7. A ALTERAÇÃO DIMENSIONAL DO ÉDIPO E SUAS DECORRÊNCIAS
Vimos no transcorrer das páginas antecedentes, arrimados na antropologia, na psicologia e na etnografia que a família sofreu severa alteração, deixando de ser vertical e hierarquizada (pais, filhos, netos), para tornar-se horizontal e desorganizada (convivência múltipla em um mesmo reduto entre membros diversos: avós, sobrinhos, agregados, etc.). O vocábulo desorganizado15, aqui posto, tem a finalidade de deixar entrever que não mais é o pai – homem – que dita as regras da família, até mesmo porque as tarefas caseiras, acompanhado do fato da mulher também ter ido para o mercado de trabalho, dissipara este papel paterno.
Sabidamente, a contar das eras primitivas o homem era o provedor e a mulher a fertilizadora e, deste contexto, surgia o medo desta última em se ver abandonada – o que a fazia suportar toda a sorte de mandos e desmandos; enquanto que para o homem, desde que preenchida a sua função provedora nada lhe obstava ter o encontro sexual com outras mulheres, as tão conhecidas histórias das amantes, bom exemplo disso era a Marquesa de Santos, Domitília de Castro e Canto Melo, que mantinha liame extraconjugal com D. Pedro I.
A ideia patriarcal ainda vigente na época vitoriana de Freud perdeu campo com a transformação da família, sendo ainda mais invalidada com a introdução da homoafetividade. Na qual a aparente igualdade de sexo detona gêneros diversos, confundindo, aos olhos dos conservadores, o papel do provedor e sepultando, pelo menos a nível biológico, e em regra, a função fertilizadora da mulher.
Todavia, ao que parece, seja qual seja a orientação sexual, quando dois seres se unem com o intento de permanência, brota no imo de suas almas o desejo de ter filho. Não poderia, em nível jurídico, desde que preenchidos os requisitos legais, o par homoafetivo ser alijado deste ideário. Cabendo, de igual sorte, retirar obstáculos no que tange a adoção em nível de uma visão psicanalítica, como se demonstrará.
O Édipo, em uma visão contextualizada, não foi sepultado, porque há, sem sombra de dúvida, uma ambiguidade de sentimentos por parte da criança com relação aos objetos primários16. Porém, deve ele, ser visualizado por uma ótica mais contemporânea, isto é, mantendo-se a função do corte pela autoridade e da continência, independentemente da anatomia sexual daqueles que tenham relação direta com o infante.
Logo, em uma união homoafetiva que permita a adoção (ocorrida entre lésbicas, gays, transexuais, travestis e transgêneros), haverá a intenção de ser ela duradoura e, mais que isso, ter um contexto familiar com acolhimento e autoridade, tal como é esperado que se ocorra em uma relação heterossexual. Dito de outra forma, o adotado teria a sua representação desses papeis que ele colocaria nos novos pais e não que necessariamente os pais deixariam isso evidente.
Geralmente, até mesmo porque no campo da homoafetividade se torna muito difícil a procriação de modo espontânea, decorrendo daí uma sensibilidade maior, os adotantes se tornam mais delicados para com o inter-relacionamento com o ser adotado, e também, não visa a escolha de semelhanças físicas dessas crianças com as suas (geralmente brancos de olhos azuis almejam adotar rebentos que tenham fisionomia próxima deles).
É sabido, por outro lado, como ensina Peiter (2011) que
Os trabalhos publicados que buscam avaliar as condições psicológicas indicativas do potencial e da disponibilidade da criança para realização de novos vínculos apontam para circunstâncias em que elas teriam vivido traumas tão dramáticos que inviabilizariam as possibilidades de nova inserção familiar.
Talvez, até mesmo em função da diferença de um lar homoafetivo, onde se convive pessoas anatomicamente idênticas no plano da sexualidade, não guardaria, por conta disso, semelhança com o ambiente heterossexual em que a criança tenha passado por um trauma, favorecendo a inserção social dela mediante o processo de adoção, porque não ocorreria identificação com os representantes psíquicos do meio em que se vira objeto de molestações (exemplo disso é o não incomum abuso sexual de homens quanto às suas enteadas).
Este inédito, que, aliás, marca o humano, uma vez mais serviria, não só no processo maturacional do adulto – haja vista que o psiquismo encontra-se constantemente em transformação –, mas também recolocaria um ser galvanizado pela dor diante da possibilidade de receber afeto, cujo sentimento e sensação independem da orientação sexual.
Ao longo da constância deste adotado portador de um trauma iriam sendo removidas as figuras do pai e mãe biológicos que lhe infligia tratamentos não humanitários, apagando de seu psiquismo aquelas cenas terroríficas e dantescas, criando-lhe um espaço potencial para uma nova vida. Na verdade, ocorreria, aqui, uma substituição de afetos, dando curso normal ao complexo de Édipo.
Há um trabalho, é bom que se diga, no plano da adoção internacional, especificamente entre o Brasil e a Europa, que é dotado de cinco etapas, antecedentemente à consumação do processo adotivo, como nos informa Peiter (2011), quais sejam:
a) o processo de luto: a criança é informada, pelo profissional responsável, que fora destituída definitivamente de seu antigo lar, bem como este cria um laço de afetividade com ela, a ponto de que ela possa contar sua história de vida até sua chegada no abrigo (lar substituto).
O não desabrochar desse luto, assevera Peiter (2011) que “o silêncio e os não ditos trazem entraves ou dificuldades na necessária elaboração narrativa da própria história”.
Nesta etapa, Crine e Nabinger (2004) deixa entremostrado que às vezes mesmo destratada, a criança guarda tamanha lealdade com sua família originária, que resiste à um processo de adoção, cabendo, em caso tal outras formas alternativas de acolhimento, visto que o(a) candidato(a) não teria características de uma “adotabilidade afetiva”.
Mais uma vez, crê-se, seja uma das saídas para a hipótese elencada acima, o acolhimento dessa criança pelo par homoafetivo, dado que não sofreria o petiz qualquer pressão psíquica em caso tal, haja vista o fato de não estar diante da figura tradicional da convivência constituída por homem e mulher.
b) o trabalho com as representações: a criança é estimulada a idealizar o futuro lar, ou seja, julga-se ser de maior importância a criação desta representação psíquica do que o atingimento do alvo em si. Nada há que dasabone o par homoafetivo em fazer parte desta representação psíquica do futuro adotando, incutindo-lhe a firme idéia de que será deveras bem cuidado, que frequentará uma escola, que se ficar doente será assistido e assim por diante. Trabalhando nessa criança a fenda emocional até então existente, fornecendo-lhe a tão almejada hospitalidade e segurança.
c) o matching: intercruza-se os desejos da criança e dos eventuais adotantes, onde, mais uma vez, se bem executada as fases das representações, nada há que desabone, por si só, a adoção por par homoafetivo.
d) a preparação específica: na preparação propriamente dita, levando em consideração o programa de adoção internacional já citado, um psicólogo, por meio lúdico, informa à criança que fora encontrada uma família que lhe abrigará, bem como fará com aquela todo um percurso externo ao abrigo e cientificará os cuidados que ela receberá de seus adotantes. Uma vez mais, desde que bem recebido pela criança, nada contradiz a viabilidade de que ela venha a ser inserida em lar homoafetivo.
Não é à toa que Nabinger e Crine (2004) aduzem: “De uma parte e da outra, irão realizando o afinamento das representações recíprocas, a expressão de emoções diversas, com suas ambivalências e uma busca tateante de signos de identificação”.
e) o encontro: antes da criança se por frente a frente aos adotantes a equipe multidisciplinar servirá como mediadora dessa etapa e, no tribunal, além dos procedimentos formais, existe uma revivescência de todo o percurso que marcou o processo de adoção.
Há um estágio de convivência onde os profissionais se põem à disposição para cooperarem, isso já no lar onde viverão adotado e adotantes.
Listadas estas etapas, cumpre realçar, mormente no Brasil, onde o índice de crianças em lares substitutos é alarmante e, por outro lado, havendo pares homoafetivos, dotados de total estabilidade e até mesmo quiçá casados civilmente, ávidos em terem consigo uma criança, torna-se mais que recomendável a viabilização desse caminho que conduzirá todos em direção ao encontro da formação de uma família com a maior completitude possível.
Não deve ser esquecida a lição de Nabinger e Crine (2004), onde registram que “a perda de tempo é grave e por vezes irreparável se a permanência da criança na instituição se prolonga, quando sua situação familiar não está clara, principalmente enquanto os pais não aparecem e nem consentem que a criança seja adotada.”
Por todo o exposto, pode-se notar que, tanto o Direito quanto as demais ciências afetas ao estudo do humano, e em especial a Psicanálise, desprendem-se da questão anatômica que constitui o par homoafetivo para ver a singularidade de cada qual; bem como, o complexo de Édipo não mais tem o formato da verticalidade que grassava ao tempo da família patriarcal, mas sim é dotado da horizontalidade que peculiariza os núcleos familiares contemporâneos, onde se situam em um mesmo lar gerações diversas, a chamada família nuclear do meio urbano, a qual é “constituída por um casal (ou somente pela mãe, em pelo menos um terço das famílias segundo o IBGE) e um ou dois filhos, longe do grupo familiar de origem, anônimos, desenraizados de suas culturas”, na fala de José Outeiral.
Sendo assim, o importante não é o sexo oposto dos adotantes, mas a função que cada qual ocupe – estavelmente – na ambiência que esteja inserido o adotado, isto é, o papel de ordem (direcionado culturalmente ao paterno) e de continência (mais próprio ao feminino, em termos culturais), que se tem no casal homoafetivo.
Soam interessantes estas palavras de Sandra Camargos (2010):
[...] Podemos observar, nesse entendimento, que Freud utiliza o termo objeto para designar o objeto de amor. Isto nos leva a pensar que, mesmo usando o termo mãe, não se refere especificamente à mãe biológica, mas alguém que exerce a função de portar condição de fazer marcas mediante seus cuidados.
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Percebe-se que não existe incompatibilidade na adoção por par homoafetivo, seja no plano jurídico, antropológico, etnográfico, psicológico e psicanalítico. No campo do Direito, a dignidade da pessoa humana, a liberdade de orientação sexual e a vedação de tratamento discriminatório, deixam à mostra que, hodiernamente, a noção de família é plural e, por isso mesmo, tanto hetero como homossexual devem ser vistos como seres humanos integrais.
A adoção, no plano normativo, leva em consideração, acima de tudo, o melhor interesse do adotado e, se estável a união homoafetiva, composta por lésbicas, gays, transexuais, travestis e transgêneros, sejam os integrantes casados entre si ou não, a afetividade é o signo que deve compor o viés adotivo.
No espectro antropológico, etnográfico e psicológico, não se encontra qualquer estudo que deslustre a adoção por pares homoafetivos, visto que tais ciências abarcam a noção de que o humano é selado pela diversidade e ao mesmo tempo pela singularidade de cada ser. Não há identificação da criança adotada com a orientação sexual de seus pais, mas sim, com os papéis e com o caráter que deles ressaem cotidianamente para o percurso da vida societária.
Já no campo psicanalítico, o complexo de Édipo, onde predomina a ambivalência da criança em relação aos adotantes – que substituem os genitores –, pode muito bem ser trabalhado ainda que estes últimos sejam do mesmo sexo, isto porque, a identificação operará pelo papel que eles exercerão na ambiência doméstica e/ou fora dela e não por conta das diferenças anatômicas, tal como restou afirmado no parágrafo antecedente.
Deve-se registrar, outrossim, que no Brasil há uma enorme gama de crianças em abrigos17, muito dos quais sem as melhores condições para o acolhimento de seres em formação, o que justifica, ainda mais, a adotabilidade em geral, sem qualquer exclusão à homoafetiva.
Cumpre anotar, ademais, que pelo fato de uma criança ter sido adotada por um par/casal homoafetivo não significa, de nenhum modo, que por isso mesmo ela terá dificuldade na identificação de seu gênero, como comprovam estudos já realizados em outros países e retratados neste escrito. Até porque, em regra, os homossexuais são filhos de casais heterossexuais, o que evidencia que a homoafetividade transcende às questões meramente socioculturais, incursionando em origens ainda desconhecidas e pouca exploradas pela ciência, crivada por inescondível preconceito.
Enfim, a adoção é ineludivelmente um ato de amor e, por isso mesmo, dará à criança ou ao adolescente uma nova oportunidade de ter um lar, que se estiver pautado na afetividade, evitará que o adotado resvale para os desvãos de estruturas clínicas cravadas pelos transtornos. Por isso, a Psicanálise jamais poderá desproteger a adoção por par homoafetivo, senão ela apartaria do seu destino apregoado por Sigmund Freud, em carta enviada à Carl Gustav Jung, qual seja, a cura pelo amor.
Se grupos rechaçam a homossexualidade como desvios de conduta, apregoando que destoam da realidade normal do homem, como seria lícito a eles enfrentar o fato de que uma criança precisa e busca no amor o refúgio e o alicerce para seu pleno desenvolvimento? Diga-se de passagem que mesmo os pais mais ditosos cometem equívocos durante o transcurso da criação, o que, nem por isso, os desmerece do apostolado que a vida lhes confia. Seria lícito para com o amor que se almeja, vergastar as esperanças daqueles que já quase a perderam? Se diante do exposto e de toda composição desta obra não houve uma clareza científica julgada suficiente para comprovar aquilo que se pretende, com toda certeza, ainda sim, seria, no universo das possibilidades, sensato o benefício da dúvida!
Arrematando, a religião prenhe de dogmas, aquela que não se constitui na guardiã da religiosidade e muito menos da espiritualidade do Homem, é a que mais agride e condena o casamento homoafetivo e, por obvio penaliza a adoção levada a efeito por tal par. Com todo respeito, não é capaz de capturar a alma humana, visto que está ementada no plano da imanência e não alcança o cume da transcendência, dado que engessada em conceitos – melhor dizendo preconceitos – onde mais vale a “verdade” do que o “desejo lícito” calcado na amorosidade.