III - ALGUMAS MODIFICAÇÕES TRAZIDAS NO CÓDIGO CIVIL DE 2002 E NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR NO CAMPO DO DIREITO CONTRATUAL E NA RESPONSABILIDADE CIVIL
Como mencionado, o objetivo do trabalho é analisar algumas modificações realizadas no Código Civil de 2002 no campo da responsabilidade civil e no direito contratual, no sentido de poder concluir que a visão dogmático-normativa do direito cede espaço para a visão sociológica.
Para tanto, necessário, ainda que num passar d´olhos, tratar dessas modificações trazidas não necessariamente com a promulgação do Código Civil de 2002, mas com a sua aplicação e interpretação, pela doutrina e jurisprudência, nesses quase 10 anos de vigor.
No campo da responsabilidade civil o direito brasileiro se ressentia, há muito tempo, de previsões de responsabilidade objetiva, justamente por se entender que as hipóteses de responsabilização com base na culpa eram insuficientes para todas as situações de danos verificadas, notadamente após a Revolução Industrial, momento pelo qual houve transformação significativa nas relações negociais.
Não se pode esquecer que a responsabilidade civil, em especial, é baseada em dois princípios que traduzem sem sombra de dúvida os anseios sociais: da justiça e da reparabilidade plena. Isso permite concluir que a realização dos objetivos da responsabilidade civil somente ocorre quando for proporcionado à vítima, e à sociedade, ultima ratio, a possibilidade de alcançar o maior número possível a reparação (integral) dos prejuízos experimentados.
O Código Civil de 1916 não trouxe hipóteses de responsabilização objetiva, o que fez com que vários autores brasileiros, dentre os quais se destacam Alvino Lima e José de Aguiar Dias, fizessem críticas, justificadíssimas, de um sistema mais efetivo de responsabilidade.
A observação é pertinente porquanto desde a Revolução Industrial verificou-se que a responsabilidade civil com base na culpa se mostrou como ferramenta insatisfatória para a tutela dos interesses individuais das vítimas, em muito por causa das modificações verificadas nas relações jurídicas, que paulatinamente foram se tornando cada vez mais complexas.
Ressentia-se o direito brasileiro, portanto, de hipóteses de responsabilidade objetiva. Um exemplo importante a respeito da necessidade de se buscar hipóteses de responsabilidade objetiva encontra-se no Decreto n. 2618-12, denominado Código de Estradas de Ferro, que previa, em seu art. 17, uma responsabilidade sem culpa para os casos de acidentes em vias férreas.
Como não havia outro diploma a tratar do assunto no direito brasileiro, notou-se sua aplicação em larga escala, iniciando-se posteriormente nos casos de acidentes em bondes, ocorridos nos centros urbanos, ampliando-se a acidentes rodoviários, que, do ponto de vista exclusivamente dogmático, não guardavam qualquer relação com o evento, mas que, por força dos anseios sociais, da necessidade do momento, acabaram sendo aplicados pelos operadores do direito.
Outra situação que causou perplexidade no Código Civil de 1916 foi a responsabilidade pelo fato de terceiro, que vinha tratada nos arts. 1521 a 1523.
Previa-se, naquele diploma, a responsabilidade subjetiva por fato de terceiro. Assim, os pais, por exemplo, responderiam somente se restasse comprovada sua culpa (art. 1523) pelos atos praticados pelos filhos. Como a regra no direito brasileiro no que diz respeito à prova, é de que compete ao autor a demonstração dos fatos constitutivos de seu direito (art. 333, I, CPC), e nesse caso a prova da culpa tinha sido elegida como fato constitutivo de seu direito, isso implicava, não raras vezes, em negar à vítima o direito de receber a indenização.
A mesma situação se verificava para o caso dos empregadores, que somente respondiam pelos atos de seus empregados caso tivesse sido demonstrada sua culpa, tudo ainda conforme previsto nos arts. 1521, III e 1523, do Código de 1916. A insatisfação com as hipóteses previstas nesse dispositivo era tamanha que autores do mais elevado escol, como Washington de Barros Monteiro considerava o art. 1523 do Código Civil como não escrito, pois não aceitava a responsabilidade subjetiva ali empregada, tendo em vista que obstava em muitos dos casos a concessão de reparação às vítimas, pela inerente dificuldade em demonstrar a culpa do agente ofensor.
Exemplo interessante de como os fenômenos sociais, nesse caso, influenciaram na aplicação do direito, que no caso em análise implicou na desconsideração do texto frio da lei, foi a Súmula 341 do Supremo Tribunal Federal, que previa a culpa presumida do empregador pelos atos praticados pelos seus empregados.
Note-se que pela redação do art. 1523 do Código de 1916[10] não seria possível responsabilizar o empregador pelos atos de seu empregado se não restasse demonstrado (pela vítima) sua culpa (do empregador), pois esse era o texto legal, frio e inequívoco, a não permitir margens para interpretação. Diz-se isso porque em princípio somente há que se falar em interpretação quando há dúvida com relação a determinado texto, de lei ou de contrato. Quando a linguagem utilizada pelas partes, no caso o legislador, foi clara o suficiente para não permitir dúvidas de interpretação, não há que se falar em necessidade de se interpretar determinada regra, basta aplicá-la.
Essa era a situação do art. 1523 do Código Civil de 1916, que não permitia margens para interpretação, tendo em vista que sua redação era inequívoca no sentido de somente permitir a responsabilidade do empregador caso houvesse sido comprovada sua culpa.
Ocorre que essa situação prejudicava a aplicação de dois princípios fundamentais da responsabilidade civil, quais sejam o da reparabilidade plena e da justiça, molas propulsoras da reparação civil. O reclamo social era, portanto, de se criar ou aceitar uma maneira de facilitar a posição da vítima na ação indenizatória, para que conseguisse alcançar de forma mais efetiva a reparação, o que só poderia ser alcançado pela modificação do status trazido pela lei.
Isso se dá com a Súmula 341 do Supremo Tribunal Federal, que permite a culpa presumida – embora o texto legal não permitisse margem para esse posicionamento, se aplicado literalmente – do empregador pelos atos de seus empregados. Modifica-se, portanto, a intepretação do texto legal para que se possa atender ao anseio social de uma forma mais efetiva de responsabilidade civil.
Verifica-se, portanto, pelos dois exemplos acima mencionados, que no campo da responsabilidade civil havia uma crescente preocupação em se criar hipóteses de responsabilidade mais efetiva, mais concretas, que permitissem ao instituto – responsabilidade civil - alcançar seu desiderato de reparar integralmente as vítimas pelos danos injustamente sofridos. Como não havia na legislação espaço para interpretações diferenciadas, dado o apego no Brasil com relação ao positivismo, coube à doutrina e jurisprudência[11] ampliar as hipóteses nesse sentido.
As coisas não se deram de maneira diferente no direito contratual. O apego a postulados e preceitos extraídos do Código Napoleônico, como o pacta sunt servanda, totalmente justificável considerando-se o contexto histórico e social da época de sua promulgação, fez com que no Código Civil brasileiro de 1916 não houvesse previsão para a modificação de contratos em casos de comprovada onerosidade excessiva[12].
A impossibilidade de modificação dos contratos em casos de onerosidade excessiva não se dava, no Brasil, por outro motivo que não a ausência de previsão legal, ou seja, de direito positivado, embora a cláusula rebus sic stantibus fosse aceita como integrante implicitamente de todos os contratos. O apego ao formalismo, à necessidade de que o manual fornecesse a solução para o caso concreto impedia às partes o acesso ao Judiciário para restabelecer o equilíbrio da relação jurídica, ainda que restasse comprovado cabalmente que o desequilíbrio então encontrado na relação jurídica se devesse a fatos estranhos à conduta das partes, a situações imprevisíveis e extraordinárias. Tanto que no Brasil o primeiro caso julgado favorável à modificação de contrato somente ocorreu em 1938, ou seja, 22 anos após o início de vigência do Código de 1916. Quantas e quantas injustiças não acabaram sendo praticadas pelo próprio Poder Judiciário, ao argumento de inexistir norma que permitisse a revisão de contratos em casos de onerosidade excessiva.
Esses exemplos, de responsabilidade objetiva e modificação de contratos, são emblemáticos na forma pela qual o Direito vem sendo visto e empregado no Brasil, para se permitir a conclusão de que, tal como afirma Durkheim, os anseios sociais que moldam a formação e aplicação do Direito e não o contrário, ou seja, o Direito (positivado) que molda a conduta social. Entende-se que o Direito deve, antes de tudo, expressar os anseios da sociedade de determinado momento, e que somente se legitima perante a sociedade quando sua aplicação se der conforme a tábua axiológica do tempo em que estiver sendo aplicado.
As modificações por que passou o sistema brasileiro após o Código de 1916, mas notadamente após a Constituição Federal de 1988 reforçam esse argumento da prevalência dos fenômenos sociais para a formação do Direito, dos diplomas legislativos.
Vem ao cenário jurídico brasileiro no ano de 1990 o Código de Defesa do Consumidor, diploma que quebra paradigmas tanto no campo da responsabilidade civil como no direito contratual.
O consumidor, visto como parte vulnerável[13] na relação jurídica demanda proteção específica para que seus direitos possam ser resguardados de forma efetiva. Nesse sentido e com esse objetivo, foram trazidas novas regras ao direito brasileiro, notadamente no campo da responsabilidade civil e dos contratos, que modificaram completamente a situação então existente.
O novo diploma consumerista trata, com relação à responsabilidade civil como sendo de regra a objetiva, isto é, independente de culpa e os contratos, de forma ampla o bastante para permitir sua modificação, abraçando a teoria da quebra da base objetiva do negócio. Mudanças profundas, portanto, no campo do direito privado e, em nosso entendimento, por causa dos anseios sociais que não mais permitiam as soluções então apresentadas pelos ordenamentos jurídicos pautados exclusivamente no positivismo.
As modificações trazidas pelo Código de Defesa do Consumidor para o direito brasileiro são inequívocas, porque houve a transformação de um panorama até então existente com relação ao direito contratual e à responsabilidade civil, pautado no individualismo e sobretudo na força da lei posta, positivada, sem preocupação com seu atendimento aos anseios sociais do momento.
Esse mudança foi fruto do novo pensamento trazida pela Constituição Federal de 1988, que quebrou vários paradigmas existentes no direito brasileiro.
Mas, pensamos, não foi só essa a força propulsora da modificação da forma de aplicação de interpretação do direito privado que se verifica no atual estágio de desenvolvimento do direito brasileiro. Temos a convicção de que a sociedade tem feito prevalecer seus valores de determinado momento para que seja aplicado o direito conforme esse entendimento, conforme essa tábua axiológica que muda conforme os valores que inspiram cada sociedade.
Segundo pensamento de Weber, há um sentido social nessas mudanças, pois há a prevalência dos interesses sociais sempre que colocados em choque com normas postas que, justamente pelas constantes e significativas mudanças ocorridas em sociedade, podem não mais atender aos anseios da sociedade.
E a análise do Código Civil de 2002, que está prestes a completar 10 anos de vigência, notadamente no campo do direito contratual e da responsabilidade civil, dá conta de que os anseios sociais, os ideais de justiça, têm prevalecido quando a letra fria da lei não conduz a uma solução que se considera adequada.
Vários dispositivos do Código Civil de 2002 vêm sendo interpretados não conforme a letra da lei, o que implica dizer que no Brasil o positivismo vem perdendo força para que a interpretação da lei conforme os valores sociais ganhe cada vez mais força.
E essa desconsideração, por assim dizer, ao texto frio da lei, se faz justamente porque se reconhece que o trabalho legiferante, como humano que é, vem não raras vezes imperfeito, com problemas de intepretação, ou situações que não podem ser consideradas justas.
No caso dos vícios redibitórios há a questão do prazo para a reclamação desses defeitos ocultos. No art. 445, §1º do Código Civil há a previsão de que nos defeitos que por sua natureza somente possam ser conhecidos mais tarde, o prazo para a reclamação se iniciará quando a parte (adquirente) tomar conhecimento do problema. Ocorre que esse conhecimento por parte do adquirente pode ocorrer muito tempo depois da transferência do bem. E essa possibilidade de reclamação por tempo indefinido, quando a parte tomar conhecimento do problema, a despeito de fornecer maior segurança jurídica para o adquirente, que sempre terá maior prazo para a reclamação, poderá conduzir a situações absolutamente injustas, favorecer o demandismo e, ainda, trazer insegurança jurídica às relações contratuais, tendo em vista o indeterminado tempo a que ficariam vinculados os contratantes com relação às garantias do negócio.
Assim, a despeito do fato de que os vícios redibitórios sejam direcionados para proteger o adquirente de bens e serviços, e conduza a interpretação fria do texto da lei à conclusão de que a reclamação poderia se dar a qualquer tempo quando tomado conhecimento do defeito, propugnaram, doutrina e jurisprudência, para o entendimento de que deve-se contar o prazo do §1º do art. 445 da entrega do produto e, constatado o defeito do produto neste período, somar-se-ia o tempo previsto no caput deste artigo. Dessa forma atende-se ao intento do legislador, que pretende fornecer um prazo maior para a reclamação de determinados defeitos do produto, mas de outro, também das demais partes envolvidas, direta e indiretamente, na relação contratual, que também necessitam de segurança jurídica em suas transações. A interpretação dada, portanto, é contrária ao texto da lei, em mitigação da força do positivismo. Isso, pensamos, deve-se ao fato de ter-se reconhecido que a letra da lei, positivada, a despeito de, em tese, ser a expressão da vontade popular, notadamente nos países democráticos, não preenche, por si só, todos os anseios sociais de determinado momento. E essa sensação tende a aumentar quando se verifica com fenômenos como o da internet, que modificou radicalmente todas as relações jurídicas de maneira irreversível e inimaginável, notadamente quando muito dos diplomas legais atualmente vigentes estavam em fase de elaboração.
Vários são ainda os exemplos do Código Civil de 2002 em que tem-se defendido, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, interpretação e aplicação do direito de forma diversa da que ocorria caso fosse aplicado o texto frio da lei.
O mesmo se dá para o caso da possibilidade de se reclamar vícios redibitórios em hasta pública. Na legislação antiga (Código Civil de 1916), havia proibição expressa com relação a essa possibilidade. O argumento que se utilizava, tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência era de que os bens adquiridos nessas condições já estavam expostos há mais tempo, à disposição dos interessados e, por isso, havia a prévia possibilidade de tomar conhecimento dos defeitos porventura existentes[14]. Outro argumento também utilizado era de que como na maioria das vezes o bem era alienado em segunda hasta, portanto, em valores menores[15] e que, por isso, estaria proibida a reclamação de vícios redibitórios[16].
Ocorre que o Código Civil de 2002 não repetiu a mesma restrição prevista no diploma anterior, situação que, por si só, já permitiria a discussão a respeito da possibilidade de reclamar vícios redibitórios de bens adquiridos em hasta pública. Mas não é só isso. Ao tratar da evicção, instituto jurídico que tem a mesma finalidade dos vícios redibitórios (resguardar a garantia necessárias para os negócios bilaterais), ocorre a inovação da previsão expressa da responsabilidade por evicção em casos de hasta pública[17].
Diante desse cenário passa-se a discutir se é possível a reclamação de vícios redibitórios em hasta pública, tendo em vista que a proibição existente no diploma anterior não foi repetida na novel legislação e no que toca à evicção, instituto afim, houve preocupação expressa por parte do legislador nesse sentido. O simples fato de se permitir a discussão nesse sentido já denuncia, em nosso entendimento, a perda de força do positivismo. Isso porque se se entendesse que somente o texto posto na lei poderia ser objeto de aplicação, não seria necessário perquirir pela viabilidade da reclamação de vícios redibitórios em hasta pública.
A conclusão a que chegam, doutrina e jurisprudência, vai de encontro aos anseios sociais que atualmente norteiam as relações jurídica de direito privado: busca pelo equilíbrio, tentativa de realização de justiça distributiva na maior medida possível.
Como tanto os vícios redibitórios quanto a evicção têm por objetivo fornecer segurança jurídica e, mais do que tudo, garantir o equilíbrio (equivalência de prestações ou sinalagma), tem-se defendido o entendimento de que também pode haver reclamação de vícios redibitórios ainda que os bens tenham sido adquiridos em hasta pública, como forma de se preservar o equilíbrio e a igualdade nas relações jurídicas.
Vale a pena destacar ainda algumas situações encontradas atualmente no direito brasileiro que não tem previsão legal, sendo criações de doutrina, posteriormente acatadas pela jurisprudência e que fazem o direito ser aplicado em desconformidade, em contrariedade expressa ao texto de lei.
É o caso do adimplemento substancial, teoria que não tem previsão legal, mas que influi significativamente na solução de problemas nas relações contratuais decorrentes do inadimplemento.
O art. 475 do Código Civil brasileiro em vigor autoriza que a parte lesada pelo inadimplemento possa pedir a resolução do contrato, cumulando ainda o pleito com indenização por perdas e danos.
Esse é considerado quase que como um direito potestativo, pois a partir do momento em que se considera o contrato como manifestação livre de vontade, que vincula as partes, é de se reconhecer, na mesma medida, que essa vinculação somente pode existir, e obrigar as partes, enquanto todas as demais obrigações do negócio estejam sendo atendidas conforme pactuado inicialmente.
O inadimplemento é elemento patológico do contrato e sua caracterização deve permitir a resolução do vínculo. Essa a redação expressa (positivada) do art. 475 do CC. Todavia, há casos em que o inadimplemento se dá quando uma das partes (inadimplente) já cumpriu grande parte da obrigação. Nesses casos permitir o desfazimento da relação jurídica, com o retorno das partes ao status quo ante pode conduzir a problemas incontornáveis e indesejáveis para as partes, bem ainda servir de ferramenta de pressão por parte do credor para cobrar valores indevidos, enfim, praticar arbitrariedades contra o devedor que depende, na maioria das vezes, do contrato.
Todavia, a despeito dessa conclusão, é fato que o art. 475 do CC (texto positivado, portanto) tem redação expressa no sentido de permitir à parte lesada pelo inadimplemento a resolução do contrato.
A teoria do adimplemento substancial se contrapõe a essa possibilidade, impedindo a resolução do contrato quando restar demonstrado pela parte que houve pagamento expressivo das obrigações assumidas pelo devedor, não mais permitindo a rescisão do contrato, mas sim a cobrança, por parte do credor, de eventuais valores, multas ou indenizações a que tenha direito pelo inadimplemento do contrato. É uma solução interessante porque é contrária ao texto da lei e, mais do que tudo, em um país com traços indeléveis de positivismo, sem que haja qualquer texto de lei autorizando essa solução.[18]
O mesmo se pode dizer para a supressioe para a surrectio. Ambos, no direito brasileiro, são institutos criados pela doutrina e jurisprudência, porquanto não possuem correspondência no direito legislado (positivado). Assim, somente se falar em supressioe surrectio no direito brasileiro implica na conclusão de que o positivismo está sendo relativizado.
A supressiopode levar à ocorrência dos efeitos da prescrição sem que ela tenha ocorrido, ou então, reduzir o valor do débito por culpa da conduta do credor. É a penalização ao credor que demanda muito tempo para exercer sua pretensão, notadamente quando esse decurso do tempo, injustificado, vem em prejuízo do devedor, que tem sua situação agravada. Ora, em havendo pretensão resistida, lesão a direito subjetivo, inadimplemento contratual, conforme o princípio da boa fé objetiva, é dever do credor de tomar as medidas cabíveis o mais rápido possível. Ainda que o prazo prescricional exista justamente para que a parte possa, dentro desse lapso temporal, tomar as providências que bem entender (ou não), cria-se na doutrina e na jurisprudência um entendimento de que a demora injustificada para a ação a ser praticada pela parte lesada, muito mais quando é injustificada e coloca o devedor em situação de vulnerabilidade (no caso por aumentar indevidamente o valor da dívida) viola o princípio da boa fé objetiva. Até mesmo porque a demora para a tomada de providência, quando isso era possível desde o início da violação do direito, pode criar no espírito do devedor a expectativa de que não mais será demandado, muito menos de que terá sua situação onerada pelo tempo levado pelo credor para a tomada das providências.
Esse instituto leva a concluir pela preocupação, de doutrina e jurisprudência, com posturas antiéticas, do credor que, não tendo necessidade premente para o recebimento da dívida, aguarda o maior tempo possível, para aumentar o seu saldo a receber do devedor, o que viola o princípio da boa fé objetiva.[19]
O mesmo vale para a surrectio, instituto que prevê a submissão do contratante a determinado estado de coisas que decorre da prática reiterada em outras situações. Assim, mesmo que o comportamento adotado pelas partes não esteja previsto nas cláusulas contratuais, antes, esteja nelas vedado, a situação de fato, o comportamento adotado, prevalecerá para os fins obrigacionais.[20]
A análise desses dispositivos do Código Civil de 2002, aliada à verificação dos demais diplomas legais mencionados nesse tópico permite concluir que o momento de evolução da aplicação do direito privado é de prevalência dos anseios sociais ao positivismo. Trata-se, em nosso entendimento, de uma relativização da força da lei escrita, do pensamento dominante até então de que a lei posta serviria para condicionar racionalmente a atuação dos indivíduos cede espaço para a conclusão de que é o comportamento dos indivíduos, segundo os valores sociais, a tábua axiológica predominante em cada momento, é que deve moldar a aplicação do Direito.
O aspecto sociológico relevante nesse caso é relacionado à relativização do positivismo, na consciência dos operadores do direito e dos destinatários da norma, de que os anseios sociais devem reger a aplicação do Direito e que esses anseios se modificam, no mais das vezes, do que a própria lei, sendo necessário sempre haver a possibilidade de uma interpretação consentânea com essa tábua axiológica que inspira a atuação do grupo social.