Recentemente, o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo teve a oportunidade de apreciar questão bastante interessante, envolvendo o custeio, por tempo indeterminado, de tratamento para dependentes químicos (disponível em: http://www.tjsp.jus.br/Institucional/CanaisComunicacao/Noticias/Noticia.aspx?Id=15866).
O acórdão prolatado pela Corte paulista é mais um exemplo típico da chamada eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Tradicionalmente, os direitos fundamentais prestam-se a limitar o poder do Estado, evitando que os indivíduos sofram abusos por parte do Poder Público. No entanto, há situações em que os particulares também poderão violar direitos fundamentais, especialmente com fundamento no arcaico e leonino absolutismo da autonomia privada. Com o advento da Carta Política em vigor, isso tem se tornado inadmissível, fazendo com que o Estado intervenha para equalizar as relações dos indivíduos entre si, ao que se dá o nome de dirigismo estatal.
O direito à saúde está intimamente relacionado à vida, prevista no caput do art. 5º, da Constituição Federal de 1988 como um direito fundamental. É um direito de primeira grandeza, intrínseco à dignidade humana, que se caracteriza por ser inalienável, insubstituível, intransferível, enfim, por compor os atributos mais caros do ser humano.
Ainda conforme expressa previsão constitucional, a saúde é um dever do Estado, isto é, uma prestação positiva a ser adimplida pelo Poder Público (art. 196), cabendo ao Sistema Único de Saúde (SUS) desenvolver as ações necessárias para que esse direito seja garantido a toda população, indistintamente, em razão do princípio da universalidade de cobertura. Isso significa que qualquer cidadão, rico, pobre, branco, negro, índio, homossexual, heterossexual, enfim, qualquer pessoa, indistintamente, tem direito a se utilizar do SUS, caso queira.
Nada obstante, a Carta Fundamental autoriza ao setor privado a prestação de assistência à saúde, cuja previsão consta do art. 199 da CF/88. Contudo, advirta-se que a assistência privada não substitui a ação estatal, possuindo caráter suplementar (o texto constitucional emprega, equivocadamente o termo “complementar”), conforme dispõe o § 1º do art. 199. Eis a literalidade dos dispositivos:
Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.
§ 1º - As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.
Como se sabe, no âmbito privado essa prestação é desempenhada pelos seguros de assistência à saúde, popularmente conhecidos como planos de saúde. Enquanto seguradoras, sujeitam-se às regras do Código de Defesa do Consumidor, amoldando-se no conceito de fornecedor, especificamente como prestadoras de serviço (art. 3º, § 2º, CDC). Notem os preceptivos:
Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
§ 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista (destaque nosso).
Sempre que um produto ou serviço é colocado à disposição do consumidor, este cria uma expectativa legítima de que fruirá o bem de consumo sem dificuldades. No caso dos planos de saúde, quem contrata crê que estará devidamente amparado, caso sobrevenha alguma ameaça à sua saúde; o consumidor busca a melhoria de sua qualidade de vida. Sendo assim, avulta-se o dever de solidariedade por parte do fornecedor nas avenças dessa natureza, pois não se pode distanciar da ideia de que a saúde é o bem jurídico indispensável à manutenção da vida, e esta é o bem supremo de todos. Eis a função social do contrato de plano de saúde.
A título estatístico, hoje no Brasil existem, aproximadamente, 44 milhões de usuários de planos de saúde, e que vêm sofrendo uma diversidade de abusos por parte das respectivas operadoras, sendo que uma das mais comuns é exatamente a negativa de cobertura do atendimento. Para o juiz de direito Luiz Mário Moutinho, do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco, a negativa de cobertura é quase um homicídio, na medida em que, omitir-se quando a saúde de outrem encontra-se fragilizada, seria o mesmo que aceitar matá-la, já que, como dito, o direito à saúde é indissociável do direito à vida. Os planos de saúde simplesmente se esquecem de que do outro lado da relação jurídica há uma pessoa. Mas, em razão da patrimonialidade que envolve o contrato, tratam-na como uma coisa.
Como bem ressaltado pelo eminente relator do acórdão, o usuário do plano de saúde contrata o seguro objetivando receber atendimento até que sobrevenha a cura; quer ter sua saúde restabelecida integralmente. Assim, por exemplo, são abusivas as cláusulas contratuais que limitam o tempo de internação, matéria que o STJ, a propósito, decidiu recentemente (o destaque é nosso):
Quarta Turma - SEGURO DE SAÚDE. CARÊNCIA. ATENDIMENTO EMERGENCIAL. SITUAÇÃO-LIMITE.
A questão consiste em saber se, em seguro de assistência à saúde, é possível a seguradora invocar prazo de carência contratual para restringir o custeio dos procedimentos de emergência de que depende o beneficiário do seguro ao período concernente às doze primeiras horas de atendimento médico-hospitalar, a contar da internação. No caso, o recorrente ajuizou ação de obrigação de fazer em face da seguradora ora recorrida, sustentando ser beneficiário do seguro de assistência à saúde firmado com a recorrida. Aduz que, ao ser atendido no hospital, foi diagnosticada a existência de tumor cerebral maligno, com quadro médico grave e risco de morte, razão pela qual foi imediatamente internado para posterior intervenção neurocirúrgica. Apesar do caráter emergencial do exame de ressonância magnética nuclear, foi negada, pela recorrida, a sua cobertura ao argumento de que o contrato do recorrente estaria sujeito ao prazo de carência de 180 dias a partir da adesão ao seguro. E que, diante dessa situação, foi sua genitora quem custeou os exames. O juiz a quo julgou procedentes os pedidos formulados na inicial, obrigando a recorrida a custear todos os procedimentos necessários até a cessação e extirpação da moléstia, sob pena de arcar com multa diária de R$ 1 mil, determinando, também, o reembolso dos valores despendidos. Interposta apelação, o tribunal de justiça deu parcial provimento ao recurso da recorrida para limitar o período da cobertura. O recorrente interpôs recurso especial, que foi admitido. A Turma entendeu que, diante do disposto no art. 12 da Lei n. 9.656/1998, é possível a estipulação contratual de prazo de carência, todavia o inciso V, "c", do mesmo dispositivo estabelece o prazo máximo de 24 horas para cobertura dos casos de urgência e emergência. Os contratos de seguro e assistência à saúde são pactos de cooperação e solidariedade, cativos e de longa duração, informados pelos princípios consumeristas da boa-fé objetiva e função social, tendo o objetivo precípuo de assegurar ao consumidor, no que tange aos riscos inerentes à saúde, tratamento e segurança para amparo necessário de seu parceiro contratual. Os artigos 18, § 6º, III, e 20, § 2º, do CDC preveem a necessidade da adequação dos produtos e serviços à legítima expectativa do consumidor de, em caso de pactuação de contrato oneroso de seguro de assistência à saúde, não ficar desamparado no que tange a procedimento médico premente e essencial à preservação de sua vida. Como se trata de situação limite em que há nítida possibilidade de violação de direito fundamental à vida, não é possível a seguradora invocar prazo de carência contratual para restringir o custeio dos procedimentos de emergência relativos ao tratamento de tumor cerebral que aflige o beneficiário do seguro. Precedente citado do STF: RE 201819, DJ 27/10/2006; do STJ: REsp 590.336-SC, DJ 21/2/2005, e REsp 466.667-SP, DJ 17/12/2007. REsp 962.980-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 13/3/2012.
Assim sendo, bastante acertadas são as decisões judiciais em que se veda a invocação do prazo de carência nos contratos de plano de saúde, quando o usuário do serviço encontra-se em situação que reclama atendimento de urgência, pois, nada obstante a legalidade de cláusulas que estabeleçam tais prazos para o exercício dos direitos conferidos por contratos dessa natureza, no confronto entre a autonomia privada e os direitos à vida e à saúde, proponderam estes últimos.
Quanto aos danos morais alegados, a Câmara julgadora concluiu no sentido de sua não ocorrência. Nada obstante, advirta-se que, eventualmente, o descumprimento de uma obrigação contratual será capaz de causar danos de natureza extrapatrimonial à parte prejudicada pelo inadimplemento. Isso ocorrerá quando a falta de um dos contratantes violar os direitos fundamentais constitucionalmente consagrados. A esse respeito, foi aprovado na V Jornada de Direito Civil – CJF/STJ o Enunciado nº 411, assim redigido:
“Art. 186. O descumprimento de contrato pode gerar dano moral quando envolver valor fundamental protegido pela Constituição Federal de 1988.”
Dessarte, nada obsta que, em situação semelhante, o magistrado entenda que a negativa de cobertura pelo tempo necessário seja capaz de causar dano moral, não só ao usuário (dano moral direto), como também a seus familiares (dano moral indireto ou em ricochete).