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As patentes de medicamentos e a dignidade da pessoa humana como limite ao direito fundamental à propriedade industrial

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4.    Direito Social à Saúde e Direito à Propriedade Industrial

A Constituição Federal de 1998 representou o marco inicial da institucionalização dos direitos fundamentais no Brasil[42]. Representando um conjunto de valores orientadores da organização jurídico-social do país, a Constituição Federal valorou a “dignidade da pessoa humana” como o princípio orientador do próprio Estado Democrático de Direito[43], irradiador de seus efeitos em todo o sistema constitucional e infraconstitucional.

Importa observar que, em seu preâmbulo, o texto constitucional vigente assevera que a finalidade da constituição de um Estado Democrático é o de assegurar a todos “o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos[44]”. Logo em seguida, no inciso IV de seu art. 3º, o texto constitucional erige o bem-estar coletivo como um objetivo fundamental republicano[45].

No que diz respeito aos princípios fundamentais que orientam a República em suas relações internacionais, escolheu, a Assembleia Nacional Constituinte, reconhecer desde logo a “prevalência dos direitos humanos” em relação a todos os outros[46], numa clara demonstração de sintonia com os paradigmas constitucionais surgidos com o período pós-guerra.

Sobre a importância dada pelo texto constitucional à proteção dos direitos humanos, com especial enfoque ao valor da dignidade da pessoa humana, inclusive com o reconhecimento dos direitos sociais nesta categoria de direitos, importa conhecer o pensamento de Flávia Piovesan e Patrícia Luciane de Carvalho:

A Constituição de 1988 acolhe a idéia da universalidade dos direitos humanos, na medida em que consagra o valor da dignidade humana, como princípio fundamental do constitucionalismo inaugurado em 1988. O texto constitucional ainda realça que os direitos humanos são temas do legítimo interesse da comunidade internacional, ao ineditamente prever, dentre os princípios a reger o Brasil nas relações internacionais, o princípio da prevalência dos direitos humanos. Trata-se, ademais, da primeira Constituição Brasileira a incluir os direitos internacionais no elenco dos direitos constitucionalmente garantidos.[47]

No art. 6º da Constituição Federal, o constituinte originário elencou, dentre vários outros, a “saúde” como um direito social do indivíduo[48], ainda tendo disposto, de forma enunciativa, no título que trata da “ordem social”, que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”[49].

Feitas estas observações preliminares do que consta no próprio texto constitucional, é possível definir o cenário em que se desenvolve a discussão acerca da tensão entre a obediência às regras internacionais de proteção às patentes de medicamentos frente às necessidades de saúde da população, principalmente no que diz respeito ao direito de acesso dos países menos desenvolvidos aos medicamentos protegidos e ao controle de seus preços.

Como já demonstrado em linhas anteriores, o Acordo TRIPS/ADPIC reconhece a possibilidade de que os estados-membros possam, respeitadas determinadas disposições utilizar-se do objeto da patente sem a autorização de seu titular, o que caracteriza o seu licenciamento compulsório. Estabelecida a referida premissa genérica, coube aos próprios estados regulamentar as condições em que se pode licenciar compulsoriamente a patente, exercitando livremente a sua autonomia legislativa[50].

No Brasil, segundo as disposições da Lei n.º 9.279/96, o licenciamento compulsório da patente tem lugar nos casos em que há uma conduta abusiva de seu titular, assim reconhecida por decisão administrativa ou judicial, nos termos da lei[51], ou quando a situação que reclama a medida extrema for tão grave que caracterize “emergência nacional ou interesse público”, desde que se atendam os seguintes requisitos: (a) a situação seja declarada por ato do Poder Executivo Federal, e (b) o titular da patente ou o seu licenciado não atenda essa necessidade.

Como o Brasil, todos os países unionistas, desenvolvidos ou não, previram em seus ordenamentos jurídicos internos regras que possibilitam o licenciamento compulsório de patentes. No entanto, a despeito de uma frequente utilização desse instituto em outros países como forma de controle de preços de medicamentos, a exemplo das experiências dos Estados Unidos da América e do Canadá[52], no Brasil essa possibilidade vem sendo utilizada de forma ainda bastante acanhada, tendo existido um único caso em toda a nossa história: o licenciamento compulsório da patente do medicamento “efavirenz”, fabricado pelo laboratório Merck Sharp & Dome, por força do Decreto n.º 6.108, de 4 de maio de 2007[53], um dos mais importantes remédios na terapia antiretroviral do HIV/AIDS.

Em situações como a brasileira, em que há o indiscutível interesse público de efetivar o direito à saúde da população de ter tratamento adequado da doença, o que implica, necessariamente, no acesso aos medicamentos mais eficazes, o licenciamento compulsório não deve ser considerado uma violação dos tratados e acordos internacionais em matéria de proteção aos direitos da propriedade industrial, uma vez que a hipótese, nos exatos termos do que fora convencionado na Declaração de Doha, afigura-se na reafirmação do princípio da dignidade da pessoa humana frente aos interesses econômico-patrimoniais dos titulares das patentes de medicamentos, quase sempre empresas transnacionais de grande porte financeiro.

Em um primeiro momento é possível afirmar que a hipótese em discussão – conflito entre dois direitos fundamentais (saúde x propriedade industrial) – revelaria uma aparente antinomia entre normas constitucionais no direito brasileiro. No entanto, é preciso observar que os direitos conferidos ao titular de uma patente não são absolutos, como não o são quaisquer direitos, na medida em que estão condicionados ao atendimento do interesse público. Por outro lado, o princípio da dignidade da pessoa humana, como disposto logo no art. 3º da Constituição Federal, revela-se em fundamento do Estado Democrático de Direito republicano, sobrepondo-se, portanto, ao direito à propriedade.

E em tempos de neoconstitucionalismo e de interpretação conforme a Constituição, é preciso atentar para o fato de que a constitucionalização dos direitos é um fenômeno que implica na harmonização de todo o ordenamento jurídico ao texto constitucional, não sendo mais admitida a visão puramente conceitual e programática das disposições constitucionais. Neste sentido, interessa conhecer a teoria de Alfonso Garcia Figueroa[54]:

O caráter vinculativo da Constituição sugere essencialmente uma característica da cultura jurídica de referência da ideologia dos juristas. Quando a ordem jurídica está constitucionalizada, os juristas consideraram a Constituição como uma verdadeira norma jurídica e não como uma mera declaração programática. O novo paradigma jurídico do constitucionalismo parece ser uma conseqüência dessa circunstância; os juristas aceitam a normatividade da Constituição; a dogmática desenvolve uma teoria do Direito atenta a este fenômeno, e a teoria do Direito influencia um ponto de vista interno (o do jurista) para um novo conceito de direito.[55]

Já que o valor constitucional conformador da proteção à dignidade da pessoa humana é de natureza fundamental, por se tratar de princípio jurídico historicamente objetivado e progressivamente introduzido na consciência jurídica e que encontra recepção expressa no texto constitucional[56], não há que se lhe exigir a mitigação frente ao princípio da proteção aos bens da propriedade industrial, uma vez que esta interpretação contrariaria a correta hermenêutica constitucional proposta pelo constitucionalismo moderno.

Ademais, importa observar, também, que somente se pode falar em cumprimento da função social da propriedade quando o bem material tutelado, neste caso a patente de medicamentos, atenda ao interesse social e ao desenvolvimento tecnológico e econômico do País, na forma do que dispõe o inciso XXIX, do art. 5º da Constituição Federal.

Seguindo este raciocínio, a patente de medicamento de interesse público que dificulta o acesso da população aos seus benefícios, em favor da saúde pública, não cumpre sua função social e não atende ao interesse social, violando flagrantemente o princípio que protege a dignidade da pessoa humana, estando, pois, legitimado sob o prisma normativo o seu licenciamento compulsório, nos termos do art. 71 da Lei n.º 9.279/96.


5.    Conclusão

O conflito entre os interesses dos titulares de patentes de medicamentos, em geral empresas transnacionais provenientes de países desenvolvidos tecnologicamente, e os estados subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, carentes de recursos financeiros e envoltos em problemas de saúde pública que acometem parte considerável de sua população, revela uma colisão de valores que pode ser facilmente solucionada através da correta interpretação hermenêutica dos tratados e convenções internacionais em matéria de proteção à propriedade industrial e as disposições constitucionais vigentes.

O ajustamento de condutas entre os estados-membros que subscreveram a Convenção União de Paris, reforçado e ampliado num passado próximo pelo Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio (TRIPS/ADPIC), revelou um protecionismo exacerbado aos interesses dos países desenvolvidos, ainda que tenham sido ajustados nos referidos tratados internacionais cláusulas de salvaguarda que visavam excepcionar aquelas imposições em casos especiais em que houvesse emergência nacional ou indiscutível interesse público do estado-membro.

A efetividade dessas exigências frente ao legítimo interesse dos estados-membros em ter acesso aos medicamentos considerados essenciais para a saúde pública fez com que os países menos desenvolvidos, incapazes de adquirir tais produtos a preços de mercado, ou até mesmo de licenciá-los diretamente dos titulares de suas patentes, discutissem as exigências do Acordo TRIPS/ADPIC na IV Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), quando se elaborou um dos mais importantes documentos internacionais em matéria de patentes de medicamentos: a Declaração de Doha.

Questionava-se, naquele encontro, se era justo, ou quem sabe até mesmo ético, negar às pessoas portadoras de doenças graves, como o HIV/AIDS, por exemplo, o acesso ao medicamento adequado à sua cura sob o argumento de que impasses econômicos na negociação entre estado e proprietário da patente impediriam o seu fornecimento.

Ao final daquele encontro, um inegável avanço para a efetivação de programas de saúde pública para os povos de países em desenvolvimento, não se alterou em absolutamente nada as disposições contidas no Acordo TRIPS/ADIPC, mas, tão somente, lhe foi dada a interpretação adequada à luz do princípio universal da dignidade da pessoa humana, reafirmando a possibilidade de utilização da salvaguarda prevista naquele mesmo tratado internacional.

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Em meio a essa discussão que envolve interesses econômicos e questões ligadas à bioética, a possibilidade de utilização não autorizada da patente expressamente prevista nos acordos, o licenciamento compulsório, precisa ser analisada sob a ótica da nova ordem constitucional inaugurada com o advento da Constituição Federal de 1988.

  Mesmo diante da ausência de uma configuração dogmática mais firme acerca do conceito de função social da propriedade, o que provoca, muitas vezes, uma subutilização ou utilização equivocada deste instituto, no que diz respeito à propriedade industrial, não há tanta controvérsia, haja vista a redação expressa da parte final do inciso XXIX, do art. 5º da Constituição Federal, que condiciona a efetividade do privilégio temporário ao atendimento do interesse social e do desenvolvimento tecnológico e econômico do País.

Ademais, mesmo que esteja muito clara a definição de função social da propriedade industrial, ainda assim não se deve cometer o equívoco de interpretá-la de forma isolada dos demais dispositivos constitucionais, pois, como já explicado anteriormente, o fundamento republicano da proteção à dignidade da pessoa humana, como princípio normativo balizador de todo o ordenamento jurídico, exerce força de atração em relação aos demais princípios fundamentais. Esse é o pensamento de Ingo Wolfgang Sarlet:

Com efeito, sendo correta a premissa de que os direitos fundamentais constituem – ainda que com intensidade variável – explicitações da dignidade da pessoa, por via de conseqüência e, ao menos em princípio, em cada direito fundamental se faz presente um conteúdo ou, pelo menos, alguma proteção da dignidade da pessoa.

Em suma, o que se pretende sustentar de modo mais enfático é que a dignidade da pessoa humana, na condição de valor (e princípio normativo) fundamental que “atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais”, exige e pressupõe o reconhecimento e proteção dos direitos fundamentais de todas as dimensões (ou gerações, se assim preferirmos). Assim, sem que se reconheçam à pessoa humana os direitos fundamentais que lhe são inerentes, em verdade estar-se-á lhe negando a própria dignidade.[57]

Não pode haver dúvidas de que, na ordem constitucional vigente, o princípio estruturante e conformador da proteção à dignidade da pessoa humana, nitidamente de interesse público e de alcance ilimitado, não pode sofrer mitigação em razão da proteção constitucional conferida aos bens da propriedade industrial, ainda que este também se trate de um princípio constitucional tratado como direito fundamental na Constituição Federal.

Neste aspecto, há de ser observado, também, que para que se possa efetivar o direito de acesso a medicamentos como princípio derivado do direito social e fundamental à saúde, não é necessário harmonizá-lo com o princípio da proteção à propriedade industrial, uma vez que, tendo sido este condicionado ao cumprimento de uma função social - a de atender ao interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País - basta que se utilize o instituto do licenciamento compulsório da patente em razão do interesse nacional, como expressamente previsto no art. 31 do Acordo TRIPS/ADPIC e nos exatos termos do art. 71 da Lei n.º 9.279/96, quando o titular da patente não atender aos reclamos nacionais de interesse social e que envolvam a própria proteção à vida.

Obviamente, não se deve considerar a utilização da patente sem autorização de seu titular como uma regra, até mesmo porque não são todas as situações de saúde pública que caracterizam “emergência nacional ou interesse público”. A utilização indiscriminada da licença compulsória de patentes de medicamentos pode levar o Brasil a sofrer retaliações externas de ordem econômica, o que não ajuda em absolutamente nada o desenvolvimento econômico e tecnológico do País, vez que afetaria todos os demais setores da economia.

Contudo, nos casos em que a situação de saúde do povo brasileiro esteja a mercê de uma doença epidemiológica, ou ate mesmo caracterize um estado de interesse nacional em razão da necessária proteção à vida e à saúde como fundamentos estruturantes do próprio Estado de Direito Democrático, é preciso que não haja tergiversação na utilização da salvaguarda prevista nos tratados internacionais, até mesmo porque, diante de uma colisão de valores constitucionais, a vida, bem jurídico maior de qualquer ordenamento jurídico, jamais poderia ser relegada a um papel secundário em detrimento do interesse patrimonial de um ou de alguns indivíduos ou nações que já usufruem dos benefícios do desenvolvimento.

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Sobre o autor
Fernando Antônio Jambo Muniz Falcão

advogado em Maceió (AL), professor da Universidade Federal de Alagoas (UFAL)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FALCÃO, Fernando Antônio Jambo Muniz. As patentes de medicamentos e a dignidade da pessoa humana como limite ao direito fundamental à propriedade industrial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3878, 12 fev. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26694. Acesso em: 28 mar. 2024.

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