao contrário, se constitui em fonte primária e congênita da posse territorial, tendo, atualmente, amparo no art. 231, § 2º da Constituição Federal e no art. 25 da lei n. 6.001/73[9] (memoriais da AGU, p. 9-10).

Afirmou ainda a AGU, com escólio na doutrina de Dalmo Dallari, que “A posse indígena, prevista na Carta Magna, não está ligada simplesmente à ocupação e exploração da terra, como ocorre com a posse civil, mas, sim, à sobrevivência física e cultural dos índios (memoriais da AGU, p. 10-11).

Quanto à garantia Constitucional das terras indígenas, a AGU destaca (memoriais, p. 11) que desde a Constituição de 1934 (art. 129)[10], passando pelas de 1937 (art. 154)[11], de 1946 (art. 216)[12] e 1967 c/c EC n. 1/69 (art. 198)[13] a posse indígena das terras tradicionalmente por si ocupadas é protegida. E afirma que a Constituição de 1988 não discrepou no que toca à referida proteção, consoante se observa do seu art. 231, § 4º que afirma serem inalienáveis e indisponíveis as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, bem como imprescritíveis os seus direitos sobre elas.

Deste modo, não há que se falar em lesão aos ocupantes dos imóveis existentes nas áreas demarcadas, uma vez que não existe direito adquirido à posse das terras indígenas por particulares, a teor do disposto no referenciado § 4º, sendo, portanto, juridicamente nulos todos os atos ou títulos produzidos que tenham por objeto a ocupação, domínio ou posse de terras indígenas e das riquezas nelas existentes (art. 231, § 6º da Constituição[14]) (memoriais da AGU, p. 12).

A demarcação da TIRSS [diz a AGU], repise-se, não configura ato constitutivo de posse, mas sim ato meramente declaratório que define a real extensão da posse e torna eficazes o mandamento constitucional e o Estatuto do Índio (art. 25 da Lei nº 6.001/1973)” (memoriais da AGU, p. 12-13)

Noutro turno, a AGU sustenta a necessidade da TIRSS ser demarcada em faixa contínua, sendo que isso não implica em risco ao Pacto Federativo[15]. Este tópico é de fundamental importância para o convencimento dos julgadores, pois visa demonstrar a desproporcionalidade e a falta de razoabilidade do pleito formulado na Ação Popular em questão, já que o território indígena que se pretende demarcar corresponde a uma pequena parte do território total do Estado de Roraima.

Com efeito, esclarece a AGU que conforme disposição contida na Portaria n. 534/2005, a TIRSS ocupa uma faixa contínua de 17.474,64 km2, de um total de 224.298,98 km², que corresponde ao tamanho total do Estado de Roraima. Isso significa que a terra indígena equivale a menos de 8% do território estadual, sendo que na área demarcada existem 194 aldeias com cerca 19.000 indígenas de cinco etnias diferentes.

Nesse contexto, a AGU destaca que a Constituição reconhece não apenas a ocupação das áreas correspondentes às tribos indígenas, mas sim toda a área representativa da ocupação tradicional do território indígena. Significa dizer: área tradicionalmente ocupada é aquela extensão de terra necessária à manutenção e preservação das particularidades culturais de cada grupo, ou seja, para além da área de habitação permanente e coleta, todos os espaços necessários à manutenção das tradições do grupo, inclusive as terras consideradas sagradas[16], cemitérios distantes etc. (memoriais da AGU, p.13).

Eis a necessidade da demarcação contínua da TIRSS[17], e não em “ilhas” como desejavam os impetrantes, a fim de preservar a identidade histórica e cultural dos povos indígenas que lá habitam[18] (memoriais da AGU, p. 14).

Ademais, a Advocacia-Geral da União destaca em sua manifestação que o autor fundamenta seu pedido de demarcação da TIRSS em “ilhas” por meio de dois documentos: 1) Relatório elaborado por uma Comissão formada por membros do Senado Federal e 2) laudo pericial determinado pelo juízo da 1ª Vara Federal de Roraima.

Todavia, ambos os documentos juntados aos autos mostram-se inservíveis para os fins aos quais se propõem, pois parciais e carentes de conclusões técnicas aptas a formular um correto convencimento: no primeiro, dentre os integrantes da Comissão, encontra-se o Senador Mozarildo Cavalcante, eleito pelo Estado de Roraima e integrante da lide na qualidade de assistente do requerente; no segundo, mais uma vez a parcialidade e falta de respaldo técnico mostram-se presentes, pois dos cinco técnicos designados para elaborar o laudo pericial, um deles, o senhor Erwin Heinrich Frank – único antropólogo presente no grupo –, posicionou-se veementemente contra o laudo formulado pelos demais, recusando-se a assiná-lo e tendo, inclusive, proferido manifestação em separado (memoriais da AGU, p. 23).

Retomando o ponto referente à extensão da TIRSS, a AGU acentua não se poder aventar quebra do equilíbrio federativo, já que a demarcação abarca tão somente 7,79% do território de Roraima e não os 46% asseverados na inicial pelos autores da Ação Popular. Na verdade poder-se-ia chegar ao percentual de 46% de terras indígenas se fossem somadas todas as demais reservas existentes no Estado de Roraima, mas não apenas a TIRSS. Ademais, ainda que se considerem os 54% de território remanescente, a AGU lembra que esses 121.121,44 km² restantes são maiores do que os Estados do Rio de Janeiro, Espírito Santo e Alagoas somados, o que, por si só, afasta qualquer alegação de quebra do equilíbrio federativo (memoriais da AGU, p. 26-27).

Seguindo sua linha de argumentação contra a mencionada quebra do equilíbrio federativo, a AGU (memoriais da AGU, p. 28), supedaneada por dados colhidos do IBGE, informa que em Roraima há uma população indígena de aproximadamente 45.000 aldeados, constituindo-se uma das maiores populações indígenas do país. Sendo que desse total, cerca de 42% (ou seja, 19.000 indígenas) concentram-se numa área equivalente a 7,79% do referido Estado.

A partir desse dado, a AGU faz a seguinte proporção, ainda com base em dados do IBGE: o Estado de Roraima possui o menor número de habitantes por unidade da Federação no país, com menos de 400.000 habitantes[19] para ocupar uma área total de 224.298,98 km², sendo que a maior parte dessa população, cerca de 250.000 habitantes, vive na capital do Estado, Boa Vista, com uma área de 5.687km². Os demais, cerca de 150.000 habitantes, encontram-se distribuídos por 218.611,98 km², o que proporciona uma densidade demográfica de mais ou menos 0,65 habitantes por quilômetro quadrado (excetuando-se a população concentrada na região de Boa Vista, que constitui uma exceção aos padrões do Estado).

Noutro turno, a terra indígena Raposa Serra do Sol possui cerca de 19.000 indígenas para ocupação de uma área de 17.474,64 km² o que corresponde a uma densidade demográfica de cerca de 1,09 habitante por quilômetro quadrado. Maior, portanto, que densidade demográfica média do Estado (a exceção da sua Capital).

Assim, por mais essa razão, não há que se falar em ofensa ao Pacto Federativo ou ao princípio da razoabilidade ou proporcionalidade quanto à demarcação contínua da TIRSS.

Quanto aos aspectos geopolíticos envolvidos na demanda, a AGU destaca que dentro da TIRSS há parte dos territórios de três municípios, a saber: Normandia, Pacaraima e Uiramutã, sendo que tal fato não interfere de modo relevante ou severo na vida dos munícipes ou na autonomia do próprio Município.

O Município de Normandia (criado por meio da Lei n. 7.009/1982) tem sua sede fora dos limites da TIRSS.

Os Municípios de Pacaraima e Uiramutã (criados pelas Leis Estaduais n. 96 e n. 98, ambas de 17 de outubro de 1995) foram criados durante o procedimento de identificação e demarcação da TIRSS, que teve início em 1991.

O fato é que a Portaria n. 534/2005 excluiu dos limites da TIRSS a sede do Município de Uiramutã. No que toca ao Município de Pacaraima, cuja sede fica dentro dos limites de outra Terra Indígena, a Terra Indígena São Marcos, firmou-se acordo na Ação Cautelar nº 861, movida pelo Ministério Público Federal e FUNAI, em face das Leis Municipais nº 110/2006 e 111/2006, para se abster de praticar atos e criação de distritos na área da TIRSS, bem como para paralisar toda e qualquer obra de urbanização e asfaltamento da região (memoriais da AGU, p. 29-30).

Ademais, pontua a AGU que o domínio da União sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios não redunda em perda da sua autonomia política nem por parte dos Municípios nem por parte do Estado, já que as autoridades municipais e estaduais poderão implementar diversas políticas públicas nas terras indígenas, observando-se os requisitos da legislação federal aplicável e o necessário acompanhamento FUNAI, com a única ressalva de que as referidas atividades não sejam nocivas, danosas ou inconvenientes à vida e aos bens dos índios (memoriais da AGU, p. 30-31).

Outro ponto forte na argumentação dos autores é aquele que diz respeito aos danos que adviriam à economia de Roraima com a demarcação contínua da TIRSS, em face da retirada dos produtores de arroz daquela região do Estado.

Relativamente ao ponto, a AGU, mais uma vez com base em dados do IBGE, afirma que a atividade rizicultora em todo o Estado de Roraima rende algo em torno de R$ 55.625.000,00 (cinquenta e cinco milhões, seiscentos e vinte e cinco mil reais) por ano, ao passo que o Produto Interno Bruno – PIB[20] do Estado é de cerca de R$ 3.176.611.000,00 (três bilhões, cento e setenta e seis milhões, seiscentos e onze mil reais)[21].

Assim, a atividade rizicultora representa aproximadamente 1,75% do PIB e não 6%, como afirmado na inicial da ação. Ressalte-se, noutro turno, que a população indígena que habita a TIRSS produz anualmente 50 toneladas de milho, 10 toneladas de arroz, 10 toneladas de feijão, além de possuir o maior rebanho bovino do Estado, com cerca de 35.000 cabeças e gado e venda anual de algo em torno de 3.000 bezerros. Desse modo, além da colaboração cultural, os indígenas também contribuem para o crescimento da economia do Estado (memoriais da AGU, p. 31).

A AGU consigna também seu ponto de vista acerca da má-fé dos posseiros e dos danos ambientais por eles causados, a fim de descaracterizar a necessidade de indenização do Estado por benfeitorias, conforme previsão inserta no § 6º do art. 231 da Constituição.

Nesse sentido, ancorada em imagens de satélite fornecidas pelo INPE – Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, a AGU traz informações acerca de 7 (sete) fazendas ocupadas/cercadas por posseiros após o início dos estudos para demarcação da TIRSS, verbis:

a) Fazenda Praia Grande: ocupada por Ivalcir Centenaro, com área de 2.182 hectares, sendo 598 hectares destinados à rizicultura. Posseiro com título de 594 hectares ocupa a área, segundo declaração à Justiça Federal, desde 1994;

b) Fazenda Tatu: ocupada por Ivo Barilli, com área de 9.156 hectares, sendo 1.336 hectares destinados à rizicultura. Posse em nome de Maria Tereza Costa Magalhães, cuja transferência ao atual ocupante se deu em 1992;

c) Fazenda Canadá: ocupada por Luiz Afonso Faccio e outro, com área de 3.316 hectares, sendo 2.826 hectares destinados à rizicultura. Posseiro ocupa a área, segundo sua declaração, desde 1997;

d) Fazenda Guanabara: ocupada por Luiz Afonso Faccio e outro, não havendo qualquer hectare destinados à rizicultura. Posseiro ocupa a área, segundo sua declaração, desde 1997;

e) Fazenda Depósito: ocupada por Paulo César Justo Quartiero, com área de 5.070 hectares, sendo 3.118 hectares destinados à rizicultura. Posse em nome de José Mendes de Brito, cuja transferência ao atual ocupante se deu em 11 de maio de 1992;

f) Fazenda Providência: ocupada por Paulo César Justo Quartiero, com área de 4.291 hectares, sendo 3.226 hectares destinados à rizicultura. Posse em nome de Darci Sales e João Gualberto, cuja transferência ao atual ocupante se deu em 2001, conforme depoimento pessoal do ocupante no Processo n° 2004.42.00.001403-5, em 14 de setembro de 2004;

g) Fazenda Carnaúba: ocupada por Nelson Massami Itikawa, com área de 2.703 hectares, sendo 737 hectares destinados à rizicultura, com suposto título de compra expedido pelo INCRA em nome de Edmilson Cordeiro de Melo, cuja transferência ao atual ocupante se deu em 18 de agosto de 1993; (memoriais da AGU, p. 33-34)

Comentando o trecho reproduzido, a AGU destaca: “Como se observa pelos trechos negritados, todas as ocupações acima aconteceram de forma irregular e após o ano de 1991, ano em que se iniciou o procedimento de identificação e demarcação da Terra Indígena” (memoriais da AGU, p. 34).

Seguindo sua análise, ainda com base nas imagens fornecidas pelo INPE, a AGU (memoriais, p. 35) registra que as lavouras de arroz aparecem nitidamente dentro da TIRSS, pela primeira vez, em 1992, apresentando uma área de 2.111,83 hectares, ou seja, depois do início dos estudos destinados à demarcação da TIRSS. Sendo que ano após ano as referidas lavouras seguem crescendo no interior da reversa indígena: em 1997, elas já ocupam 6.294,8 hectares; em 1998, 7.585,26 hectares; e em 2005, 10.348,59 hectares.

Assim, ressalta a AGU, ainda que se considerasse a primeira Portaria demarcatória (Portaria n.º 820/98) como o marco caracterizador de uma eventual posse de boa-fé, é razoável afirmar que pelo menos metade da área total das lavouras existentes em 2005 seja objetivamente fruto de atividade maculada pela má-fé dos posseiros (memoriais da AGU, p. 35).

Noutro turno, a AGU (memoriais, p. 36) identifica alguns impactos ambientais irreversíveis produzidos pelas lavouras de arroz, como, por exemplo, a) a supressão completa da vegetação nativa, com perda total da biodiversidade local e b) as alterações nas estruturas dos recursos hídricos, com a supressão ou mesmo a extinção de lagos e igarapés.

Aduzem ainda os autores da Ação Popular que a presença dos indígenas em faixa de fronteira militaria contra a segurança e a defesa nacional, argumento esse prontamente rebatido pela AGU (memoriais, p. 37-38) ao afirmar que a presença indígena na fronteira, em lugares de difícil acesso, até mesmo para os militares, contribui para a proteção e defesa nacional em face de eventuais invasores[22].

Ainda quanto à defesa nacional, a AGU (memoriais, p. 40) destaca o fato de não haver qualquer problema em que o território tenha dupla afetação (ser terra indígena e faixa de fronteira indispensável à segurança nacional), ou seja estar submetido a um duplo regime jurídico especial, consoante normas inscritas nos artigos 20, § 2º e 231, § 2º da Constituição Federal.

A se pensar de maneira diversa, estaríamos diante de uma situação em que uma regra constitucional afastaria por completo a aplicação da outra, sendo que tal exclusão não estaria embasada em nenhum critério de temporalidade, hierarquia ou especialidade, tornando tal opção uma escolha desarrazoada do intérprete.

Nesse sentido, sustenta a AGU (memoriais, p. 41) que não há qualquer conflito, ainda que aparente, das normas que garantem, de um lado, o direito de ocupação das terras tradicionais indígenas e, de outro lado, a segurança do território nacional nas faixas de fronteira. Sendo plenamente viável e possível a afetação da terra ao uso das Forças Armadas, no caso de a área indígena demarcada se configurar em espaço territorial indispensável à segurança nacional[23].

Sustentam, por fim, os autores violação ao art. 91, § 1º, III[24] da Constituição Federal, uma vez que no processo administrativo que culminou com a homologação da TIRSS não se procedeu a oitiva do Conselho de Defesa Nacional – CDN.

Todavia, argumenta a AGU (memoriais, p. 43-44) que a oitiva da CDN no caso de demarcação de terra indígenas é facultativa e não obrigatória, pois os critérios e as condições de utilização das terras demarcadas, quando forem de igual modo indispensáveis à defesa do território nacional, já estão fixados nos artigos 231[25] e 232[26], ambos da Constituição Federal, razão pela qual não há qualquer mácula a ser apontada no processo administrativo de demarcação da TIRSS[27].


3. Do Acórdão do STF

O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, em julgamento finalizado em 19/03/2009, por maioria de votos, vencido o Ministro Marco Aurélio, manteve a demarcação contínua da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol. Vejamos os principais pontos fixados pelo Acórdão[28] em questão, de relatoria do Ministro Carlos Ayres Britto.

Inicialmente, o relator tratou de questões processuais, não tendo conhecido da parte da pretensão autoral (p. 3-4 do voto e p. 257-258 do inteiro teor do acórdão) que visava excluir o 6º Pelotão Especial de Fronteira, os núcleos urbanos dos Municípios de Uiramutã e Normandia, os equipamentos e instalações públicos federais e estaduais atualmente existentes, as linhas de transmissão de energia elétrica e os leitos das rodovias federais e estaduais também já existentes em face da falta de interesse jurídico, uma vez que os referidos pedidos já haviam sido contemplados na própria Portaria nº 534/2005 do Ministro da Justiça, como destacado pela AGU. De igual modo, não conheceu da pretensão no que toca à sede do Município de Pacaraima, pois referido território está encravado na “Terra Indígena São Marcos” e não na TIRSS, constituindo-se, portanto, matéria estranha à demanda.

Em seguida o relator saneou irregularidades processuais existentes na Ação Popular 3388, no sentido de apontar nulidades, ainda que formais, a fim de legitimar a posse das terras situadas na área demarcada, tendo destacado que a ação popular não visa à defesa de interesses particulares de pretensos proprietários de terra que sequer são partes na demanda. Depois fixou não ser possível ao Estado de Roraima figurar no polo ativo da demanda na qualidade de autor, já que só quem detém legitimidade em ação popular para atuar nessa condição é o “cidadão”. Assim, tanto o Estado de Roraima quanto outros interessados, inclusive representantes de comunidades indígenas, foram admitidos no processo na qualidade assistentes simples.

Ainda no que toca à parte processual, o Ministro Carlo Ayres Britto (p. 05 do voto e 259 do inteiro teor do acórdão) sustentou a inexistência de vícios no processo administrativo de demarcação da TIRSS. Segundo o relator, o referido processo observou as regras do Decreto n. 1.775/96, as quais já foram declaradas constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal no Mandado de Segurança n. 24.045.

Ademais, no final do seu voto, destaca que não houve violação aos princípios do contraditório e ampla defesa, já que todos os interessados tiveram a oportunidade de se habilitar no processo administrativo de demarcação da TIRSS, como procederam o Estado de Roraima, o Município de Normandia, os pretensos posseiros e comunidades indígenas (voto do Ministro Carlos Ayres Britto, p. 74 e p. 328 do inteiro teor do acórdão).

Noutro turno, os dados técnicos (caráter antropológico) produzidos foram subscritos por profissionais de reconhecidas qualificação científica e observaram todos os preceitos Constitucionais e legais necessários à demarcação de terras indígenas (voto do Ministro Carlos Ayres Britto, p. 77 e p. 331 do inteiro teor do acórdão).

Prosseguindo, destaca (p. 5 do voto e p. 259 do inteiro teor do acórdão) que a demarcação administrativa, homologada pelo Presidente da República, é “ato estatal que se reveste da presunção juris tantum de legitimidade e de veracidade”, além de se revestir de natureza declaratória e força autoexecutória, tal qual apontado pela Advocacia-Geral da União em sua peça de defesa.

Superadas as questões processuais e procedimentais, o relator adentra ao mérito do caso firmando seu entendimento sobre o significado do termo “índios”[29] no contexto da Constituição Federal de 1988. Trata-se, no seu entender, de termo amplo e plural que serve para designar todos os “aborígenes” brasileiros pertencentes às mais diferentes etnias, sejam eles silvícolas ou em processo de aculturação. Para a Constituição, a proteção deles se dá de modo igual.

Pondera ademais (p. 16 do voto e p. 270 do inteiro teor do acórdão), que todas as terras indígenas integram o território[30] nacional como bens públicos federais[31] e, nesse sentido, se submetem unicamente ao primeiro dos princípios regentes das relações internacionais da República Federativa do Brasil: a soberania ou “independência nacional” (inciso I do art. 1º da CF). Em sendo bens públicos federais, as terras indígenas já demarcadas podem vir a sofrer a atuação do Estado ou Município em que se insere fisicamente, mas essa atuação sempre ocorrerá de forma complementar, em regime de concerto com a União e sob a liderança desta (voto do Ministro Carlos Ayres Britto, p. 19 e p. 273 do inteiro teor do acórdão).

Ao tratar da temática “demarcação”[32], o Ministro Carlos Ayres Britto destaca a competência exclusiva da União, por meio do Poder Executivo Federal[33], em tal matéria, afirmando que, acaso deseje, não há impedimento para que o Presidente da República ouça o Conselho de Defesa Nacional, especialmente se a demarcação abranger faixas de fronteira, todavia, como deixa entender o relator (p. 30 do voto e p. 284 do inteiro teor do acórdão), essa oitiva é facultativa, tal qual informada pela AGU, e não obrigatória. No que concerne às competências deferidas ao Congresso Nacional, com efeito concreto ou sem densidade normativa, elas se esgotam nos fazeres a que se referem o inciso XVI do art. 49[34] e o § 5º do art. 231[35], ambos da Constituição Federal.

Prosseguindo, destaca que o marco temporal para a verificação da ocupação das terras indígenas é da data da promulgação da Constituição (voto do Ministro Carlos Ayres Britto, p. 41 e p. 295 do inteiro teor do acórdão), bem como que por tradicionalidade, necessária à caracterização da terra como sendo indígena, deve se entender perdurabilidade (voto do Ministro Carlos Ayres Britto, p. 43 e p. 297 do inteiro teor do acórdão) tanto sob o aspecto anímico quanto psíquico de uma continuidade etnográfica[36].

Quanto à finalidade das demarcações de terras indígenas, o Ministro relator (p. 47-48 e p. 301-302 do inteiro teor do acórdão) afirma servirem à habitação de uma determinada etnia indígena, além de servirem (no sentido de serem aptas) às suas atividades produtivas e também à reprodução de sua identidade física e cultural segundo os usos, costumes e tradições dos próprios indígenas. Essa a principal razão a justificar uma demarcação de modelo contínuo, a fim de permitir a formação de um perfil coletivo e a afirmação da autossuficiência econômica de toda uma comunidade indígena, ao contrário do modelo de demarcação por “ilhas”, “bolsões” ou “bloco” que, longe de atenderem à ideia cultural e econômica de abertura de horizontes, dizimaria a etnia indígena pela eliminação progressiva dos seus elementos culturais (voto do Ministro Carlos Ayres Britto, p. 54-55 e p. 308-309 do inteiro teor do acórdão).

Ademais, em consonância com a defesa empreendida pela AGU, o relator afirma que o direito dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam e sua consequente demarcação foi reconhecido e declarado pela Constituição e não constituído ou outorgado, eis a razão de a Carta Magna havê-los denominado de “originários”, a significar um direito anterior a qualquer outro, que prepondera sobre pretensos direitos adquiridos (não há direito adquirido contra disposição do Constituinte Originário), mesmo aqueles materializados por meio de escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não-índios. Atos, estes, que a própria Constituição declarou como “nulos e extintos” (§ 6º do art. 231 da CF).

Nada obstante, não há que se pregar o completo afastamento de não-índios das terras indígenas tradicionalmente ocupadas. Como ressalta o relator, a exclusividade de usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nas terras indígenas é plenamente conciliável com a presença de não-índios, bem como com a instalação de equipamentos públicos necessários, a abertura de estradas e vias de comunicação, a montagem ou construção de bases físicas para a prestação de serviços públicos ou de relevância pública, com a ressalva de que tudo se processe sob o comando institucional da União, ladeado pelo controle do Ministério Público e também da atuação, ainda que coadjuvante, de entidades tanto da Administração Federal quanto representativas dos próprios indígenas (voto do Ministro Carlos Ayres Britto, p. 55-56 e p. 309-310 do inteiro teor do acórdão).

Tal convivência, que deve ser cultivada harmonicamente, impede que haja cobrança por parte dos indígenas e suas comunidades de pedágio, bloqueio e interdição de estradas ou inibição do regular funcionamento das repartições públicas eventualmente ali instaladas. (voto do Ministro Carlos Ayres Britto, p. 56 e p. 310 do inteiro teor do acórdão)

Por fim, e sem discrepar do entendimento esposado pela AGU em sua manifestação, afirma o relator haver compatibilidade entre o usufruto de terras indígenas e o fato de elas serem concomitantemente faixa de fronteira indispensável à segurança nacional (voto do Ministro Carlos Ayres Britto, p. 68 e p. 322 do inteiro teor do acórdão).

A permanente alocação indígena em faixas de fronteira, afirma, longe de se pôr como um ponto de fragilidade estrutural desses espaços, em muito facilita e até obriga que as instituições de Estado, no caso as Forças Armadas e Polícia Federal, se façam também presentes, sem precisar de qualquer espécie de licença, com seus postos de vigilância, equipamentos, batalhões, companhias e agentes (voto do Ministro Carlos Ayres Britto, p. 72 e p. 326 do inteiro teor do acórdão). Mecanismos esses a serem aproveitados como oportunidade ímpar para conscientizar ainda mais os nossos indígenas, instruí-los e alertá-los contra a influência, às vezes perniciosa, de determinadas organizações não-governamentais estrangeiras, além mobilizá-los em defesa da soberania nacional e reforçar neles o sentimento de nacionalidade brasileira.

Registre-se, ademais, que o Ministro relator fez acrescer ao seu voto fundamentos de salvaguardas institucionais (condicionantes) trazidos à baila pelo voto-vista do Ministro Carlos Alberto Direito[37] e deslocadas para a parte dispositiva da decisão no intuito de conferir um maior teor de operacionalidade ao acórdão[38].


Notas

[1] “Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

§ 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

§ 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.

§ 3º - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.

§ 4º - As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.

§ 5º - É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ‘ad referendum’ do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.

§ 6º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.”

[2] “Art. 1º As terras indígenas, de que tratam o art. 17, I, da Lei n° 6001, de 19 de dezembro de 1973, e o art. 231 da Constituição, serão administrativamente demarcadas por iniciativa e sob a orientação do órgão federal de assistência ao índio, de acordo com o disposto neste Decreto.”

[3] “Art. 17. Reputam-se terras indígenas:

I - as terras ocupadas ou habitadas pelos silvícolas, a que se referem os artigos 4º, IV, e 198, da Constituição;

II - as áreas reservadas de que trata o Capítulo III deste Título;

III - as terras de domínio das comunidades indígenas ou de silvícolas.”

O dispositivo mencionado no inciso I, do art. 17 (que se reporta à EC n. 1/1969 à Constituição de 1967), atualizado para a Constituição de 1988 equivale ao art. 231.

[4] “Art. 19. As terras indígenas, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio, serão administrativamente demarcadas, de acordo com o processo estabelecido em decreto do Poder Executivo.

§ 1º A demarcação promovida nos termos deste artigo, homologada pelo Presidente da República, será registrada em livro próprio do Serviço do Patrimônio da União (SPU) e do registro imobiliário da comarca da situação das terras.

§ 2º Contra a demarcação processada nos termos deste artigo não caberá a concessão de interdito possessório, facultado aos interessados contra ela recorrer à ação petitória ou à demarcatória.”

[5] Brasil, STF, Ação Popular n. 3388, Relator Ministro Carlos Ayres Britto. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=612760>. Acesso: 05 mar. 2012.

[6] “PORTARIA N. 534, DE 13 DE ABRIL DE 2005

O MINISTRO DE ESTADO DA JUSTIÇA, no uso de suas atribuições, observando o disposto no Decreto n. 1.775, de 8 de janeiro de 1996, e com o objetivo de definir os limites da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, e Considerando que a Portaria MJ n. 820/98 não contempla solução para questões de fato controvertidas ressalvadas no Despacho n. 50, de 10 de dezembro de 1998, do então Ministro da Justiça;Considerando ser conveniente e oportuno solucionar, de modo pacífico, situações de fato controvertidas ressalvadas no referido Despacho n. 50;

Considerando que os atos praticados com fundamento na Portaria MJ n. 820, de 11 de dezembro de 1998, são válidos e devem ser aproveitados;

Considerando que o Parque Nacional do Monte Roraima pode ser submetido, por decreto presidencial, a regime jurídico de dupla afetação, como bem público da União destinado à preservação do meio ambiente e à realização dos direitos constitucionais dos índios que ali vivem;

Considerando que o Decreto n. 4.412, de 7 de outubro de 2002, assegura a ação das Forças Armadas, para defesa do território e da soberania nacionais, e do Departamento de Polícia Federal, para garantir a segurança, a ordem pública e a proteção dos direitos constitucionais dos índios, na faixa de fronteira, onde se situa a Terra Indígena Raposa Serra do Sol;

Considerando, por fim, o imperativo de harmonizar os direitos constitucionais dos índios, as condições indispensáveis para a defesa do território e da soberania nacionais, a preservação do meio ambiente, a proteção da diversidade étnica e cultural e o princípio federativo; resolve:

Art. 1º Ratificar, com as ressalvas contidas nesta Portaria, a declaração de posse permanente dos grupos indígenas Ingarikó, Makuxi, Taurepang e Wapixana sobre a Terra Indígena denominada Raposa Serra do Sol.Art. 2º A Terra Indígena Raposa Serra do Sol, com superfície de um milhão, setecentos e quarenta e três mil, oitenta e nove hectares, vinte e oito ares e cinco centiares e perímetro de novecentos e cinquenta e sete mil, trezentos e noventa e nove metros e treze centímetros, situada nos Municípios de Normandia, Pacaraima e Uiramutã, Estado de Roraima, está circunscrita aos seguintes limites: NORTE: partindo do Marco SAT RR-13=MF BV-0, de coordenadas geodésicas 05º12'07,662" N e 60º44'14,057" Wgr., localizado sobre o Monte Roraima, na trijunção das fronteiras Brasil/Venezuela/Guiana, segue pelo limite internacional Brasil/Guiana, passando pelos Marcos de Fronteira B/BG-1, B/BG-2, B/BG-3, B/BG-4, B/BG-5, B/BG-6, B/BG-7, B/BG-8, B/BG-9, B/BG-10, B/BG-11, B/BG-11A, B/BG-12 e B/BG-13, até o Ponto Digitalizado 02, de coordenadas geodésicas aproximadas 05º11'54,8" N e 60º06'32,0" Wgr., localizado na cabeceira do Rio Maú ou Ireng; LESTE: do ponto antes descrito, segue pela margem direita do Rio Maú ou Ireng, a jusante, acompanhando o limite internacional Brasil/Guiana, passando pelos Marcos de Fronteira B/5, B/4, B/3 e B/2, até o Ponto Digitalizado 03 de coordenadas geodésicas aproximadas 03º51'56,5" N e 59º35'25,1" Wgr., localizado na confluência com o Igarapé Uanamará; SUL: do ponto antes descrito, segue pela margem esquerda do Igarapé Uanamará, a montante, até o Marco 04 de coordenadas geodésicas 03º55'12,8544" N e 59º41'50,4479" Wgr., localizado na confluência com o Igarapé Nambi; daí, segue por uma linha reta até o Marco 05 (marco de observação astronômica, denominado Marco Pirarara), de coordenadas geodésicas 03º40'05,75" N e 59º43'21,59" Wgr.; daí, segue no mesmo alinhamento até a margem direita do Rio Maú ou Ireng; daí, segue por esta margem, a jusante, acompanhando o limite internacional Brasil/Guiana, até a sua confluência com o Rio Tacutu, onde está localizado o Marco de Fronteira 1 de coordenadas geodésicas 03º33'58,25" N e 59º52'09,19" Wgr; daí, segue pela margem direita do Rio Tacutu, a jusante, até o Ponto digitalizado 07 de coordenadas geodésicas aproximadas 03º22'25,2" N e 60º19'14,5" Wgr., localizado na confluência com o Rio Surumu; OESTE: do ponto antes descrito, segue pela margem esquerda do Rio Surumu, a montante, até o Ponto Digitalizado 08, de coordenadas geodésicas aproximadas 04º12'39,9" N e 60º47'49,7" Wgr., localizado na confluência com o Rio Miang; daí, segue pela margem esquerda do Rio Miang, a montante, até o Marco de Fronteira L8-82 de coordenadas geodésicas 04º29'38,731" N e 61º08'00,994" Wgr., localizado na sua cabeceira, na Serra Pacaraima, junto ao limite internacional Brasil/Venezuela; daí, segue pelo limite internacional, passando pelos Marcos de Fronteira BV-7, BV-6, BV-5, BV-4, BV-3, BV-2, BV-1 e BV-0=Marco SAT RR-13, início da descrição deste perímetro. Base cartográfica utilizada na elaboração deste memorial descritivo: NB.20

Z-B; NB.21-Y-A; NB.20-Z-D; NB.21-Y-C; NA.20-X-B e NA.21-V-A - Escala 1:250.000, RADAMBRASIL/DSG Ano 1975/76/78/80.

Art. 3º A terra indígena de que trata esta Portaria, situada na faixa de fronteira, submete-se ao disposto no art. 20, § 2º , da constituição.

Art. 4º Ficam excluídos da área da Terra Indígena Raposa Serra do Sol:

I - a área do 6º Pelotão Especial de Fronteira (6º PEF), no Município de Uiramutã, Estado de Roraima;

II - os equipamentos e instalações públicos federais e estaduais atualmente existentes;

III - o núcleo urbano atualmente existente da sede do Município de Uiramutã, no Estado de Roraima;

IV - as linhas de transmissão de energia elétrica; e

V - os leitos das rodovias públicas federais e estaduais atualmente existentes.

Art. 5º É proibido o ingresso, o trânsito e a permanência de pessoas ou grupos de não-índios dentro do perímetro ora especificado, ressalvadas a presença e a ação de autoridades federais, bem como a de particulares especialmente autorizados, desde que sua atividade não seja nociva, inconveniente ou danosa à vida, aos bens e ao processo de assistência aos índios.

Parágrafo único. A extrusão dos ocupantes não-índios presentes na área da Terra Indígena Raposa Serra do Sol será realizada em prazo razoável, não superior a um ano, a partir da data de homologação da demarcação administrativa por decreto presidencial.

Art. 6º Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação.”

Disponível em: <http://www.in.gov.br/imprensa/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=59&data=15/04/2005>.  Acesso em: 05 mar. 2012.

[7] Disponível em: <http://www.agu.gov.br/sistemas/site/TemplateTexto.aspx?idConteudo=78166&id_site=3>. Acesso em: 03 mar. 2012.

[8] “A ocupação tradicional exercida continuamente pelos índios na área é atestada em diversos registros documentais, o que pode ser verificado, em anos mais recentes, pelo mapa etnográfico publicado pelo linguista Ernesto Migliazza em 1970, contendo a localização aproximada de 90 aldeias Macuxi e Ingaricó”. (memoriais da AGU, p. 8-9)

[9] Constituição Federal: “Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

[...]

§ 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.”

Lei n. 6.001/73: “Art. 25. O reconhecimento do direito dos índios e grupos tribais à posse permanente das terras por eles habitadas, nos termos do artigo 198, da Constituição Federal [refere-se ao ordenamento constitucional anterior], independerá de sua demarcação, e será assegurado pelo órgão federal de assistência aos silvícolas, atendendo à situação atual e ao consenso histórico sobre a antiguidade da ocupação, sem prejuízo das medidas cabíveis que, na omissão ou erro do referido órgão, tomar qualquer dos Poderes da República.”

[10] “Art 129 - Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las.”

[11] “Art 154 - Será respeitada aos silvícolas a posse das terras em que se achem localizados em caráter permanente, sendo-lhes, porém, vedada a alienação das mesmas.”

[12] “Art 216 - Será respeitada aos silvícolas a posse das terras onde se achem permanentemente localizados, com a condição de não a transferirem.”

[13] “Art. 198. As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos têrmos que a lei federal determinar, a êles cabendo a sua posse permanente e ficando reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de tôdas as utilidades nelas existentes.

§ 1º Ficam declaradas a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos de qualquer natureza que tenham por objeto o domínio, a posse ou a ocupação de terras habitadas pelos silvícolas.

§ 2º A nulidade e extinção de que trata o parágrafo anterior não dão aos ocupantes direito a qualquer ação ou indenização contra a União e a Fundação Nacional do Índio.”

[14] “Art. 231 omissis

[...]

§ 6º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.”

[15] Com relação a este tópico, importante registrar, desde já, o posicionamento do relator do processo, Ministro Carlos Ayres Britto (voto p. 84-85 e inteiro teor do acórdão p. 338-339): “[...]  a extensão da área demarcada é compatível com as coordenadas constitucionais aqui longamente descritas, sobretudo à vista do que vimos chamando de postulado da proporcionalidade extensiva. Valendo enfatizar que a demarcação de terras indígenas não se orienta por critérios rigorosamente matemáticos. Sem falar que não têm préstimo para esse fim critérios não-índios de mensuração, como, por exemplo, cálculo de hectare/habitante e  clusters (demarcação por ilhas ou do tipo ‘queijo suíço’). As próprias características geográficas da região contra-indicam uma demarcação avara ou restritiva, pois a reconhecida infertilidade dos solos (causadora da necessidade da prática da coivara e da pecuária extensiva), os períodos de cheias e a acidentada topografia da região já são em si mesmos um contraponto ao generoso querer objetivo da constituição em matéria de proteção indígena.”

Nesse trecho, o relator abre uma nota de rodapé (n. 11), e nela destaca: “Generoso querer da Constituição que, de modo algum, retira dos não-índios o espaço necessário para seu adequado desenvolvimento. É que, em se tratando do Estado de Roraima (como da maioria dos Estados da região Norte do Brasil), as extensões territoriais são superlativas. Prova disso é que as terras não-indígenas do Estado de Roraima se estendem por uma área de 121.182,19 km², para uma população de menos de 400 mil habitantes. Só para que se tenha uma ideia da extensão dessas terras, o Estado de Pernambuco, com mais de 8 milhões de habitantes, possui 98.311,616 km². Já o Estado do Rio de Janeiro, com apenas 43.696,054 km², é habitado por mais de 15 milhões de pessoas.”

[16] “Cumpre ainda asseverar que na TIRSS localiza-se o Monte Roraima (Parque Nacional do Monte Roraima), que possui grande significado místico para todas as etnias que vivem nas aldeias da reserva. A demarcação em ilhas privaria as comunidades existentes na Terra Indígena do acesso ao seu referencial cosmológico primevo, impedindo, consequentemente, o direito constitucionalmente garantido ao livre exercício de suas crenças.” (memoriais da AGU, p. 16-17)

[17] “Outro ponto relevante a ensejar a demarcação contínua é que, considerando a ecologia da região, configurada por campos e serras, em que ocorrem apenas ilhas de matas ciliares – isto é, à margem dos cursos d’água –, as áreas de cultivo ficam distante das aldeias, em média a 15 km. Por sua vez, a agricultura indígena obedece à rotatividade necessária do solo, a fim de prevenir seu esgotamento. Dessa forma, cada aldeia necessita de maiores extensões, aproximadamente 30 a 40 km, para o desempenho das atividades de caça, coleta e criação.” (memoriais da AGU, p. 16)

[18] “A manutenção de Raposa Serra do Sol em território contínuo consiste, portanto, em condição imprescindível à vida social e cultural, à reprodução dos costumes, línguas, crenças, tradições indígenas, e dá plena eficácia ao texto constitucional.

A demarcação em ‘ilhas’ não coligadas, além de significar um retrocesso na política indigenista brasileira, coloca em risco a própria sobrevivência física e cultural das comunidades que lá vivem.” (memoriais da AGU, p.17)

[19] Dados colhidos nos memoriais da AGU e referentes à época em que os mesmos foram confeccionados. Hoje, o Estado de Roraima possui população de pouco mais de 450.000 habitantes.

[20] “[...] conforme elementos do Departamento de Estudos Econômicos e Sociais do Estado de Roraima, a atividade agrícola em conjunto com a pecuária representa tão-somente 3,8% do produto interno bruto daquele ente, atrás, portanto, da Administração Pública (58,2%), da construção civil (6,0%) e do comércio (9,3%).” (memoriais da AGU, p. 31)

[21] Dados colhidos nos memoriais da AGU e referentes à época em que os mesmos foram confeccionados. Hoje, o Estado de Roraima possui um PIB de pouco menos de R$ 4.900.000.000,00 (quatro bilhões e novecentos milhões de reais). Ainda assim, o menor dentre todos os Estados do Brasil.

[22] “Outro dado importante de se trazer à baila é que as Forças Armadas contam com o apoio total dos silvícolas que habitam a TIRSS, posto que os mesmos adentram diariamente a área e podem, em primeira mão, perceber qualquer invasão ou dano ao território brasileiro.

Dessa forma, não há motivos para temer qualquer ato no sentido de se ameaçar a soberania do Brasil. Pelo contrário, a presença indígena em áreas de fronteira deve ser vista como uma estratégia de segurança nacional.

Ademais, as terras indígenas são de propriedade da União e, portanto, inalienáveis, imprescritíveis e impenhoráveis. Os índios possuem apenas seu usufruto, não podendo delas dispor.” (memoriais da AGU, p. 39)

[23] “Ademais, a Constituição Federal prevê, em seu artigo 231, § 5º, ser possível a remoção, ad referendum do Congresso Nacional, dos grupos indígenas de suas terras no interesse da soberania do país, o que demonstra uma harmonia entre os princípios constitucionais que garantem o direito originário de posse das terras indígenas tradicionais e a segurança das faixas de fronteira.” (memoriais da AGU, p. 41)

[24] “Art. 91. O Conselho de Defesa Nacional é órgão de consulta do Presidente da República nos assuntos relacionados com a soberania nacional e a defesa do Estado democrático, e dele participam como membros natos:

[...]

§ 1º - Compete ao Conselho de Defesa Nacional:

[...]

III - propor os critérios e condições de utilização de áreas indispensáveis à segurança do território nacional e opinar sobre seu efetivo uso, especialmente na faixa de fronteira e nas relacionadas com a preservação e a exploração dos recursos naturais de qualquer tipo”.

[25] Vide nota de rodapé n. 3.

[26] “Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.”

[27] “Cumpre ressaltar que essa Excelsa Corte, em mais de uma ocasião, declarou a legalidade e a constitucionalidade do procedimento administrativo demarcatório que culminou na expedição da Portaria/MJ n. 534, de 13 de abril de 2005, posteriormente homologada pelo Decreto Presidencial publicado no Diário Oficial da União em 15 de abril de 2005.

De fato, constatada a existência de potencial conflito federativo no exame da matéria concernente à demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol – nos moldes do art. 102, I, “f”, da Lei Maior – esse Supremo Tribunal Federal declarou-se competente para julgar todos os litígios dela decorrentes.

Nessa perspectiva, houve o aforamento de diversas ações, individuais e coletivas, de cunho possessório, de natureza declaratória e cautelar, sempre com vistas à anulação do decreto demarcatório, sob o argumento de que a Portaria n. 534/2005 conteria supostas ilegalidades.

É de se destacar, todavia, que a União já pagou um total de 13 milhões de reais em indenizações, e que os particulares remanescentes não vêm obtendo êxito em suas derradeiras demandas junto a essa Suprema Corte. A propósito, destaca-se a decisão denegatória proferida, à unanimidade, nos autos do Mandando de Segurança n. 25.483/DF. Confira-se, nos moldes do relatado pelo Ministro CARLOS BRITTO:

‘MANDADO DE SEGURANÇA. HOMOLOGAÇÃO DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS RAPOSA SERRA DO SOL. IMPRESTABILIDADE DO LAUDO ANTROPOLÓGICO. TERRAS TRADICIONALMENTE OCUPADAS POR ÍNDIOS. DIREITO ADQUIRIDO À POSSE E AO DOMÍNIO DAS TERRAS OCUPADAS IMEMORIALMENTE PELOS IMPETRANTES. COMPETÊNCIA PARA A HOMOLOGAÇÃO. GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL ADMINISTRATIVO. BOA-FÉ ADMINISTRATIVA. ACESSO À JUSTIÇA. INADEQUAÇÃO DA VIA PROCESSUALMENTE ESTREITA DO MANDADO DE SEGURANÇA. AUSÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO.

[...] Não há que se falar em supressão das garantias do contraditório e da ampla defesa se aos impetrantes foi dada a oportunidade de que trata o artigo 9º do Decreto 1.775/96 (MS 24.045, Rel. Min. Joaquim Barbosa). Na ausência de ordem judicial a impedir a realização ou execução de atos, a Administração Pública segue no seu dinâmico existir, baseada nas determinações constitucionais e legais. O procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas Raposa Serra do Sol não é mais do que o proceder conforme a natureza jurídica da Administração Pública, timbrada pelo auto-impulso e pela auto-executoriedade. Mandado de Segurança parcialmente conhecido para se denegar a segurança.’ (grifou-se).

Dessa feita, demonstrada a regularidade de todo o processo administrativo demarcatório, restam infundados os argumentos do autor.” (memoriais da AGU, p. 48-49)

[28] “EMENTA: AÇÃO POPULAR. DEMARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL. INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS NO PROCESSO ADMINISTRATIVO- DEMARCATÓRIO. OBSERVÂNCIA DOS ARTS. 231 E 232 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, BEM COMO DA LEI N. 6.001/73 E SEUS DECRETOS REGULAMENTARES. CONSTITUCIONALIDADE E LEGALIDADE DA PORTARIA N. 534/2005, DO MINISTRO DA JUSTIÇA, ASSIM COMO DO DECRETO PRESIDENCIAL HOMOLOGATÓRIO. RECONHECIMENTO DA CONDIÇÃO INDÍGENA DA ÁREA DEMARCADA, EM SUA TOTALIDADE. MODELO CONTÍNUO DE DEMARCAÇÃO. CONSTITUCIONALIDADE. REVELAÇÃO DO REGIME CONSTITUCIONAL DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL COMO ESTATUTO JURÍDICO DA CAUSA INDÍGENA. A DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS COMO CAPÍTULO AVANÇADO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. INCLUSÃO COMUNITÁRIA PELA VIA DA IDENTIDADE ÉTNICA. VOTO DO RELATOR QUE FAZ AGREGAR AOS RESPECTIVOS FUNDAMENTOS SALVAGUARDAS INSTITUCIONAIS DITADAS PELA SUPERLATIVA IMPORTÂNCIA HISTÓRICO-CULTURAL DA CAUSA. SALVAGUARDAS AMPLIADAS A PARTIR DE VOTO-VISTA DO MINISTRO MENEZES DIREITO E DESLOCADAS PARA A PARTE DISPOSITIVA DA DECISÃO. 1. AÇÃO NÃO CONHECIDA EM PARTE. Ação não-conhecida quanto à pretensão autoral de excluir da área demarcada o que dela já fora excluída: o 6º Pelotão Especial de Fronteira, os núcleos urbanos dos Municípios de Uiramutã e Normandia, os equipamentos e instalações públicos federais e estaduais atualmente existentes, as linhas de transmissão de energia elétrica e os leitos das rodovias federais e estaduais também já existentes. Ausência de interesse jurídico. Pedidos já contemplados na Portaria n. 534/2005 do Ministro da Justiça. Quanto à sede do Município de Pacaraima, cuida-se de território encravado na "Terra Indígena São Marcos", matéria estranha à presente demanda. Pleito, por igual, não conhecido. 2. INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS PROCESSUAIS NA AÇÃO POPULAR. 2.1. Nulidade dos atos, ainda que formais, tendo por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras situadas na área indígena Raposa Serra do Sol. Pretensos titulares privados que não são partes na presente ação popular. Ação que se destina à proteção do patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe (inciso LXXIII do artigo 5º da Constituição Federal), e não à defesa de interesses particulares. 2.2. Ilegitimidade passiva do Estado de Roraima, que não foi acusado de praticar ato lesivo ao tipo de bem jurídico para cuja proteção se preordena a ação popular. Impossibilidade de ingresso do Estado-membro na condição de autor, tendo em vista que a legitimidade ativa da ação popular é tão-somente do cidadão. 2.3. Ingresso do Estado de Roraima e de outros interessados, inclusive de representantes das comunidades indígenas, exclusivamente como assistentes simples. 2.4. Regular atuação do Ministério Público. 3. INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS NO PROCESSO ADMINISTRATIVO DEMARCATÓRIO. 3.1. Processo que observou as regras do Decreto n. 1.775/96, já declaradas constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal no Mandado de Segurança n. 24.045, da relatoria do ministro Joaquim Barbosa. Os interessados tiveram a oportunidade de se habilitar no processo administrativo de demarcação das terras indígenas, como de fato assim procederam o Estado de Roraima, o Município de Normandia, os pretensos posseiros e comunidades indígenas, estas por meio de petições, cartas e prestação de informações. Observância das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa. 3.2. Os dados e peças de caráter antropológico foram revelados e subscritos por profissionais de reconhecidas qualificação científica e se dotaram de todos os elementos exigidos pela Constituição e pelo Direito infraconstitucional para a demarcação de terras indígenas, não sendo obrigatória a subscrição do laudo por todos os integrantes do grupo técnico (Decretos nos 22/91 e 1.775/96). 3.3. A demarcação administrativa, homologada pelo Presidente da República, é "ato estatal que se reveste da presunção juris tantum de legitimidade e de veracidade" (RE 183.188, da relatoria do ministro Celso de Mello), além de se revestir de natureza declaratória e força auto-executória. Não comprovação das fraudes alegadas pelo autor popular e seu originário assistente. 4. O SIGNIFICADO DO SUBSTANTIVO "ÍNDIOS" NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. O substantivo "índios" é usado pela Constituição Federal de 1988 por um modo invariavelmente plural, para exprimir a diferenciação dos aborígenes por numerosas etnias. Propósito constitucional de retratar uma diversidade indígena tanto interétnica quanto intra-étnica. Índios em processo de aculturação permanecem índios para o fim de proteção constitucional. Proteção constitucional que não se limita aos silvícolas, estes, sim, índios ainda em primitivo estádio de habitantes da selva. 5. AS TERRAS INDÍGENAS COMO PARTE ESSENCIAL DO TERRITÓRIO BRASILEIRO. 5.1. As "terras indígenas" versadas pela Constituição Federal de 1988 fazem parte de um território estatal-brasileiro sobre o qual incide, com exclusividade, o Direito nacional. E como tudo o mais que faz parte do domínio de qualquer das pessoas federadas brasileiras, são terras que se submetem unicamente ao primeiro dos princípios regentes das relações internacionais da República Federativa do Brasil: a soberania ou "independência nacional" (inciso I do art. 1º da CF). 5.2. Todas as ‘terras indígenas’ são um bem público federal (inciso XI do art. 20 da CF), o que não significa dizer que o ato em si da demarcação extinga ou amesquinhe qualquer unidade federada. Primeiro, porque as unidades federadas pós-Constituição de 1988 já nascem com seu território jungido ao regime constitucional de preexistência dos direitos originários dos índios sobre as terras por eles "tradicionalmente ocupadas". Segundo, porque a titularidade de bens não se confunde com o senhorio de um território político. Nenhuma terra indígena se eleva ao patamar de território político, assim como nenhuma etnia ou comunidade indígena se constitui em unidade federada. Cuida-se, cada etnia indígena, de realidade sócio-cultural, e não de natureza político-territorial. 6. NECESSÁRIA LIDERANÇA INSTITUCIONAL DA UNIÃO, SEMPRE QUE OS ESTADOS E MUNICÍPIOS ATUAREM NO PRÓPRIO INTERIOR DAS TERRAS JÁ DEMARCADAS COMO DE AFETAÇÃO INDÍGENA. A vontade objetiva da Constituição obriga a efetiva presença de todas as pessoas federadas em terras indígenas, desde que em sintonia com o modelo de ocupação por ela concebido, que é de centralidade da União. Modelo de ocupação que tanto preserva a identidade de cada etnia quanto sua abertura para um relacionamento de mútuo proveito com outras etnias indígenas e grupamentos de não-índios. A atuação complementar de Estados e Municípios em terras já demarcadas como indígenas há de se fazer, contudo, em regime de concerto com a União e sob a liderança desta. Papel de centralidade institucional desempenhado pela União, que não pode deixar de ser imediatamente coadjuvado pelos próprios índios, suas comunidades e organizações, além da protagonização de tutela e fiscalização do Ministério Público (inciso V do art. 129 e art. 232, ambos da CF). 7. AS TERRAS INDÍGENAS COMO CATEGORIA JURÍDICA DISTINTA DE TERRITÓRIOS INDÍGENAS. O DESABONO CONSTITUCIONAL AOS VOCÁBULOS "POVO", "PAÍS", "TERRITÓRIO", "PÁTRIA" OU "NAÇÃO" INDÍGENA. Somente o "território" enquanto categoria jurídico-política é que se põe como o preciso âmbito espacial de incidência de uma dada Ordem Jurídica soberana, ou autônoma. O substantivo "terras" é termo que assume compostura nitidamente sócio-cultural, e não política. A Constituição teve o cuidado de não falar em territórios indígenas, mas, tão-só, em "terras indígenas". A traduzir que os "grupos", "organizações", "populações" ou "comunidades" indígenas não constituem pessoa federada. Não formam circunscrição ou instância espacial que se orne de dimensão política. Daí não se reconhecer a qualquer das organizações sociais indígenas, ao conjunto delas, ou à sua base peculiarmente antropológica a dimensão de instância transnacional. Pelo que nenhuma das comunidades indígenas brasileiras detém estatura normativa para comparecer perante a Ordem Jurídica Internacional como "Nação", "País", "Pátria", "território nacional" ou "povo" independente. Sendo de fácil percepção que todas as vezes em que a Constituição de 1988 tratou de "nacionalidade" e dos demais vocábulos aspeados (País, Pátria, território nacional e povo) foi para se referir ao Brasil por inteiro. 8. A DEMARCAÇÃO COMO COMPETÊNCIA DO PODER EXECUTIVO DA UNIÃO. Somente à União, por atos situados na esfera de atuação do Poder Executivo, compete instaurar, sequenciar e concluir formalmente o processo demarcatório das terras indígenas, tanto quanto efetivá-lo materialmente, nada impedindo que o Presidente da República venha a consultar o Conselho de Defesa Nacional (inciso III do § 1º do art. 91 da CF), especialmente se as terras indígenas a demarcar coincidirem com faixa de fronteira. As competências deferidas ao Congresso Nacional, com efeito concreto ou sem densidade normativa, exaurem-se nos fazeres a que se referem o inciso XVI do art. 49 e o § 5º do art. 231, ambos da Constituição Federal. 9. A DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS COMO CAPÍTULO AVANÇADO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. Os arts. 231 e 232 da Constituição Federal são de finalidade nitidamente fraternal ou solidária, própria de uma quadra constitucional que se volta para a efetivação de um novo tipo de igualdade: a igualdade civil-moral de minorias, tendo em vista o proto-valor da integração comunitária. Era constitucional compensatória de desvantagens historicamente acumuladas, a se viabilizar por mecanismos oficiais de ações afirmativas. No caso, os índios a desfrutar de um espaço fundiário que lhes assegure meios dignos de subsistência econômica para mais eficazmente poderem preservar sua identidade somática, linguística e cultural. Processo de uma aculturação que não se dilui no convívio com os não-índios, pois a aculturação de que trata a Constituição não é perda de identidade étnica, mas somatório de mundividências. Uma soma, e não uma subtração. Ganho, e não perda. Relações interétnicas de mútuo proveito, a caracterizar ganhos culturais incessantemente cumulativos. Concretização constitucional do valor da inclusão comunitária pela via da identidade étnica. 10. O FALSO ANTAGONISMO ENTRE A QUESTÃO INDÍGENA E O DESENVOLVIMENTO. Ao Poder Público de todas as dimensões federativas o que incumbe não é subestimar, e muito menos hostilizar comunidades indígenas brasileiras, mas tirar proveito delas para diversificar o potencial econômico-cultural dos seus territórios (dos entes federativos). O desenvolvimento que se fizer sem ou contra os índios, ali onde eles se encontrarem instalados por modo tradicional, à data da Constituição de 1988, desrespeita o objetivo fundamental do inciso II do art. 3º da Constituição Federal, assecuratório de um tipo de "desenvolvimento nacional" tão ecologicamente equilibrado quanto humanizado e culturalmente diversificado, de modo a incorporar a realidade indígena. 11. O CONTEÚDO POSITIVO DO ATO DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. 11.1. O marco temporal de ocupação. A Constituição Federal trabalhou com data certa -- a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) -- como insubstituível referencial para o dado da ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. 11.2. O marco da tradicionalidade da ocupação. É preciso que esse estar coletivamente situado em certo espaço fundiário também ostente o caráter da perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica. A tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios. Caso das "fazendas" situadas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, cuja ocupação não arrefeceu nos índios sua capacidade de resistência e de afirmação da sua peculiar presença em todo o complexo geográfico da "Raposa Serra do Sol". 11.3. O marco da concreta abrangência fundiária e da finalidade prática da ocupação tradicional. Áreas indígenas são demarcadas para servir concretamente de habitação permanente dos índios de uma determinada etnia, de par com as terras utilizadas para suas atividades produtivas, mais as "imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar" e ainda aquelas que se revelarem "necessárias à reprodução física e cultural" de cada qual das comunidades étnico-indígenas, "segundo seus usos, costumes e tradições" (usos, costumes e tradições deles, indígenas, e não usos, costumes e tradições dos não-índios). Terra indígena, no imaginário coletivo aborígine, não é um simples objeto de direito, mas ganha a dimensão de verdadeiro ente ou ser que resume em si toda ancestralidade, toda coetaneidade e toda posteridade de uma etnia. Donde a proibição constitucional de se remover os índios das terras por eles tradicionalmente ocupadas, assim como o reconhecimento do direito a uma posse permanente e usufruto exclusivo, de parelha com a regra de que todas essas terras "são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis" (§ 4º do art. 231 da Constituição Federal). O que termina por fazer desse tipo tradicional de posse um heterodoxo instituto de Direito Constitucional, e não uma ortodoxa figura de Direito Civil. Donde a clara intelecção de que OS ARTIGOS 231 E 232 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL CONSTITUEM UM COMPLETO ESTATUTO JURÍDICO DA CAUSA INDÍGENA. 11.4. O marco do conceito fundiariamente extensivo do chamado "princípio da proporcionalidade". A Constituição de 1988 faz dos usos, costumes e tradições indígenas o engate lógico para a compreensão, entre outras, das semânticas da posse, da permanência, da habitação, da produção econômica e da reprodução física e cultural das etnias nativas. O próprio conceito do chamado "princípio da proporcionalidade", quando aplicado ao tema da demarcação das terras indígenas, ganha um conteúdo peculiarmente extensivo. 12. DIREITOS "ORIGINÁRIOS". Os direitos dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam foram constitucionalmente "reconhecidos", e não simplesmente outorgados, com o que o ato de demarcação se orna de natureza declaratória, e não propriamente constitutiva. Ato declaratório de uma situação jurídica ativa preexistente. Essa a razão de a Carta Magna havê-los chamado de "originários", a traduzir um direito mais antigo do que qualquer outro, de maneira a preponderar sobre pretensos direitos adquiridos, mesmo os materializados em escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não-índios. Atos, estes, que a própria Constituição declarou como "nulos e extintos" (§ 6º do art. 231 da CF). 13. O MODELO PECULIARMENTE CONTÍNUO DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. O modelo de demarcação das terras indígenas é orientado pela ideia de continuidade. Demarcação por fronteiras vivas ou abertas em seu interior, para que se forme um perfil coletivo e se afirme a auto-suficiência econômica de toda uma comunidade usufrutuária. Modelo bem mais serviente da ideia cultural e econômica de abertura de horizontes do que de fechamento em "bolsões", "ilhas", "blocos" ou "clusters", a evitar que se dizime o espírito pela eliminação progressiva dos elementos de uma dada cultura (etnocídio). 14. A CONCILIAÇÃO ENTRE TERRAS INDÍGENAS E A VISITA DE NÃO-ÍNDIOS, TANTO QUANTO COM A ABERTURA DE VIAS DE COMUNICAÇÃO E A MONTAGEM DE BASES FÍSICAS PARA A PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS OU DE RELEVÂNCIA PÚBLICA. A exclusividade de usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nas terras indígenas é conciliável com a eventual presença de não-índios, bem assim com a instalação de equipamentos públicos, a abertura de estradas e outras vias de comunicação, a montagem ou construção de bases físicas para a prestação de serviços públicos ou de relevância pública, desde que tudo se processe sob a liderança institucional da União, controle do Ministério Público e atuação coadjuvante de entidades tanto da Administração Federal quanto representativas dos próprios indígenas. O que já impede os próprios índios e suas comunidades, por exemplo, de interditar ou bloquear estradas, cobrar pedágio pelo uso delas e inibir o regular funcionamento das repartições públicas. 15. A RELAÇÃO DE PERTINÊNCIA ENTRE TERRAS INDÍGENAS E MEIO AMBIENTE. Há perfeita compatibilidade entre meio ambiente e terras indígenas, ainda que estas envolvam áreas de "conservação" e "preservação" ambiental. Essa compatibilidade é que autoriza a dupla afetação, sob a administração do competente órgão de defesa ambiental. 16. A DEMARCAÇÃO NECESSARIAMENTE ENDÓGENA OU INTRAÉTNICA. Cada etnia autóctone tem para si, com exclusividade, uma porção de terra compatível com sua peculiar forma de organização social. Daí o modelo contínuo de demarcação, que é monoétnico, excluindo-se os intervalados espaços fundiários entre uma etnia e outra. Modelo intraétnico que subsiste mesmo nos casos de etnias lindeiras, salvo se as prolongadas relações amistosas entre etnias aborígines venham a gerar, como no caso da Raposa Serra do Sol, uma condivisão empírica de espaços que impossibilite uma precisa fixação de fronteiras interétnicas. Sendo assim, se essa mais entranhada aproximação física ocorrer no plano dos fatos, como efetivamente se deu na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, não há como falar de demarcação intraétnica, menos ainda de espaços intervalados para legítima ocupação por não-índios, caracterização de terras estaduais devolutas, ou implantação de Municípios. 17. COMPATIBILIDADE ENTRE FAIXA DE FRONTEIRA E TERRAS INDÍGENAS. Há compatibilidade entre o usufruto de terras indígenas e faixa de fronteira. Longe de se pôr como um ponto de fragilidade estrutural das faixas de fronteira, a permanente alocação indígena nesses estratégicos espaços em muito facilita e até obriga que as instituições de Estado (Forças Armadas e Polícia Federal, principalmente) se façam também presentes com seus postos de vigilância, equipamentos, batalhões, companhias e agentes. Sem precisar de licença de quem quer que seja para fazê-lo. Mecanismos, esses, a serem aproveitados como oportunidade ímpar para conscientizar ainda mais os nossos indígenas, instruí-los (a partir dos conscritos), alertá-los contra a influência eventualmente malsã de certas organizações não-governamentais estrangeiras, mobilizá-los em defesa da soberania nacional e reforçar neles o inato sentimento de brasilidade. Missão favorecida pelo fato de serem os nossos índios as primeiras pessoas a revelar devoção pelo nosso País (eles, os índios, que em toda nossa história contribuíram decisivamente para a defesa e integridade do território nacional) e até hoje dar mostras de conhecerem o seu interior e as suas bordas mais que ninguém. 18. FUNDAMENTOS JURÍDICOS E SALVAGUARDAS INSTITUCIONAIS QUE SE COMPLEMENTAM. Voto do relator que faz agregar aos respectivos fundamentos salvaguardas institucionais ditadas pela superlativa importância histórico-cultural da causa. Salvaguardas ampliadas a partir de voto-vista do Ministro Menezes Direito e deslocadas, por iniciativa deste, para a parte dispositiva da decisão. Técnica de decidibilidade que se adota para conferir maior teor de operacionalidade ao acórdão.”

[29] “Diga-se em continuidade que o substantivo plural ‘índios’ foi recolhido pela Constituição com o mesmo sentido que a palavra tem em nossa linguagem coloquial. Logo, o termo traduz o coletivo de índio, assim entendido o ‘Indígena da América’ (Enciclopédia e Dicionário Koogan e Houaiss da língua portuguesa, Edições Delta, 1994). Saltando à evidência que indígena da América não pode ser senão o ‘nativo’, o ‘aborígine’, o ‘autóctone’, na acepção de primitivo habitante desse ou daquele País americano. Isso  por diferenciação com os principais contingentes humanos advindos de outro países ou continentes, ora para atuar como agentes colonizadores, ora para servir de mão-de-obra escrava, como, no caso do Brasil, os portugueses e os africanos, respectivamente.” (voto do Ministro Carlos Ayres Britto, p. 12 e p 266 do inteiro teor do acórdão)

[30] Quanto à diferença entre território nacional e terra indígena, o relator afirma que somente o ‘território’ enquanto categoria jurídico-política é que se põe como o preciso âmbito espacial de incidência de uma dada Ordem Jurídica soberana, ou autônoma. O substantivo ‘terras’, por sua vez, é termo que assume compostura nitidamente sócio-cultural, e não política. A Constituição, no seu entender, teve o cuidado de não falar em territórios indígenas, mas, apenas em ‘terras indígenas’. Significa dizer que os ‘grupos’, ‘organizações’, ‘populações’ ou ‘comunidades’ indígenas não constituem nem entidade federada, nem formam circunscrição ou instância espacial detentora de dimensão política. Daí, aponta o relator, não se reconhecer a nenhuma organização social indígena ou ao conjunto delas a dimensão de instância transnacional. Deste modo, nenhuma comunidade indígena brasileira detém aptidão para comparecer perante a Ordem Jurídica Internacional como ‘Nação’, ‘País’, ‘Pátria’, ‘território nacional’ ou ‘povo’ independente. Assim, afirma ser fácil a percepção de que todas as vezes em que a Constituição Federal tratou de ‘nacionalidade’ e dos demais vocábulos destacados por aspas (País, Pátria, território nacional e povo) foi para se referir ao Brasil por inteiro. (voto do Ministro Carlos Ayres Britto, p. 22-26 e 276-280 do inteiro teor do acórdão)

[31] Com esteio no art. 20, XI da Constituição Federal, o relator informa que as terras indígenas são bens públicos federais (p. 16 do voto e 270 do inteiro teor do acórdão), todavia essa característica não “amesquinha” as unidades federadas demarcadas, a um porque as unidades federadas pós-Constituição de 1988 já nascem com seu território jungido ao regime constitucional de preexistência dos direitos originários dos índios sobre as terras por eles “tradicionalmente ocupadas” (p. 51-52 do voto e 305-306 do inteiro teor do acórdão); e a dois, porque a titularidade de bens não se confunde com o senhorio de um território político (p. 18-19 do voto e 272-273 do inteiro teor do acórdão).

[32] No entendimento do relator (p. 31 do voto e p. 285 do inteiro teor do acórdão) a demarcação de terras indígenas constitui-se em “capítulo avançado do constitucionalismo fraternal”: “[...] Também aqui é preciso antecipar que ambos os arts. 231 e 232 da Constituição Federal são de finalidade nitidamente fraternal ou solidária, própria de uma quadra constitucional que se volta para a efetivação de um novo tipo de igualdade: a igualdade civil-moral de minorias que só têm experimentado, historicamente e por ignominioso preconceito – quando não pelo mais reprovável impulso coletivo de crueldade –, desvantagens comparativas com outros segmentos sociais. Por isso que se trata de uma era constitucional compensatória de tais desvantagens historicamente acumuladas, a se viabilizar por mecanismos oficiais de ações afirmativas (afirmativas da encarecida igualdade civil-moral). Era constitucional que vai além do próprio valor da inclusão social para alcançar, agora sim, o superior estádio da integração comunitária de todo o povo brasileiro. Essa integração comunitária de que fala a Constituição a partir do seu preâmbulo, mediante o uso da expressão ‘sociedade fraterna’, e que se põe como o terceiro dos objetivos fundamentais que se lê nesse emblemático dispositivo que é o inciso I do art. 3º: ‘construir uma sociedade livre, justa e solidária’ (sem destaque no original).”

[33] “[...] Veremos cada qual desses conteúdos, não sem antes ajuizar que somente à União compete instaurar, sequenciar e concluir formalmente o processo demarcatório das terras indígenas, tanto quanto efetivá-lo materialmente. Mas instaurar, sequenciar, concluir e efetivar esse processo por atos situados na esfera de atuação do Poder Executivo Federal, pois as competências deferidas ao Congresso Nacional, com efeito concreto ou sem densidade normativa, se esgotam nos seguintes fazeres: a) ‘autorizar, em terras indígenas, a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos e a pesquisa e lavra de riquezas minerais’ (inciso XVI do art. 49); b) pronunciar-se, decisoriamente, sobre o ato de ‘remoção de grupos indígenas de suas terras’ (§ 5º do art. 231, assim redigido: [...].” (voto do Ministro Carlos Ayres Brito, p. 28 e p. 282 do inteiro teor do acórdão)

[34] “Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:

[...]

XVI - autorizar, em terras indígenas, a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos e a pesquisa e lavra de riquezas minerais;”

[35] Vide nota de rodapé n. 3.

[36] A tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios.

[37] Voto-vista do Ministro Carlos Alberto Direito, p. 58-60 do voto e p. 416-418 do inteiro teor do acórdão.

[38] As condicionantes foram as seguintes:

I. O usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras indígenas (art. 231, § 2º, da Constituição Federal) pode ser relativizado sempre que houver, como dispõe o art. 231, § 6º, da Constituição, relevante interesse público da União, na forma de lei complementar;

II.O usufruto dos índios não abrange o aproveitamento de recursos hídricos e potenciais energéticos, que dependerá sempre de autorização do Congresso Nacional;

III. O usufruto dos índios não abrange a pesquisa e lavra das riquezas minerais, que dependerá sempre de autorização do Congresso Nacional, assegurando-se-lhes a participação nos resultados da lavra, na forma da lei;

IV.O usufruto dos índios não abrange a garimpagem nem a faiscação, devendo, se for o caso, ser obtida a permissão de lavra garimpeira;

V.O usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da política de defesa nacional; a instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico, a critério dos órgãos competentes (Ministério da Defesa e Conselho de Defesa Nacional), serão implementados independentemente de consulta às Comunidades indígenas envolvidas ou à FUNAI;

VI.A atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal na área indígena, no âmbito de suas atribuições fica assegurada e se dará independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à FUNAI;

VII. O usufruto dos índios não impede a instalação, pela União Federal, de equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além das construções necessárias à prestação de serviços públicos pela União, especialmente os de saúde e educação;

VIII.  O usufruto dos índios na área afetada por unidades de conservação fica sob a responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade;

IX. O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade responderá pela administração da área da unidade de conservação também afetada pela terra indígena com a participação das comunidades indígenas, que deverão ser ouvidas, levando-se em conta os usos, tradições e costumes dos indígenas, podendo para tanto contar com a consultoria da FUNAI;

X. O trânsito de visitantes e pesquisadores não-índios deve ser admitido na área afetada à unidade de conservação nos horários e condições estipulados pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade;

XI. Devem ser admitidos o ingresso, o trânsito e a permanência de não-índios no restante da área da terra indígena, observadas as condições estabelecidas pela FUNAI;

XII. O ingresso, o trânsito e a permanência de não-índios não pode ser objeto de cobrança de quaisquer tarifas ou quantias de qualquer natureza por parte das comunidades indígenas;

XIII. A cobrança de tarifas ou quantias de qualquer natureza também não poderá incidir ou ser exigida em troca da utilização das estradas, equipamentos públicos, linhas de transmissão de energia ou de quaisquer outros equipamentos e instalações colocadas a serviço do publico, tenham sido excluídos expressamente da homologação, ou não;

XIV. As terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico que restrinja o pleno exercício do usufruto e da posse direta pela comunidade indígena ou pelos índios (art. 231, § 2º, Constituição Federal, c/c art. 18, caput, Lei n. 6.001/1973);

XV. É vedada, nas terras indígenas, a qualquer pessoa estranha aos grupos tribais ou comunidades indígenas, a prática de caça, pesca ou coleta de frutos, assim como de atividade agropecuária, ou extrativa (art. 231, § 2º, Constituição Federal, c/c art. 18, § 1º, Lei n. 6.001/1973);

XVI.  As terras sob ocupação e posse dos grupos e das comunidades indígenas, o usufruto exclusivo das riquezas naturais e das utilidades existentes nas terras ocupadas, observado o disposto nos arts. 49, XVI, e 231, § 3º, da Constituição Federal, bem como a renda indígena (art. 43 da Lei n. 6.001/1973), gozam de plena imunidade tributária, não cabendo a cobrança de quaisquer impostos, taxas ou contribuições sobre uns ou outros;

XVII.  É vedada a ampliação da terra indígena já demarcada;

XVIII. Os direitos dos índios relacionados às suas terras são imprescritíveis e estas são inalienáveis e indisponíveis (art. 231, § 4º, Constituição Federal);

XIX. É assegurada a participação dos entes federados no procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas, encravadas em seus territórios, observada a fase em que se encontrar o procedimento.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMORIM, Filipo Bruno Silva. Ação Popular (PET) nº 3388: a atuação da AGU na demarcação daterra indígena Raposa Serra do Sol. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3410, 1 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22904. Acesso em: 19 abr. 2024.