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As patentes de medicamentos e a dignidade da pessoa humana como limite ao direito fundamental à propriedade industrial

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Agenda 12/02/2014 às 11:39

3.    Tratados internacionais em matéria de proteção às patentes

Signatário de vários tratados internacionais em matéria de proteção à Propriedade intelectual, o Brasil integrou o grupo de países que constituiu a Convenção União de Paris em 1883, instalando um regime jurídico uniforme de regras[27]. Alem dessa importante convenção internacional de proteção a todos os bens da propriedade industrial, o País também é signatário do Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (ADPIC/TRIPS), firmado em 1994, que tem como objetivo, “reduzir distorções e obstáculos ao comércio internacional e levando em consideração a necessidade de promover uma proteção eficaz e adequada dos direitos de propriedade intelectual e assegurar que as medidas e procedimentos destinados a fazê-los respeitar não se tornem, por sua vez, obstáculos ao comércio legítimo.[28]

Especificamente no que diz respeito às patentes de medicamentos, o Brasil também é signatário da Declaração de Doha, firmada em 2001 no Catar, durante a IV Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC).

Tendo em vista a natureza jurídica dos referidos tratados, importa nesta ocasião conhecer a evolução do entendimento do Supremo Tribunal Federal brasileiro quanto a definição do status normativo dos tratados internacionais em matéria de direitos humanos que tem o País como signatário.

O Supremo Tribunal Federal brasileiro, a quem compete a função institucional precípua de guardar a Constituição Federal[29], interpretando seu texto e garantindo-lhe a integridade e o respeito, adotou a tese da legalidade ordinária dos tratados internacionais há mais de trinta e dois anos, quando, no julgamento de Recurso Extraordinário[30] que versava sobre a aplicabilidade de dispositivos da Convenção de Genebra sobre letras de câmbio e notas promissória, declarou, à unanimidade, acompanhando voto de vistas do Ministro Cunha Peixoto, que os tratados internacionais, para que tivessem vigência no Brasil, precisavam ser convertidos em leis ordinárias através de ratificação.

É preciso que se diga que, à época da decisão paradigmática, vigorava a Constituição Federal de 1967, e que a Convenção de Genebra (lei uniforme cambial) não tratava de matéria relacionada a direitos humanos.

 Já sob a vigência da Constituição Federal de 1988, em novembro de 1995 o Supremo Tribunal Federal reafirmou essa mesma posição ao julgar pedido de habeas corpus[31] que invocava como fundamento as determinações do Pacto de São José da Costa Rica quanto à impossibilidade de prisão civil por dívida, neste caso específico, em contrato de alienação fiduciária em garantia, em que o devedor não pagava as obrigações vencidas e nem devolvia o bem cuja posse precária lhe fora confiada, complementando que, havendo antinomia entre o tratado internacional e a lei ordinária, esse conflito resolver-se-ia pelo critério lex posterior derrogat legi priori, o que mostra a paridade hierárquica com que eram tratados.

Desta feita, a reafirmação do entendimento sustentado pelo Supremo Tribunal Federal de que os tratados internacionais ratificados no Brasil tinham força de lei ordinária revelou-se de maior significância, uma vez que o Pacto de São José da Costa Rica tratava sobre a Convenção Americana de Direitos Humanos, um importante documento internacional voltado à proteção das liberdades pessoais e da justiça social que, como o próprio nome afirma, trata de direitos humanos fundamentais.

Por último, em julgamento de medida cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade[32] movida pela Confederação Nacional do Transporte (CNT) e a Confederação Nacional da Indústria (CNI) contra Decreto Legislativo que aprovou a Convenção n.° 158 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), acompanhando de forma unânime o voto do Ministro Celso de Mello, o Supremo Tribunal Federal tornou a reconhecer a paridade normativa dos tratados internacionais com a legislação ordinária.

Em três manifestações distintas, cada uma delas proferida em ação própria que versava sobre diferentes valores jurídicos (capital, liberdade e trabalho), o Supremo Tribunal Federal manteve-se firme em seu entendimento de reconhecer nos tratados internacionais ratificados no Brasil a natureza jurídica de lei ordinária.

Em dezembro de 2008 o Supremo Tribunal Federal pôs fim a essa antiga controvérsia doutrinária e jurisprudencial ao proferir histórica decisão em Recurso Extraordinário[33] que inaugurou nova classificação hierárquica das normas no ordenamento jurídico brasileiro.

A discussão travada naqueles autos processuais dizia respeito à admissão da prisão civil do depositário infiel no contrato de alienação fiduciária em garantia. Duas teses divergentes foram apresentadas para discussão em plenário, sendo que ambas entendiam pela impossibilidade da medida de força: a primeira, defendida pelo Ministro Celso de Mello, reconhecia nos tratados internacionais que versavam sobre direitos humanos status de norma constitucional, e a segunda, defendida pelo Ministro Gilmar Mendes, entendia que o valor desses tratados, conquanto não aprovados pelo quorum qualificado descrito na Constituição Federal brasileira, era de normas “supralegais”, posicionando-se logo acima da legislação ordinária, mas devendo obediência às regras constitucionais. Prevaleceu a última.

Encerrava-se o ciclo de mais de trinta anos em que vigorou a tese da legalidade ordinária dos tratados internacionais. Reconhecia-se, finalmente, que os tratados internacionais, principalmente aqueles que versam sobre direitos humanos, têm posição hierárquica superior em relação à legislação ordinária.

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3.1 O Acordo TRIPS/ADPIC e as patentes de medicamentos

Em razão da aceleração do processo de globalização da economia e dos cada vez mais frequentes e significativos avanços tecnológicos experimentados nas últimas décadas, aliados a uma maior facilidade no acesso aos meios de produção, o mundo passou a experimentar um aumento considerável das violações aos bens tutelados pelo Direito da Propriedade Industrial. Este fenômeno provocou, em consequência, um aumento nos conflitos de interesse econômico entre os países mais desenvolvidos econômica e financeiramente e aqueles de economia emergente. A pirataria transformou-se, rapidamente, num fenômeno de massas experimentado em praticamente todos os países, desenvolvidos ou não.

Nascia daí a necessidade de uma adequação das regras de proteção à propriedade industrial, o que se efetivou com a elaboração, em 1994, do Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio (TRIPS/ADPIC). Em sua parte introdutória, o texto reconhece “a importância de reduzir tensões mediante a obtenção de compromissos firmes para a solução de controvérsias sobre questões de propriedade intelectual relacionadas ao comércio, por meio de procedimentos multilaterais”, numa clara alusão à motivação que levou ao aumento do nível de proteção da propriedade industrial em todos os estados-membros.

Logo no Capítulo I do referido acordo internacional, no artigo que trata dos princípios inaugurados com a norma supra-estatal, o texto reafirma, de maneira clara, a superioridade de suas regras em relação aos ordenamentos jurídicos internos dos estados-membros, em que pese ter sido coerente com a Convenção União de Paris que já previa, desde o seu texto original, o licenciamento compulsório de patentes:

1. Os Membros, ao formular ou emendar suas leis e regulamentos, podem adotar medidas necessárias para proteger a saúde e nutrição públicas e para promover o interesse público em setores de importância vital para seu desenvolvimento sócio-econômico e tecnológico, desde que estas medidas sejam compatíveis com o disposto neste Acordo.

2. Desde que compatíveis com o disposto neste Acordo, poderão ser necessárias medidas apropriadas para evitar o abuso dos direitos de propriedade intelectual por seus titulares ou para evitar o recurso a práticas que limitem de maneira injustificável o comércio ou que afetem adversamente a transferência internacional de tecnologia.[34]

Não obstante a imposição de regras que condicionam os estados-membros à elevação do nível de proteção aos bens da propriedade industrial, o texto do referido acordo internacional admite, em seu art. 31, o uso da patente sem a autorização de seu titular, desde que sejam respeitadas algumas condições, dentre as quais a de que se tenha buscado obter a autorização do titular em termos e condições comerciais razoáveis, sem que se tenha conseguido sucesso num prazo razoável:

Artigo 31

Outro Uso sem Autorização do Titular

Quando a legislação de um Membro permite outro uso do objeto da patente sem a autorização de seu titular, inclusive o uso pelo Governo ou por terceiros autorizados pelo governo, as seguintes disposições serão respeitadas:

[...]

(b) esse uso só poderá ser permitido se o usuário proposto tiver previamente buscado obter autorização do titular, em termos e condições comerciais razoáveis, e que esses esforços não tenham sido bem sucedidos num prazo razoável. Essa condição pode ser dispensada por um Membro em caso de emergência nacional ou outras circunstâncias de extrema urgência ou em casos de uso público não-comercial. No caso de uso público não-comercial, quando o Governo ou o contratante sabe ou tem base demonstrável para saber, sem proceder a uma busca, que uma patente vigente é ou será usada pelo ou para o Governo, o titular será prontamente informado;[35]

[...]

Observa-se que a segunda parte da alínea “b” do art. 31 do Acordo TRIPS/ADPIC dispensa o estado-membro dessa obrigação em caso de “emergência nacional ou outras circunstâncias de extrema urgência”, como, também, em “casos de uso público não comercial”, cabendo ao Governo, neste último caso, informar imediatamente ao titular da patente.

Por fim, merece destaque o reconhecimento de que os estados-membros de menor desenvolvimento econômico-financeiro estarão desobrigados a cumprir as regras estabelecidas naquele acordo pelo prazo de dez anos, a contar de um ano após a sua vigência[36], à exceção dos artigos que dispõem sobre o tratamento nacional, o tratamento de nação mais favorecida e os acordos multilaterais sobre obtenção ou manutenção da proteção[37].

A preocupação dos estados-membros em desenvolvimento em conseguir superar a condição de dependência tecnológica em relação aos países mais desenvolvidos, considerada um entrave para o progresso e o bem-estar de sua população, ruiu frente a um sem número de acordos bilaterais firmados quase sempre entre estados detentores e estados dependentes de tecnologia, que dificultavam, ou até mesmo impediam, a utilização da patente sem a autorização de seu titular.

O problema ético da proteção aos interesses econômicos dos titulares das patentes de medicamentos em detrimento do direito à saúde não passou despercebido, como se vê das observações de Fábio Konder Comparato:

O litígio referente à exploração das patentes de medicamentos retrovirais, no combate à síndrome da imunodeficiência adquirida, é uma boa ilustração dos notáveis malefícios que pode causar ao gênero humano o reconhecimento do caráter absoluto da propriedade privada. Ficou nítida, no episódio, a necessidade de se optar entre, de um lado, a proteção do interesse empresarial e, de outro, o dever ético de preservação da vida humana em qualquer circunstância. Em tais casos, constitui, sem exagero, um atentado contra a humanidade impedir, como fez a Organização Mundial do Comércio, em 1994, pelo Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual (TRIPs), que as autoridades públicas dos diferentes países decidam não respeitar as patentes detidas por grandes empresas multinacionais, a fim de proteger um bem de valor incomparavelmente mais elevado: o direito à preservação da saúde e da vida de suas populações.[38]

Com a finalidade de harmonizar as relações comerciais entre diferentes países, o Acordo TRIPS/ADPIC criou uma nítida insatisfação dos estados menos desenvolvidos em relação aos obstáculos criados com o acesso aos medicamentos considerados necessários, uma vez que a proteção patentária elevada somente atendia aos interesses daquelas nações que já tinham desenvolvimento tecnológico mais acentuado.

3.2 A Declaração de Doha

A elaboração do acordo TRIPS/ADPIC e o inegável favorecimento aos países mais desenvolvidos, detentores da maior parte do conhecimento protegido pelo direito, trouxe, como efeitos, uma concentração do poder econômico das grandes empresas transnacionais e um consequente atraso no desenvolvimento científico dos países emergentes.

Esses efeitos foram sentidos de forma mais significativa na área da saúde pública, o que refletia, inevitavelmente, na qualidade de vida das populações destes países. Neste clima de insatisfação, organizações não-governamentais e governos de países em desenvolvimento pressionaram legitimamente a Organização Mundial do Comércio (OMC) a promover mudanças nas regras outrora estabelecidas.

Em 2001, em reunião na cidade de Doha, Catar, realizou-se a IV Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), ocasião em que fora elaborado um importante documento que trata da relação entre o interesse econômico tutelado pelo Sistema internacional da Propriedade Intelectual e as necessidades de saúde pública: a Declaração de Doha sobre o Acordo TRIPS e a Saúde Pública.

Em um documento que ressalta de maneira franca e direta a preocupação dos países menos desenvolvidos economicamente com a saúde de suas populações, a mencionada conferência ministerial transformou-se em um verdadeiro ato de insurgência contra a proteção aos interesses financeiros dos países ricos.

Em uma explicitação necessária do caráter fundamental e humano do direito à saúde, universal e de aceitação histórico-naturalística, os países membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) declararam que a proteção à propriedade industrial é importante para a produção de novos medicamentos, mas que a saúde pública é um valor maior e que deve ser protegido[39]. Inaugurou-se, no âmbito das discussões da Organização Mundial do Comércio (OMC), um novo paradigma: a supremacia inquestionável dos direitos humanos, em especial do princípio da dignidade da pessoa humana, em relação aos direitos da propriedade privada.

Reafirmou-se, naquele documento, o direito que têm os estados-membros de fazer uso da “flexibilidade implícita” prevista no acordo TRIPS/ADPIC para a proteção à saúde pública. Finalmente, decidiu-se que:

Na aplicação das tradicionais regras de interpretação da legislação internacional pública, cada cláusula do Acordo TRIPS deverá ser entendida à luz do objeto e da finalidade do Acordo, na forma expressa em seus objetivos e princípios.

Cada membro tem o direito de conceder licenças compulsórias, bem como liberdade para determinar as bases em que tais licenças são concedidas.

Cada membro tem o direito de determinar o que constitui emergência nacional ou outras circunstâncias de extrema urgência, subentendendo-se que crises de saúde pública, inclusive as relacionadas com o HIV/AIDS, malária e outras epidemias, são passíveis de constituir emergência nacional ou circunstâncias de extrema urgência.

O propósito dos dispositivos do Acordo TRIPS que sejam relevantes para a prescrição dos direitos de propriedade intelectual é o de permitir que cada Membro seja livre para fixar suas próprias diretrizes quanto à referida prescrição, sem qualquer interferência, em consonância com o que dispõem os Artigos 3 e 4 sobre nação mais favorecida e tratamento nacional.[40]

Nos exatos termos do que se declarou, os estados-membros da Organização Mundial do Comércio (OMC), reconhecendo a preocupante situação dos países mais pobres com epidemias de doenças, como o HIV/AIDS, a malária e a tuberculose, concordaram em flexibilizar o rigor do Acordo TRIPS/ADPIC para suprir as necessidades de medicamentos dos países de menor desenvolvimento econômico, inclusive reafirmando o que deveria ser óbvio: a sua autonomia de decidir quais as situações que caracterizam emergência nacional ou circunstância de extrema urgência para fins de aplicação do instituto do licenciamento compulsório da patente de medicamentos.

Como mostra o recente estudo realizado por um pesquisador da Faculdade de Direito da University of New South Wales, na Austrália, a preocupação dos países menos desenvolvidos encontra fundamento em dados estatísticos:

Ao longo da última década, a saúde pública e o desenvolvimento tornaram-se temas de grande preocupação internacional. A saúde pública em muitas partes do mundo chegou a níveis de crise: mais de 14 milhões de pessoas são mortas anualmente por doenças infecciosas (90% dos quais estão no mundo em desenvolvimento); globalmente mais de 40 milhões de pessoas estão infectadas com HIV/AIDS (90% dos quais estão no mundo em desenvolvimento) e a doença mata mais de três milhões de pessoas anualmente, e mais de 500 milhões de pessoas são infectadas com malária a cada ano e a doença mata mais de dois milhões de pessoas anualmente, mais de oito milhões de pessoas desenvolvem tuberculose ativa (TB) e a cada ano a doença mata mais de dois milhões de pessoas anualmente (95% das pessoas atingidas e 99% das mortes decorrentes de tuberculose são encontrados no mundo em desenvolvimento). Centenas de milhares mais pessoas morrem a cada ano por outras, menos conhecidas, doenças que afetam principalmente os países em desenvolvimento.[41]

Diante deste quadro diagnóstico devastador, a Declaração de Doha serviu de alerta para a insatisfação dos países membros da Organização Mundial do Comércio (OMC), uma vez que não há justificativa razoável para o cumprimento de regras internacionais de mercado em detrimento da dizimação de milhões de pessoas, em sua esmagadora maioria provenientes de países pobres, em face da dificuldade de acesso ou do alto preço dos medicamentos.

Sobre o autor
Fernando Antônio Jambo Muniz Falcão

advogado em Maceió (AL), professor da Universidade Federal de Alagoas (UFAL)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FALCÃO, Fernando Antônio Jambo Muniz. As patentes de medicamentos e a dignidade da pessoa humana como limite ao direito fundamental à propriedade industrial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3878, 12 fev. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26694. Acesso em: 15 nov. 2024.

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