2. O princípio constitucional da igualdade.
Afirmativas, portanto, são chamadas as ações e políticas públicas implementadas para a efetivação do princípio constitucional da igualdade. Este, um dos pilares da democracia moderna, substancia direito fundamental, princípio, objetivo e elemento nuclear da reserva de justiça[36] plasmada na Constituição Federal. A propósito, assevera Joaquim Barbosa Gomes:
“Concebida para o fim específico de abolir os privilégios característicos do ancien régime e para dar cabo às distinções e discriminações baseadas na linhagem, na posição social, essaconcepção de igualdade jurídica, meramente formal, firmou-se como idéia-chave do constitucionalismo que floresceu no século XIX e prosseguiu sua trajetória triunfante por boa parte do século XX.”[37]
Mais do que igualdade perante a lei, trata-se de exigir consideração isonômica na lei, de modo a superar a inconsistência da proclamação meramente formal. Como bem observa Fábio Konder Comparato, “sempre se suspeitou que a abstração isonômica servisse apenas para encobrir as terríveis desigualdades de fortuna e condição material, no seio do povo”.[38]
Carmem Lúcia Antunes Rocha, aliás, assevera que:
“(...) o Direito Constitucional acanhava-se em sua concepção meramente formal do princípio denominado da isonomia, despojado de instrumentos de promoção da igualdade jurídica como vinha até então cuidado. Conclui-se, então, que proibir a discriminação não era bastante para se ter a efetividade do princípio da igualdade jurídica. O que naquele modelo se tinha e se tem é tão-somente o princípio da vedação da desigualdade, ou da invalidade do comportamento por preconceito manifesto ou comprovado (ou comprovável), o que não pode ser considerado o mesmo que garantir a igualdade jurídica”.[39]
Há, hoje, no Brasil, consenso a respeito da necessidade de uma concepção substantiva do princípio da igualdade, implicando olhar atento sobre as diferentes condições reais que apartam os seres humanos na concretude de suas existências, de sorte a exigir quesituações dessemelhantes sejam tratadas, por meio de políticas públicas especialmente concebidas, de forma adequada, tudo para a superação das heranças trágicas que, desgraçadamente, entre nós abraçam a muitos. Concorda-se, portanto, que do Estado cabe exigir mais do que a satisfação formal do direito fundamental ou a ação, omissiva ou comissiva, para prevenir ou a reprimir inaceitável discriminação. É dever do Estado atuar positivamente para a redução das desigualdades sociais.
Cumpre, na altura, lembrar que Celso Antônio Bandeira de Mello formula teoria que possibilita observar os casos em que a atuação do Estado para a equalização das desigualdades é pertinente. Observa o jurista que existem três tópicos a serem considerados no momento do reconhecimento das diferenciações:
“a) a primeira diz com o elemento tomado como fator de desigualação; b) a segunda reporta-se à correlação lógica abstrata existente entre o fator erigido em critério de descrímen e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico diversificado; c) a terceira atina à consonância desta correlação lógica com os interesses absorvidos no sistema constitucional e destarte juridicizados.”[40]
Deve-se, diante do exposto, investigar o critério adotado como discriminador, se o mesmo atende a uma justificativa racional, para a edição de tratamento jurídico específico para o caso objeto da desigualdade e, ainda, observar se não ocorre qualquer conflito com os axiomas dispostos na Lei Fundamental.[41]
Por outro lado, sustenta Joaquim Barbosa Gomes:
“Como se sabe, a ideia de neutralidade estatal tem-se revelado um formidável fracasso, especialmente nas sociedades que durante muitos séculos mantiveram certos grupos ou categorias de pessoas em posição de subjugação legal, de inferioridade legitimada pela lei, em suma, em países com longo passado de escravidão. Nesses países, apesar da existência de inumeráveis dispositivos constitucionais e legais, muitos deles promulgados com o objetivo expresso de fazer cessar o status de inferioridade em que se encontravam os grupos sociais historicamente discriminados, passaram-se os anos (e séculos) e a situação desses grupos marginalizados pouco e quase nada mudou. Esse mesmo fenômeno de inefetividade constitucional ocorre igualmente no que diz respeito ao status da mulher na sociedade. Tal estado de coisas conduz a duas constatações indisputáveis. Em primeiro lugar, a certeza de que proclamações jurídicas por si sós, revistam elas a forma de dispositivos constitucionais ou normas de inferior hierarquia normativa, não são suficientes para reverter um quadro social que finca âncoras na tradição cultural de cada país, no imaginário coletivo, em suma, na percepção generalizada de que a uns devem ser reservados papéis indicativos do status de inferioridade, de subordinação. Em segundo lugar, o reconhecimento de que a reversão de um tal quadro só será viável com a renúncia do Estado à sua histórica neutralidade em questões sociais, devendo assumir, ao contrário, uma posição ativa.”[42]
Com efeito, o constitucionalismo emancipatório, comprometido com a dignidade da pessoa humana, propugna por uma fórmula jurídica do princípio da igualdade suficiente para, através de uma política de desigualação positiva, promover a igualação efetiva.
Neste ponto, importa apontar possível incompreensão relativa ao art. 3º, IV da CF que prevê como objetivo fundamental da República a promoção do bem de todos, sem qualquer forma de discriminação. Trata o referido dispositivo constitucional de garantia da igualdade, que se conecta ao reconhecimento de todas as pessoas como sujeitos de direitos, não tolerando, no ordenamento jurídico brasileiro, discriminações injustificadas. O mesmo pode ser depreendido da leitura do art. 5º, XLI, que trata da punição de discriminações que violem os direitos e garantias fundamentais. Ou seja, a previsão de punição para o ato discriminatório e preconceituoso é reflexo de uma das dimensões da igualdade, de modo que, sendo todos iguais perante a lei, no contexto da sua aplicação não pode haver discriminação sob pena de violação direta da Constituição. Contudo, a dimensão da igualdade referida não é suficiente para o reconhecimento e emancipação de grupos com diferenças e especificidades circunscritas. Aqui emerge a exigência da igualdade material, como observa Luiza Cristina Fonseca Frischeisen:
“E somente ações políticas, aplicadas ou reguladas pelo Estado, em suas diversas esferas da administração, podem garantir a efetividade da igualdade material, corrigindo desigualdades. E é neste contexto que se situam as políticas públicas que estabelecem discriminações positivas, as ações afirmativas.”[43]
Nesse intento de concretização do princípio da igualdade substancial, a ação afirmativa, verdadeiro modo de discriminação positiva ou reversa, apresenta-se como “o mais ousado e inovador experimento constitucional concebido pelo Direito no século XX, como instrumento de promoção da igualdade e de combate às mais diversas formas de discriminação”.[44] Nos termos do magistério de Carmem Lúcia Antunes Rocha, “a ação afirmativa emergiu como a face construtiva e construtora do novo conteúdo a ser buscado no princípio da igualdade jurídica”.[45]
Ora, esse conteúdo deve ser desenhado com os insumos residentes na Lei Fundamental. O artigo 1º, inciso III, da Constituição, erige como fundamento da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana. O artigo 3º, inciso IX, constitui, como um dos objetivos fundamentais da República, “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
Além disso, o caput do artigo 5º estabelece que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”.
Analisando os apontados dispositivos constitucionais, Carmem Lúcia Antunes Rocha, com perspicácia, ressalta:
“(...) não apenas ali se reiterou o princípio da igualdade jurídica, senão que se refez o seu paradigma, o seu conteúdo se renovou e se tingiu de novas cores, tomou novas formas, construiu-se, constitucionalmente, de modo inédito.A passagem do conteúdo inerte a uma concepção dinâmica do princípio é patente em toda estrutura normativa do sistema constitucional brasileiro fundado em 1988. A ação afirmativa – está inserida no princípio da igualdade jurídica concebido pela Lei Fundamental do Brasil, conforme se pode comprovar de seu exame mais singelo.(...) O princípio da igualdade resplandece sobre quase todos os outros acolhidos como pilastras do edifício normativo fundamental alicerçado. É guia não apenas de regras, mas de quase todos os outros princípios que informam e conformam o modelo constitucional positivado, sendo guiado apenas por um, ao qual se dá a servir: o da dignidade da pessoa humana (art. 1o, III, da Constituição da República).(...) Se a igualdade jurídica fosse apenas a vedação de tratamentos discriminatórios, o princípio seria absolutamente insuficiente para possibilitar a realização dos objetivos fundamentais da Repúblicaconstitucionalmente definidos.(...) Somente a ação afirmativa, vale dizer, a atuação transformadora, igualadora pelo e segundo o Direito possibilita a verdade do princípio da igualdade, para se chegar à verdade do princípio da igualdade, para se chegar à igualdade que a Constituição Brasileira garante como direito fundamental de todos.”[46]
Como se vê, o princípio da igualdade, previsto no caput do artigo 5o, reclama a redução das desigualdades. Razão pela qual não basta que o Estado proíba a discriminação ou se abstenha de discriminar.Importa, também, atuar positivamente no sentido da redução das desigualdades, até porque a mera vedação de tratamentos discriminatórios, conforme já acentuado, não tem o condão de realizar os objetivos fundamentais da República constitucionalmente definidos.
Destarte, é indubitável que a Constituição de 1988 operou a transformação da igualdade, implicando a passagem de um conceito constitucional estático e negativo para outro dinâmico e positivo, de sorte que o princípio constitucional supõe também satisfação de obrigação positiva cuja expressão democrática mais atualizada é a ação afirmativa.
Nesta esteira, convém citar outra vez Carmem Lúcia Antunes Rocha para quem:
“(...) a ação afirmativa constitui, portanto, o conteúdo próprio e essencial do princípio da igualdade jurídica tal como pensado e aplicado, democraticamente, no Direito Constitucional Contemporâneo. (...) é um dos instrumentos possibilitadores da superação do problema do não cidadão, daquele que não participa política e democraticamente como lhe é na letra da lei fundamental assegurado, porque não se lhe reconhecem os meios efetivos para se igualar com os demais. Cidadania não combina com desigualdade. República não combina com preconceito. Democracia não combina com discriminação.”[47]
É irrefutável, portanto, que a Constituição vigente conferiu novo conteúdo ao princípio da igualdade, autorizando a adoção de ações afirmativas quando necessárias. Convém realçar que a ação afirmativa– na terminologia europeia discriminação positiva– surgiu nos Estados Unidos como política pública ou privada que visa não só à concretização do princípio da igualdade material, mas também à mitigação e neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de nacionalidade.
Nas palavras de Joaquim Barbosa Gomes, a discriminação positiva ou ação afirmativa:
“(...) consiste em dar tratamento preferencial a um grupo historicamente discriminado, de modo a inseri-lo no ‘mainstream’, impedindo assim que o princípio da igualdade formal, expresso em leis neutras que não levam em consideração os fatores de natureza cultural e histórica, funcione na prática como mecanismo perpetuador da desigualdade. Em suma, cuida-se de dar tratamento preferencial, favorável, àqueles que historicamente foram marginalizados, de sorte a colocá-los em um nível de competição similar ao daqueles que historicamente se beneficiaram da sua exclusão. Essa modalidade de discriminação, de caráter redistributivo e restaurador, destinada a corrigir uma situação de desigualdade historicamente comprovada, em geral se justifica pela sua natureza temporária e pelos objetivos sociais que se visa com ela a atingir.”[48]
Saliente-se, por oportuno, que as ações afirmativas substanciam medidas excepcionais, temporárias, adequadas e, por isso, suficientes (e, então, proporcionais) para a garantiada igualação almejada com a ruptura dos preconceitos ou para a superação da discriminação.
Aliás, como bem ressalta Fábio Konder Comparato, a acusação geral feita às affirmative actions “é a de que esse tipo de remédio jurídico, quando admitido como algo de normal e rotineiro e não como medida excepcional, acaba por instaurar uma discriminação inversa, isto é, da minoria contra a maioria, numa negação prática da igualdade perante a lei”.[49]
Adverte Carmem Lúcia Antunes Rocha que não se pretende com a ação afirmativa dar azo a novas discriminações, agora em desfavor das maiorias; os planos e programas de discriminação positiva devem, portanto, primar sempre pela adoção e fixação de percentuais mínimos garantidores da presença das minorias que por eles se buscavam igualar, com o objetivo de romper os preconceitos contra elas ou pelo menos de propiciar as condições para sua superação em face da convivência juridicamente obrigada.[50]
Entre as três grandes nações ocidentais (Estados Unidos, África do Sul, Brasil) marcadas pela agudeza das desigualdades sociais fundadas no fator racial, o Brasil não é o país que apresenta menos desigualdades.
Diante da situação, é não só justificável, mas exigível, a implementação de ações afirmativas (temporárias e proporcionais), não implicando necessariamente a adoção de cotas. Tais mecanismos, reitere-se, indiscutivelmente contribuem, quando bem geridos, para mitigar a desigualdade escandalosa e superar o apartheid informal ainda encontrável na sociedade brasileira, tudo conforme exige a Constituição compreendida como reserva de justiça.[51]