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O caso dos catadores de materiais recicláveis:

A angústia de quem pretende um cooperativismo verdadeiro

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Demonstra-se por que a Lei 12.690 sucumbe à lógica capitalista, inviabilizando, na prática, o modelo socialista de produção que pretende fomentar.

Índice: Introdução. 1. A lei 12.690 e o uso conservador da linguagem jurídica. 2. Capitalismo e Solidariedade no Direito Contemporâneo. 3. A lei 12.690 e a lógica do capital. 4. A Cooperativa dos Catadores de Materiais Recicláveis: uma realidade possível. Conclusão. Referencias bibliográficas


Introdução

Recentemente editada, a lei 12.690, que regula cooperativas de trabalho, divide-as em duas espécies: cooperativas de produção e cooperativas de serviço. É o artigo 4º dessa lei que as define. Dispõe que a cooperativa de trabalho pode ser:

I - de produção, quando constituída por sócios que contribuem com trabalho para a produção em comum de bens e a cooperativa detém, a qualquer título, os meios de produção; e

II - de serviço, quando constituída por sócios para a prestação de serviços especializados a terceiros, sem a presença dos pressupostos da relação de emprego.

Este trabalho tem por objetivo discutir a inviabilidade de desenvolvimento de um sistema efetivamente cooperativo, nos termos propostos pela nova lei. Tal análise será realizada desde a perspectiva de uma cooperativa que se pretende real e que enfrenta sérias dificuldades em manter-se no mercado, em razão do quadro legislativo vigente.

Antes de falarmos especificamente da realidade da cooperativa dos catadores de materiais recicláveis, tentaremos demonstrar porque a lei 12.690 sucumbe à lógica capitalista, inviabilizando, na prática, o modelo socialista de produção que pretende fomentar.


1. A lei 12.690 e o uso conservador da linguagem jurídica

A lei 12.690 é a institucionalização da precarização do trabalho mediante adoção de princípios divorciados de seu campo de aplicação.

A iniciativa e condução do diálogo que resultou no texto aprovado, foi da Secretaria Nacional da Economia Solidária - SENAES. A ideia é também capitaneada pelo Partido Comunista do Brasil, que em sua página inicial apresenta-se como Partido do Socialismo[1].

Há, inclusive, obra lançada pelo economista e pesquisador Rilton Primo, da Coordenação Executiva da SETRE/SESOL, que busca uma “avaliação da consistência da estratégia transversal das políticas públicas de apoio aos empreendimentos da economia solidária que têm atuado na coleta seletiva”[2].

A preocupação daqueles que pretendem a superação de um sistema excludente e sectário como o atual, baseado no lucro e na exploração da força de trabalho, é exatamente a mesma que a nossa.

O texto legal em exame, porém, utiliza o discurso jurídico em seu máximo caráter conservador, através de uma falácia que tem se tornado comum no Direito contemporâneo: parece proteger quando em realidade inviabiliza o cooperativismo.

A escolha de um exemplo prático, para examinar a lei das cooperativas a partir dessa realidade, tem exatamente o objetivo de tornar ainda mais clara a diferença entre uma atividade cooperada e o que se denomina cooperativa de serviços, verdadeira contradição em termos.

Se um empreendimento é constituído “para a prestação de serviços especializados a terceiros”, o que temos é necessariamente uma típica relação de emprego, mal disfarçada, na prática atual, sob o manto do que se convencionou denominar terceirização.

O fato de a lei precisar referir que essa prestação de serviços especializados a terceiros será “sem a presença dos pressupostos da relação de emprego” já nos permite perceber a dimensão da fraude institucionalizada.

A inclusão no texto da CLT, em 1994, de dispositivo que expressamente determina a inexistência de vínculo de emprego entre os associados de uma cooperativa e o tomador de seus serviços (parágrafo único do art. 442) resultou em impressionante proliferação de cooperativas destinadas à intermediação fraudulenta de mão de obra.

Agora, a lei 12.690 amplia consideravelmente não apenas os riscos de fraude na intermediação de trabalhadores, como também a inviabilidade de que uma cooperativa verdadeira mantenha-se no mercado.

A prática de uso da linguagem jurídica contra os fatos, como um manto mágico capaz de alterar a realidade, não constitui novidade. O Direito tem caráter flagrantemente conservador. Serve à manutenção do Estado Liberal.

Exatamente por isso, dificilmente escapa das armadilhas criadas pela própria linguagem, para absorver fenômenos com potencial revolucionário, transformando-os em apenas mais uma experiência capitalista.


2. Capitalismo e Solidariedade no Direito Contemporâneo

O que caracteriza a era moderna capitalista, para Marx, é o movimento constante (devir) do capital. O movimento de ampliação do valor no próprio valor, de forma sempre contraditória. O capital, pra Marx, é o sujeito-substância, que condiciona e determina as atividades dos agentes sociais. Por sua vez, o trabalho abstrato não é apenas um conceito, mas a realidade (uma realidade escondida) do trabalho humano em determinado contexto histórico-social[3].

Marx já identificava o ser social, reconhecendo no homem a dificuldade de lidar com a consciência de sua própria finitude. O homem, também em Marx, como posteriormente em Freud, se constitui na ausência, na falta. Na impossibilidade de ser imortal. Por isso em seus primeiros escritos, Marx busca no humanismo de Feuerbach a explicação para a alienação provocada pelo trabalho em um contexto capitalista: assim como o homem cria deus (para conseguir lidar com sua finitude) e o torna maior do que si mesmo, também cria, numa realidade capitalista, a separação entre o trabalho e seu resultado, permitindo-lhe aparecer como “algo estranho, como um poder independente dele e que o domina”[4].

De acordo com Marx, quanto mais produz, mais o trabalhador se vê privado dos objetos necessários a subsistência e quanto menos possui, mais se sujeita ao domínio dos produtos criados por ele, ao domínio do capital. Por isso, o que torna o capitalismo tão sedutor é justamente o fato de que a pulsão capitalista preenche o vazio existencial que é próprio da condição humana.

A falta que nos identifica enquanto sujeitos conscientes da própria finitude é preenchida, no sistema atual, com mercadorias – necessidades inventadas. Por isso, o capital é identificado como um constante devir: a pulsão gerada pela falta. E também por isso o capitalismo se reinventa em cada crise, redefine a estrutura e as classes sociais, o tempo todo. Essa capacidade de reinvenção do capitalismo não perdoa as tentativas de sua superação.

Eis a principal razão pela qual o cooperativismo tem tamanha dificuldade em florescer em um ambiente hostil, sendo repetidamente forçado a assimilar a lógica do capital.

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No cenário de um capitalismo inclusivo a lógica das relações de produção não se altera. Como regra geral, as relações entre capital e trabalho se estabelecem através da apropriação da mais valia, pelo empregador.

O trabalhador é destituído não apenas dos meios de produção, como também do acesso ao resultado do seu trabalho. Trata-se da típica relação de emprego, central na realidade brasileira e, por isso mesmo, protegida de modo especial, como direito fundamental dos trabalhadores, no art. 7º da Constituição.

É natural, portanto, que um modo socialista de produção seja por nós assimilado a partir dessa realidade. E que tenhamos o máximo cuidado para não permitir que uma tentativa de emancipação, como aquela que podemos identificar no cooperativismo, torne-se modo de precarização das condições sociais do trabalhador subordinado.

Marx já dizia, em 1844, que “o desenvolvimento histórico se baseia sobretudo no fato de que a última forma considera as formas precedentes como etapas até si mesma”[5]. Raramente conseguimos ou mesmo temos os mecanismos que nos permita uma autocrítica.

A sincera iniciativa da esquerda brasileira em fomentar o cooperativismo, tal como o faz a Recomendação 193 da OIT, não escapa dessa armadilha já denunciada por Marx. Pretende sinceramente a emancipação da classe trabalhadora, mas a enreda em uma lei que não rompe com a lógica de exploração do trabalho, pelo capital.

No Manifesto do Partido Comunista, Marx refere que

Todas as classes precedentes que tiveram o comando aspiraram fortificar a sua condição adquirida sujeitando a sociedade em geral às suas condições de apropriação. Os proletários não podem se tornar patrões das forças produtivas da sociedade, exceto abolindo seus próprios meios de apropriação anteriores e, de tal modo, também todos e quaisquer outros modos de apropriação anteriores.

A leitura dessa passagem poderia levar talvez à conclusão de impossibilidade de um cooperativismo verdadeiro, dentro de uma estrutura capitalista de produção.

Por outro lado, podemos ver aí justamente a percepção das condições necessárias para uma mudança gradual, que não rejeite o caráter conservador do Direito inscrito na ordem vigente, mas que também permita, não sem grandes dificuldades, incutir uma prática socialista verdadeira, que aos poucos possa revelar suas vantagens em relação ao modo atual de produção.

E o primeiro passo para compreender a gravidade do problema causado pela lei 12.690 é justamente o reconhecimento desse caráter conservador do Direito. O Direito contemporâneo, do mesmo modo que o Estado ou as demais instituições vigentes, serve ao sistema. Não há aqui grande novidade. Os principais institutos jurídicos (propriedade privada – contrato) são reflexos da ordem capitalista de produção.

Usar o Direito contra si mesmo, ou, melhor dizendo, contra a ordem de coisas que ele deve manter, é um grande desafio. O exame dos dispositivos da lei 12.690 demonstra que, no caso em exame, falhamos nessa tentativa de disciplinar um novo modo de produção.

A lei anterior, de 1971, melhor compreendia o fenômeno e evitava torná-lo um arremedo de empreendimento capitalista capaz de reduzir direitos sociais. A lei atual não consegue escapar dessa armadilha.

É nesse contexto que estamos hoje inseridos: o de uma sociedade liberal capitalista que pretendeu firmar um pacto de solidariedade na Constituição de 1988 e vem tentando por em prática a difícil tarefa de aliar conceitos antagônicos.


3. A lei 12.690 e a lógica do capital

Os problemas já iniciam nos primeiros dispositivos da lei em exame. No ânimo propalado de homenagem à economia solidária, conceitos de autogestão se viram imbricados à lógica liberal em uma comunhão fadada ao insucesso por flagrante incompatibilidade.

É indiscutível que qualquer empreendimento de trabalho necessariamente se vincule à lógica de mercado. E este é o desafio de que falávamos, para as cooperativas legítimas, que de forma intrínseca à sua subsistência se configuram como instituições organizadas de resistência[6] à ordem estabelecida.

Esta mesma ordem, sob o manto do protecionismo que se distancia da igualdade ambicionada pelos trabalhadores que se associam em cooperativas, pretende agora lhes assegurar garantias com as quais a especificidade de sua organização não se harmoniza.

Trata-se, por isso mesmo, de uma falsa proteção.

Esse é o ponto nodal da discussão: cooperativa de trabalho constitui modo de produção socialista que supera a dicotomia capital x trabalho. E a supera justamente porque elimina a figura do tomador dos serviços. O trabalhador se reapropria dos meios de produção e detem, o que é o mais importante, os frutos do seu trabalho.

Novamente, é do conceito de alienação em Marx que estamos falando. Ele afirma que “para que possa existir, em primeiro lugar, como trabalhador e, em segundo, como sujeito físico”, o homem precisa produzir. Essa produção poderá efetivamente emancipá-lo, caso os frutos do seu trabalho com ele permaneçam. O trabalho é, portanto, parte indissociável da própria condição humana.

No sistema capitalista, porém, o trabalhador “vende” o que produz, o trabalho se torna externo a ele. Esse “estranhamento”, de acordo com Marx, “não se mostra somente no resultado, mas também, e  principalmente, no ato de produção, dentro da própria atividade produtiva”[7]. E conclui que “o trabalhador tem a infelicidade de ser um capital vivo”, que perde sua existência quando para de trabalhar[8]. Ele está tratando do trabalho inserido na realidade capitalista e, especialmente, do trabalho como única fonte de sobrevivência física.

Essa é a lógica em que se insere o Direito do Trabalho, fruto do sistema atual. Em vez da realização pelo trabalho, o homem realiza-se fora dele, através do acúmulo de riqueza. A sociedade (capitalista) é, então, vista como um todo, “o móvel gigantesco do processo de acumulação”, que pode seguir “à plena velocidade, isento dos limites impostos pela duração da vida individual e da propriedade individual”[9].

É interessante a observação de Hannah Arendt, no sentido de que a construção de regras de proteção ao trabalho inserido no contexto capitalista significaram progresso “na direção da não-violência”, mas não necessariamente em direção à liberdade, pois nada é mais contrário ao exercício da liberdade, do que a necessidade[10].

As normas trabalhistas lidam com essa circunstância perversa e não buscam corrigi-la. É a consciência dessa origem do Direito do Trabalho, por exemplo, que nos habilita a compreender porque há tanta dificuldade em permitir que o cooperativismo verdadeiro viceje.

O caráter paradoxal das normas trabalhistas, que surgem e se desenvolvem para manter um sistema de exploração humana, mas também para limitá-lo, na busca de um utópico "capitalismo domesticado", faz com que muitas vezes sejam aplicadas em franca contrariedade ao principio da proteção que as justifica.

É o caso da previsão contida na lei 12.690, quando pretende estender alguns direitos trabalhistas àqueles que deveriam atuar como sócios em um empreendimento e, pois, do lado de fora da relação de exploração do trabalho pelo capital.

As dificuldades que a verdadeira cooperativa enfrenta dentro de um país capitalista, portanto, são grandes e previsíveis.

Pensá-la como uma nova forma empresarial de prestação de serviços é retirar-lhe justamente o que a diferencia de qualquer empreendimento capitalista. Do mesmo modo, pretender atribuir aos sócios cooperados direitos trabalhistas é contradizer sua própria natureza (ou reconhecer a fraude em que está inscrita).

A lei elenca direitos mínimos, sem que seu rol se iguale àquele assegurado aos que tem uma relação de emprego, e, ao mesmo tempo, permite que os serviços que prestam sejam disputados por menor preço e igualdade de condições.

O direito posto, plasmado no texto legal em discussão, elenca como grande conquista a garantia de participação em licitações por menor preço, e, para que a pseudocooperativa possa competir com menor preço, a própria lei atribui menos obrigações. O resultado do certame será certamente exitoso para a cooperativa e os trabalhadores cooperados seguirão tendo menos direitos que seus colegas empregados. De outro lado, o tomador de seus serviços, no mais das vezes Poder Público, terá a segurança de jamais ter de complementá-los.

A falácia do discurso é clara: sob o manto do protecionismo a lei garante apenas parte dos direitos trabalhistas a trabalhadores que, se mantiverem o vínculo com um tomador dos serviços, nada mais serão do que autênticos empregados.

A proteção revela-se manifesta desproteção, promovendo a desigualdade entre iguais. Aqui é de pontuar que a Constituição não dá ao trabalhador a opção de prestar serviços como empregado ou como cooperado. Não é essa a lógica constitucional. Ao contrário, o art. 7º, inciso I, garante a todos os trabalhadores o direito fundamental à relação de emprego. A CLT define as figuras do empregado e do empregador.

Quem admite, assalaria e dirige a prestação de serviços é, pois, empregador, ainda que possamos atribuir-lhe qualquer outra denominação. Em palavras bem simples, a relação em que o capital explora o trabalho humano é a relação de emprego, com todos os direitos e deveres daí decorrentes.

Para que estejamos diante de uma verdadeira cooperativa, é indispensável que essa relação não exista. Podemos imaginar a hipótese de uma cooperativa de pescadores ou de costureiras, cujo fruto do trabalho, assim como os meios de produção, pertencem aos associados, que decidirão em conjunto e sem hierarquias como colocá-lo à venda no mercado.

Por isso a própria noção de cooperativa de serviços constitui uma contradição em termos. Cooperativa é exatamente o que o primeiro item do art. 4º da referida lei sugere: um empreendimento constituído por “sócios que contribuem com trabalho para a produção em comum de bens e a cooperativa detém, a qualquer título, os meios de produção”.  

Uma cooperativa de serviços é inviável na prática, justamente porque não elimina a figura do tomador (empregador) que se apropriará do fruto do trabalho, explorando-o. Os trabalhadores que efetivamente pretendem emancipar-se encontram na lei um obstáculo intransponível. Em hipóteses como a dos catadores de materiais recicláveis sequer poderão cumprir as exigências legais, sem prejuízo do próprio projeto social que empreendem.


4. A Cooperativa dos Catadores de Materiais Recicláveis: uma realidade possível ?

A cooperativa dos catadores de materiais recicláveis tem por objetivo catar e separar tais materiais. Após a separação, a parte reaproveitável é vendida pelos catadores a empresas interessadas, enquanto a parte considerada efetivamente lixo é entregue ao município, para que dê a destinação adequada.

É importante que se perceba a diferença entre uma cooperativa e uma empresa de prestação de serviços disfarçada sob tal denominação. Não há relação tomador – prestador entre os catadores e o ente público.

A atividade de catar, separar e vender os resíduos é feita de forma autônoma. O lucro e os prejuízos porventura advindos dessa atividade são igualmente divididos entre os sócios que definem, em assembleia, para quem vender a parte reciclável dos resíduos que coletam. Para os catadores de materiais recicláveis, a coleta é, pois, complementar à triagem e ao beneficiamento.

Desde o advento da lei 11.445/2007, que estabeleceu a Política de Saneamento Básico, estes trabalhadores tiveram assegurada sua contratação por dispensa de licitação e com isso tiveram fomentada sua possibilidade efetiva de assunção de serviços de coleta e triagem mediante convênios com redução significativa de documentos e exigências burocráticas, direcionando suas atividades para a formalidade gradual.

Agora, com a promulgação da lei 12.690, os municípios pretendem não apenas que a cooperativa de catadores prove o pagamento dos direitos ali elencados, como também se submeta a sua fiscalização e determinação, quanto ao local de coleta e a destinação dos resíduos.

É preciso que compreendamos: há absoluta incongruência entre independência e assalariamento. O desinteresse dos sócios, em razão das amarras legais, é inimigo da autogestão[11]. Esse desinteresse é fomentado pelo assalariamento, que desvirtua a própria natureza do cooperativismo.

Em uma cooperativa legítima não há qualquer possibilidade de “menor esforço”. São os trabalhadores que aferem a produtividade e a necessidade de adequação à demanda com que se deparam, para colocar, de forma autônoma e organizada, seu produto no mercado.

A dinâmica de uma cooperativa verdadeira é imediatista, não condiz com regramentos rígidos de conduta administrativa. O foco é o resultado do trabalho, a forma com que se desenvolve, a interação entre os trabalhadores de modo a se adaptar as necessidades momentâneas.

O ânimo dos associados não é receber salário. Mesmo porque existe a possibilidade viável de se tornarem empregados e terem um salário mínimo pago por empregadores, caso abram mão desse empreendimento e resolvam atuar na lógica capitalista de produção. Essa ainda é a regra geral dentro do nosso sistema.

O anseio dos trabalhadores que pretendem cooperar não é a submissão. É construir a possibilidade de receber o que entendem justo pelo seu próprio trabalho, de destinar o resultado que entenderem excedente no que se mostrar mais adequado segundo os interesses defendidos pelos envolvidos.

O resultado do arranjo institucional entabulado veio, pois, em flagrante prejuízo do trabalhador.

Bem por isso, a lei 12.690 se deparou, desde antes de sua aprovação, com claras manifestações de repúdio[12]. É exemplo a nota expedida pela CONTAG – CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS TRABALHADORES NA AGRICULTURA[13], segundo a qual:

 (...) a organização de trabalhadores na forma proposta pela lei 12.690/2012, “desonera os empregadores e transfere para os trabalhadores os riscos do negócio e outros ônus, inclusive o burocrático e o controle da subordinação, ou seja, alivia o patrão e sobrecarrega o trabalhador. Desonera o Governo de sua responsabilidade e coloca mais um pesado fardo sobre os ombros dos trabalhadores, rotulando este modelo como moderno e progressista, quando, na verdade, esconde a flexibilização de direitos trabalhistas com o claro objetivo de diminuir os custos com mão de obra do empregador.

E, ao lado dessas preocupações, outras se apresentam pragmaticamente no mesmo sentido, qual seja de que a intenção de fomento da inclusão social, no mínimo, não será alcançada.

Inúmeras discussões de natureza tributária se vislumbram diante da tentativa de operacionalizar o funcionamento da cooperativa conforme os termos da nova lei. Questões de natureza previdenciária também devem pautar o discurso de quem se dispõe a enfrentar a problemática com seriedade, uma vez que se está diante de mais um direito fundamental relegado ao segundo plano, quando sob qualquer ângulo, merece atenção especial.

Enquanto isso, os trabalhadores organizados que pretendam de fato pautar sua conduta pelos princípios da economia solidária original – e aqui se adota esta terminologia para que não se confunda com os conceitos parcialmente implantados nos textos legais em tramitação e inseridos no direito posto –, como os catadores de materiais recicláveis, agora se veem mais uma vez sob o risco de ver sepultada sua pretensão.

As exigências impostas pela lei das cooperativas de trabalho trataram de não só desvirtuar totalmente o cenário de simplificação, como imputar-lhes um severo e prejudicial afastamento do processo produtivo mediante a imposição de responsabilidades para as quais não reúnem condições técnicas ou conhecimento adequado.

É a burocracia a desserviço das conquistas precedentes. Como identificou Singer[14] ao analisar espécie de cooperativa afastada da incidência da legislação em comento e, portanto, imunizada deste efeito, a necessidade de atendimento de exigências excessivas destrói o caráter comunitário de uma cooperativa: “para enfrentar tal concorrência, o movimento cooperativo de crédito tende a se centralizar e burocratizar... com o que abre mão da autogestão e do caráter comunitário da cooperativa”. Transforma-se, irremediavelmente, em empregador.

Regramentos em vigor, tais como o Código Civil, já previam a suficiência de determinado número de associados. Agora, menos de sete trabalhadores não podem constituir uma cooperativa. Em empreendimentos de trabalhadores marginalizados, em inúmeras situações pequenos grupos rivalizam entre si.

A possibilidade de fracionamento dos serviços e território para desempenho das atividades, viável até a promulgação da lei, agora se encerrou. E, considerando que não surpreendem à comunidade acadêmica as dificuldades encontradas na manutenção de empreendimentos autogestionários[15], pode-se dizer sem espaço para dúvida que a superação destas dificuldades é inviabilizada por questões como a que se comenta. 

No caso dos catadores de materiais recicláveis a questão é emblemática. Os municípios, para contratar cooperativa de catadores, passaram a exigir o mínimo legal de sete associados, e, como isso, a fusão de grupos menores, fusão que determina o fracasso e, ao fim e ao cabo, afasta os trabalhadores de receberem adequadamente pelo resultado do trabalho, por não terem condições de atender esta exigência legal. E note-se que esse é um dos requisitos mais simples dentre as demais inovações.

As dificuldades de disseminação de uma lógica de economia solidária são sentidas de modo especial nessa tentativa real de trabalho cooperado. Os municípios, no mais das vezes, querem definir local para que haja a seleção e indicar os compradores do material reciclável. Trata-se de ingerência indevida, que desvirtua, mesmo no caso dos catadores de materiais recicláveis, o caráter cooperativo do trabalho que realizam.

A necessidade de cumprimento de obrigações relacionadas intimamente à administração dos recursos decorrentes do pagamento pelo trabalho, pré-estabelecidas pelo legislador infraconstitucional, agride a soberania das decisões assembleares.

Em uma palavra: as verdadeiras cooperativas de trabalho, mesmo antes da lei 12.690, já penavam para atuar como uma sociedade, sem tomadores, sem amarras. Agora, essa atividade torna-se praticamente inviável e tudo em nome do fomento de pseudocooperativas, cujo objeto social é genérico e cuja função, no âmbito social, é exclusivamente a de angariar mão de obra em favor de terceiros.

Sobre as autoras
Valdete Souto Severo

Juíza do Trabalho em Porto Alegre (RS). Especialista em Direito Processual Civil pela UNISINOS. Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela UNISC. Master in Diritto del Lavoro e della Sicurezza Sociale presso la Università Europea di Roma. Especialista em Direito do Trabalho pela UDELAR – Universidade do Uruguai. Mestre em Direitos Fundamentais pela PUC/RS. Doutoranda em Direito do Trabalho na USP/SP.

Paula Garcez Correa da Silva

Advogada. Cursa especialização na UFRGS/RS. Assessora Jurídica do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SEVERO, Valdete Souto; SILVA, Paula Garcez Correa. O caso dos catadores de materiais recicláveis:: A angústia de quem pretende um cooperativismo verdadeiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3866, 31 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26571. Acesso em: 8 nov. 2024.

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