RESUMO: A saúde consiste em um direito social fundamental garantido a todos, cabendo ao Estado protegê-lo mediante políticas sociais e econômicas. No entanto, há casos em que a intervenção do poder judiciário se faz necessária para garantia deste direito, razão pela qual a jurisprudência de nossos tribunais, em especial do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, vem estabelecendo diversos ditames nas ações em que se pleiteia o fornecimento de medicamento por parte do poder público.
Palavras-chave: concessão - medicamento – jurisprudência.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Considerações sobre o direito constitucional à saúde e o dever do Estado. 3. Responsabilidade solidária da União, dos estados e dos municípios em demandas judiciais. 4. Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS. 5. Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: fornecimento pelo Poder Judiciário de medicamentos não registrados pela ANVISA. 6. Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: fornecimento de medicamentos de alto custo não registrados na lista do SUS. 7. Ausência de violação ao princípio da separação dos poderes. 8. Conclusão. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Nos últimos anos, o excesso de judicialização da saúde vem apresentando crescimento exponencial. A ineficiência estatal em proteger o direito à saúde e a inexistência de políticas públicas efetivas agravam, ainda mais, esse problema.
A ausência de critérios bem definidos pela legislação impõe ao poder judiciário, quando demandado, a definição de diretrizes para fornecimento de medicamentos pelo Estado, o que será observado neste trabalho.
2. CONSIDERAÇÕES SOBRE O DIREITO CONSTITUCIONAL À SAÚDE E O DEVER DO ESTADO
A saúde, de acordo com a Constituição da República, é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (Artigo 196). Trata-se, portanto, de um direito social (art. 6º, caput, da CF) público subjetivo conferido a todos os cidadãos.
A Constituição Federal, em seu artigo 198, caput e incisos de I a III, ainda define que as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: descentralização, com direção única em cada esfera de governo; atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; e participação da comunidade.
Nota-se, pois, que o caráter programático da regra constitucional supramencionada, de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. (STF, RE 273.834-4/RS, Segunda Turma. Rel. Min. Celso de Mello, DJ 12/09/2000).
O direito à saúde, de elevada proteção constitucional, integra o núcleo mínimo existencial e, por isso, é imprescindível à efetividade da dignidade da pessoa humana, que constitui um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, inciso III, da CF/88).
Ana Paula de Barcelos[1] leciona que uma proposta de concretização do mínimo existencial, tendo em conta a ordem constitucional brasileira, deverá incluir os direitos à educação fundamental, à saúde básica, à assistência no caso de necessidade e ao acesso à justiça.
A Lei 8.080/90, em seu artigo 4º, conceitua que o conjunto de ações e serviços de saúde prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, constitui o Sistema Único de Saúde (SUS).
Ainda no plano infraconstitucional, a Lei 8.080/90 diz que a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício (artigo 2º). Por esse motivo, não há discricionariedade do administrador frente ao direito à saúde.
No plano de proteção internacional, a Constituição da Organização Mundial da Saúde, de 1946, ratificada pelo Brasil (Decreto 26.042, de 17 de dezembro de 1948, pelo presidente Eurico Gaspar Dutra[2], disciplina que gozar do melhor estado de saúde que é possível atingir constitui um dos direitos fundamentais de todo o ser humano, sem distinção de raça, de religião, de credo político, de condição econômica ou social.
Dessa forma, evidencia-se que a saúde é um direito constitucional indissociável do direito à vida e, nesse contexto, cabe ao Estado o dever de tutelá-la.
3. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DA UNIÃO, DOS ESTADOS E DOS MUNICÍPIOS EM DEMANDAS JUDICIAIS
Considerando a relevância do direito constitucional à saúde, como corolário do direito à vida, a ausência de sua proteção manifesta o interesse de agir para busca de sua tutela com amparo do poder judiciário.
Por vontade constitucional, há solidariedade passiva da União, do Estado e do Município, em que pese ao gerenciamento do Sistema Único de Saúde:
Art. 198 [...]
§ 1º O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes.
Destarte, considerando que o funcionamento do sistema único de saúde é de incumbência de todos os entes da Federação, quaisquer deles têm legitimidade para figurar no polo passivo da ação em que se postule o fornecimento de medicamento. Conquanto a responsabilidade seja solidária, o litisconsórcio é facultativo, cabendo à parte demandante a escolha daquele ente contra quem pretende litigar.
Nesse diapasão:
[...] 3. Ainda no tocante à responsabilidade da União pelo fornecimento dos medicamentos pleiteados, o entendimento desta Corte Superior firmou-se no sentido de que a União, Estados, Distrito Federal e Municípios são solidariamente responsáveis pelo fornecimento de medicamentos àqueles que necessitam de tratamento médico, o que autoriza o reconhecimento da legitimidade passiva ad causam dos referidos entes para figurar nas demandas sobre o tema. [...] (STJ, AGARESP 316095, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJ 22/05/2013).
[...] 3. O recebimento de medicamentos pelo Estado é direito fundamental, podendo o requerente pleiteá-los de qualquer um dos entes federativos, desde que demonstrada sua necessidade e a impossibilidade de custeá-los com recursos próprios [...] (STF, RE 607381-AgR, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, DJ 17/6/2011)
[...] 2. A solidariedade não induz litisconsórcio passivo necessário, mas facultativo, cabendo à parte autora a escolha daquele contra quem deseja litigar, sem obrigatoriedade de inclusão dos demais. Se a parte escolhe litigar somente contra um ou dois dos entes federados, não há a obrigatoriedade de inclusão dos demais [...] (TRF4, AG 5008919-21.2012.404.0000, Quarta Turma, Relator p/ Acórdão Luís Alberto D'Azevedo Aurvalle, DJ 24/07/2012).
Visto que os entes da Federação são solidariamente responsáveis, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro (STF, Plenário, RE 855178 ED/SE, Rel. orig. Min. Luiz Fux, red. p/ o ac. Min. Edson Fachin, DJ 23/05/2019).
Destarte, não há controvérsia de que os entes da Federação são solidariamente responsáveis pelo fornecimento de medicamentos àqueles que necessitam de tratamento médico, de modo que, ao propor uma demanda judicial, poderá o requerente incluir no polo passivo da ação qualquer um deles ou, até mesmo, todos.
4. JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA: MEDICAMENTOS NÃO INCORPORADOS EM ATOS NORMATIVOS DO SUS
Observamos, anteriormente, o dever do Estado e a solidariedade dos entes federativos no que tange à concessão de medicamentos.
Entretanto, o Superior Tribunal de Justiça, em sede de recurso repetitivo (artigo 1.036 do CPC), fixou alguns requisitos para que o Poder Judiciário determine o fornecimento de remédios. A tese afetada pelo STJ, nos autos do Recurso Especial n. 1.657.156-RJ, de relatoria do Ministro Benedito Gonçalves, foi a seguinte: obrigatoriedade do poder público de fornecer medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS (Tema 106).
O primeiro requisito estabelecido pela Corte é a comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo Sistema Único de Saúde.
A comprovação da imprescindibilidade deve observar o Enunciado n. 15 da “I Jornada de Direito da Saúde do Conselho Nacional de Justiça”, realizada em 15 de maio de 2014, em São Paulo, que assim diz:
ENUNCIADO 15 - As prescrições médicas devem consignar o tratamento necessário ou o medicamento indicado, contendo a sua Denominação Comum Brasileira (DCB) ou, na sua falta, a Denominação Comum Internacional (DCI), o seu princípio ativo, seguido, quando pertinente, do nome de referência da substância, posologia, modo de administração e período de tempo do tratamento e, em caso de prescrição diversa daquela expressamente informada por seu fabricante, a justificativa técnica[3].
O segundo requisito é o seguinte: incapacidade financeira do paciente de arcar com o custo do medicamento prescrito. Necessário esclarecer que não se exige do paciente prova da pobreza ou miserabilidade, mas sim, que demostre sua incapacidade de arcar com as despesas para aquisição do medicamento prescrito.
Por derradeiro, estabelece o Superior Tribunal de Justiça um terceiro requisito, a saber: existência de registro do medicamento na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).
O requisito ora mencionado se trata de uma premissa legal prevista na Lei 8.080/91:
Art. 19-T. São vedados, em todas as esferas de gestão do SUS:
(...)
II - a dispensação, o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento e produto, nacional ou importado, sem registro na Anvisa.
O Supremo Tribunal Federal, no RE 657.718, apreciou a matéria referente a ausência de registro do medicamento na ANVISA, o que será abordado posteriormente neste trabalho.
5. JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: FORNECIMENTO PELO PODER PÚBLICO DE MEDICAMENTOS NÃO REGISTRADOS PELA ANVISA
Anteriormente, vimos que o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso Especial n. 1.657.156-RJ, reconheceu, entre os requisitos para que o Poder Judiciário determine o fornecimento de medicamentos, a existência de registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).
Todavia, enfrentando a matéria, a Suprema Corte, ao julgar o RE 657.718, em 22/05/2019, reconheceu, excepcionalmente, a possibilidade de concessão de medicamentos sem registro na ANVISA, condicionando tal direito a alguns requisitos, a seguir destacados.
O primeiro deles é de que o Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais. Um exemplo de medicamento experimental é a fosfoetanolamina sintética, conhecida como “pílula do câncer”. A esse respeito, também vale lembrar, o STF reconheceu, em decisão cautelar proferida nos autos da ADI 5501 MC/DF, cujo relator é o Ministro Marco Aurélio, a inconstitucionalidade da Lei 13.269/2016, que autorizou o uso da fosfoetanolamina por pacientes diagnosticados com neoplasia maligna.
A segunda premissa estabelecida pelo STF foi de que, a rigor, a ausência de registro na ANVISA impede o fornecimento de medicamento por decisão judicial.
O Ministro Luís Roberto Barroso, em seu voto, destacou que: “O registro na ANVISA constitui proteção à saúde pública, atestando a eficácia, segurança e qualidade dos fármacos comercializados no país, além de garantir o devido controle de preços”.
Não obstante, em regra, não ser possível a concessão de medicamento sem registro na ANVISA, a Suprema Corte excepcionou tal diretriz, asseverando:
É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da ANVISA em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei nº 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos:
I - a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras);
II - a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e
III - a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil
Destarte, pode-se concluir que, via de regra, o fornecimento, pelo poder judiciário, de medicamento não registrado pela ANVISA é vedado, admitindo-se o fornecimento desde que preenchidos os requisitos supramencionados.
Salienta-se que a decisão do Supremo Tribunal Federal é condizente com os ditames da Lei 6.360/76, que dispõe sobre a vigilância sanitária, e que, em seu artigo 16, institui um complexo procedimento para registro de novos medicamentos no Brasil. Disciplina o referido dispositivo:
Art. 16. O registro de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos, dadas as suas características sanitárias, medicamentosas ou profiláticas, curativas, paliativas, ou mesmo para fins de diagnóstico, fica sujeito, além do atendimento das exigências próprias, aos seguintes requisitos específicos:
I - que o produto obedeça ao disposto no artigo 5º, e seus parágrafos.
II - que o produto, através de comprovação científica e de análise, seja reconhecido como seguro e eficaz para o uso a que se propõe, e possua a identidade, atividade, qualidade, pureza e inocuidade necessárias;
III - tratando-se de produto novo, que sejam oferecidas amplas informações sobre a sua composição e o seu uso, para avaliação de sua natureza e determinação do grau de segurança e eficácia necessários;
IV - apresentação, quando solicitada, de amostra para análises e experiências que sejam julgadas necessárias pelos órgãos competentes do Ministério da Saúde;
V - quando houver substância nova na composição do medicamento, entrega de amostra acompanhada dos dados químicos e físico-químicos que a identifiquem;
VI - quando se trate de droga ou medicamento cuja elaboração necessite de aparelhagem técnica e específica, prova de que o estabelecimento se acha devidamente equipado e mantém pessoal habilitado ao seu manuseio ou contrato com terceiros para essa finalidade.
VII - a apresentação das seguintes informações econômicas:
a) o preço do produto praticado pela empresa em outros países;
b) o valor de aquisição da substância ativa do produto;
c) o custo do tratamento por paciente com o uso do produto;
d) o número potencial de pacientes a ser tratado;
e) a lista de preço que pretende praticar no mercado interno, com a discriminação de sua carga tributária;
f) a discriminação da proposta de comercialização do produto, incluindo os gastos previstos com o esforço de venda e com publicidade e propaganda;
g) o preço do produto que sofreu modificação, quando se tratar de mudança de fórmula ou de forma; e
h) a relação de todos os produtos substitutos existentes no mercado, acompanhada de seus respectivos preços.
Por fim, decidiu o STF, no mesmo processo, que, não obstante a solidariedade dos entes federativos oportunamente demonstrada, as ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na ANVISA deverão ser necessariamente proposta em face da União. Isso se dá tendo em vista que o pressuposto básico da obrigação do Estado é a mora da agência federal (ANVISA).