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Aspectos jurídicos da reprodução humana assistida

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A reprodução assistida, enquanto permite a realização do projeto parental, também gera inúmeras controvérsias jurídicas.

Resumo: Em abordagem fundamentada, este trabalho teve a intenção principal de pesquisar acerca das modalidades de reprodução humana assistida e suas consequências no direito sucessório. Para tanto, houve análise a respeito da aparente colisão de princípios fundamentais, apontada pela problemática, sendo de um lado a segurança jurídica e de outro a igualdade dos filhos assegurada pela Constituição e a máxima da dignidade da pessoa humana, liberdade de planejamento familiar e pluralidade familiar. A pesquisa aqui proposta se caracteriza como sendo de uma tendência hermenêutica, por interpretar a legislação concernente ao assunto, tendo como suporte fontes bibliográficas listadas nas referências e repositórios de jurisprudência. Após apontar as divergências doutrinárias a respeito do tema e seus embasamentos jurídicos, procuraram-se soluções para os aludidos questionamentos, chegando-se à conclusão pela adoção daquele entendimento que, em conformidade com os princípios constitucionais, melhor resguarde os interesses do menor.

Palavras-chave: 1. Planejamento familiar. 2. Técnicas de reprodução assistida. 3.Inseminação artificial.  4. Origem Genética. 5. Dignidade da Pessoa Humana.


INTRODUÇÃO

Muito embora o Código Civil faça referência às técnicas de inseminação artificial, sobre essas ainda cabem discussões, posto que impende normatização a respeito do tema.

As técnicas de reprodução assistida embora permitam a realização do projeto parental, também geram inúmeras controvérsias jurídicas, nas quais merecem destaque as relações de parentesco biológicas e afetivas e os limites impostos pelas diversas normas sucessórias, razão pela qual se propõe a pesquisa aqui apresentada.

O fato é que a ausência de regulamentação específica deixa inúmeras dúvidas referentes à filiação e à reprodução assistida sem soluções, corroborando para a existência de opiniões divergentes na doutrina.

A esse respeito Silvio de Salvo Venosa esclarece:

[...] o Código Civil não autoriza e nem regulamenta a reprodução assistida, mas apenas constata a existência da problemática e procura dar solução exclusivamente ao aspecto da paternidade. Toda essa matéria, que é cada vez mais ampla e complexa, deve ser regulada por lei específica, por opção do legislador.

É importante destacar que a ausência de regulamentação específica não ocorre apenas no Brasil. Na verdade, em praticamente todos os países em desenvolvimento a matéria ainda não despertou muito interesse do legislador.A inseminação artificial homóloga a princípio não é objeto de grandes questionamentos posto que haverá coincidência da filiação afetiva com a biológica. Entretanto, o mesmo não se pode dizer no que se refere à reprodução humana assistida post mortem (hipótese em que a esposa/companheira será inseminada com gametas de seu marido/companheiro falecido), já que há inúmeras críticas quanto à supressão do direito à filiação da criança e dúvidas no que tange aos direitos sucessórios das crianças concebidas após o falecimento do pai.

No que se refere à inseminação artificial heteróloga há contradições entre a filiação socioafetiva e a filiação biológica, surgindo inúmeras divergências doutrinárias no que toca ao direito à origem genética como direito da personalidade, ao estado de filiação, bem como ao reconhecimento ou contestação da paternidade ou maternidade. 

Não menos polêmicas são as outras técnicas de reprodução assistida, tais como a fecundação in vitro e as chamadas mães de substituição.

Assim, sem a pretensão de sanar as lacunas jurídicas que assolam a reprodução assistida, a presente pesquisa apontará as divergências doutrinárias a respeito do tema e seus embasamentos jurídicos, procurando apontar solução para os aludidos questionamentos, na qual se concluirá pela adoção daquele entendimento que, em conformidade com os princípios constitucionais, melhor resguarde os interesses do menor.

Para tanto, faz-se necessária a releitura do instituto da paternidade, haja vista que em tempos remotos concebia-se a paternidade apenas do ponto estritamente biológico, de modo que a figura da mãe estava relacionada exclusivamente àquela que dava a luz e o pai àquele que teria fecundado essa mãe, mediante uma relação sexual, daí a expressão mater semper certa est e pater semper incertus est.(ALMEIDA JÚNIOR, 2009).

Contudo, ao longo dos anos, surgiu uma nova postura que passou a pregar a paternidade como sendo oriunda de uma relação paterno-filial, cedendo os laços biológicos espaço aos laços socioafetivos, havendo quem qualifique a filiação socioafetiva como arauto de maior importância, inclusive defendendo a possibilidade da investigação da paternidade socioafetiva. (ALMEIDA JÚNIOR, 2009).

Nesse diapasão, à luz da Constituição Federal, salienta-se, inclusive que não se pode tecer diferenças jurídicas entre filhos, independente da origem da filiação.


2 DO PLANEJAMENTO FAMILIAR

A Constituição Federal (CF) de 1988 ampliou o conceito de família ao reconhecer como entidade familiar não só a família oriunda do matrimônio, mas também a união estável entre um homem e uma mulher e a família monoparental, e consagrou o direito ao planejamento familiar no §7° do seu art. 226, calcados no princípio da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável. (CARDIN e CAMILO, 2009).

É livre a decisão do casal quanto ao planejamento familiar, vedada qualquer minoração desse direito, sob pena de violação da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável.

De igual modo, a Lei nº 9.263, sancionada em 12 de janeiro de 1996, regulamentou o planejamento familiar e assegurou o planejamento familiar monoparental, estabelecendo para o seu exercício a oferta de métodos de reprodução assistida.

Tal lei conceituou o planejamento familiar em seu art. 2º como sendo “o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal”.

 Pode-se afirmar que o direito de reprodução está associado ao planejamento familiar, que é assegurado, pela Lei n° 9263/96, a qualquer cidadão, casado ou não. Ademais, conforme salientado por Cardin e Camilo (2009), em âmbito internacional, o Brasil participou do Programa de Ação do Cairo em 1994 que adotou a ideia de que o livre planejamento familiar está diretamente relacionado aos direitos reprodutivos.

Para demonstrar a relevância do tema, cumpre destacar que se estima que no Brasil cerca de 280 mil casais em idade fértil tenham dificuldade para gerar uma criança, havendo estudos que demonstram que entre 8% e 15% dos casais têm algum problema de infertilidade.

Percebe-se que dentre os recursos governamentais dirigidos à consecução do planejamento familiar encontram-se as técnicas de reprodução assistida, abordadas a seguir.


3 TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA

Reprodução Assistida é um conjunto de técnicas que favorecem a fecundação humana a partir da manipulação de gametas, sendo relevante destacar que o primeiro bebê de proveta, Louise Brown, nasceu na Inglaterra em 1978. 

Consoantes ensinamentos de Cardin e Camilo (2009), a reprodução assistida é a designação genérica das técnicas de fertilização em laboratório, sendo que a mais comum é a fertilização in vitro.

As técnicas de reprodução assistida compreendem a inseminação artificial e o procedimento de fertilização in vitro; e ainda a figura da chamada “barriga de aluguel”.

A inseminação artificial é aquela em que a fecundação ocorre in vivo, sendo homóloga quando a fecundação se der entre gametas provenientes do próprio casal que assumirá a paternidade e maternidade afetiva da criança, e heteróloga quando ao menos um dos componentes genéticos – o sêmen, o óvulo ou o próprio embrião - for estranho ao casal. (ALDROVANDI e FRANÇA, 2002).

A inseminação artificial homóloga post mortem ocorre quando a introdução de esperma no interior do canal genital feminino é feita após a morte do cônjuge ou companheiro doador do esperma. (CARDIN e CAMILO, 2009).

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Já a fertilização in vitro, também conhecida como bebê de proveta, é aquela ocorrida em tubos de ensaio, onde o óvulo é fecundado pelo esperma, em tubo de proveta, e a seguir os embriões são implantados no aparelho reprodutor feminino. (ALDROVANDI e FRANÇA, 2002).

Por sua vez, a mãe substituta é entendida por muitos doutrinadores como sendo a mulher que cede seu útero para gestação da criança, concebida pelos gametas (masculino e feminino) de terceiros, a quem a criança deverá ser entregue incontinente após o nascimento, quando então a fornecedora do óvulo assume a condição de mãe. (ALDROVANDI e FRANÇA, 2002).

Ressalta-se que o Código Civil de 2002, ao tratar da presunção de paternidade em seu artigo 1.597, preceitua que também se presumem concebidos na constância do casamento os filhos havidos de fecundação artificial in vitro (homóloga), inclusive a post mortem, de fecundação e inseminação artificial heteróloga, com a prévia autorização do marido.

Como bem afirma Almeida Júnior (2009), a redação deste artigo leva a conclusão que a preocupação maior do legislador não está no reconhecimento da paternidade, mas sim na preservação da instituição matrimonial, concebendo como filhos aqueles havidos na constância do casamento ou em situações correlatas.

Verifica-se que as alusões às técnicas de reprodução assistida no Código Civil se limitam a esse único artigo, deixando inúmeras dúvidas sem soluções.


4 PRINCIPAIS PROBLEMÁTICAS DECORRENTES DA AUSÊNCIA DE REGULAMENTAÇÃO DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA

Consoantes ensinamentos de Cardin e Camilo (2009),

A reprodução assistida, enquanto permite a realização do projeto parental, gera controvérsias como as práticas eugênicas, o destino dos embriões excedentários, a questão dos doadores anônimos, o direito à identidade e as consequências oriundas da gestação por substituição.

As inúmeras controvérsias jurídicas que circundam o tema demonstram que o avanço do positivismo e do cientificismo não impediu que questões éticas, morais e religiosas permanecessem no inconsciente da civilização. Nesse diapasão surge o Biodireito como instituto voltado para a elaboração de uma legislação sobre as novas técnicas científicas, tendo como enfoque a dignidade da pessoa humana.

A bioética seria, assim, uma resposta da ética às novas situações oriundas da ciência no âmbito da saúde e da vida, e teria, como princípios básicos, o princípio da autonomia da vontade, da beneficência e da justiça.No Brasil, a Lei nº 11.105/05, chamada Lei de Biossegurança, permitiu no seu Art. 5°, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos, produzidos por fertilização in vitro, valendo notar que tal diploma legal contém apenas um artigo que se refere à reprodução assistida, não regulamentando, portanto, a matéria.

Sem a pretensão de adentrar nas questões morais e religiosas referentes, pode-se afirmar, indubitavelmente, que o tema reprodução assistida é polêmico, merecendo destaque a inseminação artificial homóloga post mortem e a inseminação artificial heteróloga, devido às peculiaridades singulares dessas aludidas técnicas.

4.1 INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL HOMÓLOGA POST MORTEM NO CÓDIGO CIVIL

A inseminação artificial post mortem ocorre quando um casal fornece o material genético, mas este é implantado no útero após a morte de um dos doadores, o que pode gerar inúmeros conflitos. A referida técnica é proibida em alguns países e admitida com ressalvas em outros, nos quais se inclui o Brasil.

Com relação ao direito comparado, vale destacar que a inseminação post mortem é proibida em países como Alemanha, Suécia, França e Espanha. Já a Inglaterra permite a inseminação post mortem, mas não garante direitos sucessórios à criança, a não ser que o falecido tenha deixado documento expresso manifestando que essa seria sua vontade. (CARDIN e CAMILO, 2009).

A discussão em torno da inseminação artificial homóloga post mortem ganhou contornos mundiais depois do caso do ““Affair Parpalaix”, que ocorreu na França, em 1984, quando uma jovem decidiu se submeter à inseminação artificial valendo-se dos gametas armazenados de seu falecido marido, o que foi recusado pela clínica de inseminação, culminando em uma longa disputa judicial, cuja lentidão levou ao perecimento dos espermatozoides.

Ainda há entre os doutrinadores divergências referentes ao tema. Maria Helena Diniz se mostra adepta à vedação da fecundação póstuma e afirma que:

Apesar de sermos contrários a essas novas técnicas de reprodução humana assistida, temos consciência de que o jurista não poderá quedar-se inerte ante essa realidade, ficando silente diante de tão intrincada questão, nem o legislador deverá omitir-se, devendo, por isso, regulá-la, rigorosamente, se impossível for vedá-la (DINIZ, 2002, p. 478).

No Brasil, o Código Civil (CC) vigente estabelece que se presumem concebidos na constância do casamento os filhos havidos por fecundação artificial homóloga, ainda que a fecundação seja realizada após a morte do marido (CC, artigo 1.597,III).

O Conselho Federal de Medicina (CFM), na Resolução n°. 1.358/1992, se manifestou sobre o tema, disciplinando que no momento da criopreservação os cônjuges ou companheiros devem expressar sua vontade por escrito quanto ao destino dado aos pré-embriões.

Aludida resolução do CFM foi revogada recentemente, no último dia 06 de janeiro de 2011, pela Resolução nº 1957/2010 que incluiu a reprodução assistida post mortem dispondo que não constitui ilícito ético referida técnica de reprodução assistida, desde que haja autorização prévia específica do falecido para o uso do material biológico criopreservado de acordo com a legislação vigente, disposição essa que não constava na resolução anterior, mas que veio atender aos progressos verificados na Medicina.

Por sua vez, o Enunciado nº 106 do CJF/STJ dispõe que

[...] para que seja presumida a paternidade do marido falecido, será obrigatório que a mulher, ao se submeter a uma das técnicas de reprodução assistida com material genético do falecido, esteja na condição de viúva, sendo obrigatório, ainda, que haja autorização escrita do marido para que utilize seu material genético após sua morte.

Já o enunciado 107 ensina que, finda a sociedade conjugal pelo divórcio, a regra do inciso IV do art. 1597 do Código Civil somente poderá ser aplicada se houver autorização prévia, por escrito, dos ex-cônjuges, para utilização dos embriões excedentários, só podendo ser revogada até o início do procedimento de implantação desses embriões.

Mister salientar que embora referidas fontes normativas relacionem a técnica de inseminação artificial post mortem exclusivamente ao casamento, deve-se, por analogia, estendê-la também à união estável e à união homoafetiva, esta última recentemente reconhecida como entidade familiar pelo Supremo Tribunal Federal.

Um dos principais limites bioéticos e jurídicos da fecundação post mortem diz respeito à monoparentalidade imposta à criança, o que obstaria o direito à filiação e ao polêmico tema dos direitos sucessórios.

 No que se refere à monoparentalidade, Cardin e Camilo (2009) salientam:

A Constituição Federal apenas reconheceu as famílias monoparentais e não estimulou a criação delas por meio da RA. Os princípios e garantias nela previstos quanto ao planejamento familiar, à paternidade responsável e à filiação estão vinculados ao princípio do melhor interesse do menor, que assegura, além do direito à vida e à dignidade, o direito ao convívio familiar.

Nesse diapasão, constata-se a colisão entre o direito à filiação e o direito procriação, ambos direitos fundamentais.

Indubitavelmente, o bem-estar da criança deve estar acima de qualquer outro interesse, pelo que se conclui que essa técnica de reprodução assistida deve ser utilizada quando não houver outra opção para a realização do projeto parental.

Não menos polêmico é o tema dos direitos sucessórios das crianças havidas por fecundação homóloga post mortem, pois a legislação dispõe que a sucessão decorre da filiação, mas somente estão legitimados a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão (CC, artigo 1798). Tal dispositivo pode ensejar interessantes pendengas jurídicas, pois os filhos havidos por meio dessa técnica ainda não estavam concebidos no instante da morte do varão.

A interpretação restritiva dos artigos 1789 e 1799, I, ambos do Código Civil, pode sim levar à conclusão de que o filho concebido por fecundação homóloga post mortem não terá direitos sucessórios, podendo ser apenas herdeiro testamentário, se assim foi testado pelo genitor. Ocorre que essa solução confere à criança nascida através desta técnica tratamento discriminatório, o que é vedado pela Constituição Federal.

Nesse ponto, cumpre destacar que o direito à sucessão constitui direito fundamental previsto no artigo 5º, XXX, da Constituição Federal e o entendimento de que o filho concebido por fecundação homóloga post mortem não terá direitos sucessórios inegavelmente macula a igualdade entre os filhos assegurada pela Constituição.

À luz dos princípios constitucionais, havendo clara vontade do casal em gerar o fruto deste amor, não pode haver restrição sucessória alguma. Defendendo essa posição, Almeida Júnior (2009) propõe, para que se evite futuro litígio ou prejuízo ao direito constitucional de herança, que se reserve os bens desta prole eventual.

Com fundamento na igualdade dos filhos assegurada pela Constituição e no princípio da dignidade da pessoa humana, há sim a possibilidade do filho nascido de inseminação post mortem vir a herdar.

Em louvável conclusão Farias (2011), ressalta:

Como devido respeito às posições contrárias, parece sensato e justo que seja dado ao filho concebido por inseminação artificial post mortem o mesmo tratamento jurídico destinado aos demais filhos concebidos ou nascidos enquanto vivo o genitor.

O reconhecimento da paternidade é indiscutível, posto que já previsto pelo Código Civil. De outra banda, no que se refere aos direitos hereditários, deverão ser observados todos os direitos e garantias constitucionais no que pertine à partilha de bens em condições de igualdade entre todos os herdeiros em respeito ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

Ora, se o legislador reconhece a filiação (art. 1.597 do Código Civil), deve o aplicador do direito reconhecer os direitos hereditários, embora não previsto expressamente no ordenamento jurídico. Nesse sentindo, Maria Berenice Dias:

Determinando a lei a transmissão da herança aos herdeiros (CC 1.784), mesmo que não nascidos (CC 1.798) e até a pessoas ainda não concebidas (CC 1.799 I), nada justifica excluir o direito sucessório do herdeiro por ter sido concebidos post mortem. Sob qualquer ângulo que se enfoque a questão, descabido afastar da sucessão quem é filho e foi concebido pelo desejo do genitor (DIAS, 2008, p. 117).

Contudo, se reconhecido o direito sucessório do filho inseminado post mortem, os demais herdeiros seriam diretamente afetados, pois a possibilidade de nascimento de um futuro irmão comprometeria a partilha que poderia até já ter sido efetuada, acarretando uma verdadeira insegurança jurídica.

Assim, há aparente conflito de normas entre o direito à sucessão do filho nascido de inseminação homóloga post mortem e a segurança jurídica dos demais herdeiros, devendo ocorrer ponderação dos valores colididos.

Apesar da complexidade da matéria e passados quase dez (10) anos desde a entrada em vigor do atual Código Civil, não há objetivamente corrente jurisprudencial concreta e segura sobre o tema.

A problemática aponta uma aparente colisão de princípios fundamentais, devendo nesse caso sopesar valores. De um lado: a segurança jurídica e de outro a igualdade dos filhos assegurada pela Constituição, a máxima da dignidade da pessoa humana, a liberdade de planejamento familiar e a pluralidade familiar.

O Enunciado 267 aprovado na III Jornada de Direito Civil do CJF sugere que a regra do art. 1.798 do Código Civil deve ser estendida aos embriões formados mediante o uso de técnicas de reprodução assistida, abrangendo, assim, a vocação hereditária da pessoa humana a nascer cujos efeitos patrimoniais se submetem às regras previstas para a petição da herança.

Veja que o aludido Enunciado, ao referir-se aos embriões, leva em consideração o óvulo já fecundado pelo sêmen do de cujus, admitindo a sucessão hereditária do embrião concebido in vitro, porém negando a sucessão do filho havido de fecundação posterior a morte do doador, a partir do sêmen preservado.

No entanto, para se solucionar a questão, deve-se buscar no princípio maior da dignidade da pessoa humana a resposta para o dilema, donde se conclui que o valor que merece especial atenção é o do melhor interesse da criança. Sugere-se, então, que os filhos havidos de fecundação homóloga post mortem recebam o mesmo tratamento jurídico dispensado aos filhos preteridos em inventário e partilha.

Neste caso, mister incluí-los diante de mais uma hipótese de petição de herança, cujo prazo extintivo para a propositura da ação é de dez anos a partir da abertura da sucessão, lembrando que os artigos 198, I, e 208, ambos do Código Civil, não admitem prescrição e decadência de direito de incapazes.

4.2 INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL HETERÓLOGA

A inseminação artificial heteróloga, prevista no art. 1597, V, do Código Civil, dá-se quando o espermatozoide ou o óvulo utilizado na fecundação, ou até mesmo ambos, são provenientes de terceiros que não aqueles que serão os pais socioafetivos da criança gerada, exigindo a lei prévia autorização do marido.

Embora o Código Civil preveja hipóteses em que a filiação restará presumida, na fecundação heteróloga poderá surgir confusão no que se refere à filiação vez que a criança gerada através dessa técnica possuirá um pai biológico diverso daquele que irá registrar e lhe acolher.

A respeito do tema, ressalta-se que o conceito de filiação e sua definição no mundo jurídico têm evoluído, de modo que a filiação afetiva tem preponderado, muitas vezes, sobre a filiação biológica.

Por linhas invertidas, a tutela legal desse tipo de concepção vem fortalecer a natureza fundamentalmente socioafetiva, e não biológica, da filiação e da paternidade. Se o marido autorizou a inseminação artificial heteróloga, não poderá negar a paternidade, em razão da origem genética, nem poderá ser admitida investigação de paternidade, com idêntico fundamento, máxime em se tratando se doadores anônimos. (LÔBO, 2004)

Sobre a questão, o Enunciado nº 111 CJF/STJ diz que

A adoção e a reprodução assistida heteróloga atribuem a condição de filho ao adotado e à criança resultante de técnica conceptiva heteróloga; porém, enquanto na adoção haverá o desligamento dos vínculos entre o adotado e seus parentes consanguíneos, na reprodução assistida heteróloga sequer será estabelecido o vínculo de parentesco entre a criança e o doador do material fecundante.

Assim, não cabe, por exemplo, ação de investigação de paternidade contra o doador, nem mesmo para pleitear alimentos ou direitos sucessórios. No que se refere à filiação, Aldrovandi (2002), afirma o seguinte:

O conceito de filiação e sua definição no mundo jurídico têm evoluído, de modo que a filiação afetiva tem preponderado, muitas vezes, sobre a filiação biológica. A doutrina tem entendido que, nos de inseminação heteróloga, para se definir o parentesco, deverão ser considerados somente o pai ou a mãe socioafetiva, desconsiderando-se a paternidade ou maternidade biológica, à semelhança do que ocorre na adoção.

Tepedino (Apud ALDROVANDI, 2002), no mesmo sentido, entende que, uma vez estabelecida a paternidade e a maternidade do casal de quem encomendou o material genético, é indiferente a origem genética do esperma doado, para efeito de estabelecimento da filiação, de modo que a doação anônima de esperma não acarretaria vínculo de parentesco ao doador.

Segundo entendimento desses nobres doutrinadores, entende-se que a filiação na fecundação heteróloga se estabelece no momento da doação do material, posto que se deve valorizar o caráter socioafetivo da filiação, sendo considerados pais aqueles que acolhem a criança e não o doador. Nesse sentido, frisa-se o art. 1597, V, do Código Civil no qual se reforça o entendimento de que ao dar o consentimento, o marido assume a paternidade, não podendo impugnar a filiação.

Para Maria Helena Diniz (2002, apud LÔBO, 2004), “se fosse admitida a impugnação da paternidade, haveria uma paternidade incerta, devido ao segredo profissional médico e ao anonimato do doador do sêmen inoculado na mulher”.

No tocante ao estado de filiação, mister salientar que a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente, consagram a obrigatoriedade de se considerar primordialmente o interesse maior da criança, impondo-se a predominância do interesse do filho e a ponderação da convivência familiar, constitutiva do estado de filiação.

Nessa seara, mister analisar a origem genética como direito da personalidade, desvinculando-a do estado de filiação. Indubitavelmente, o direito ao reconhecimento da origem genética relaciona-se com o direito à vida, considerando a necessidade de cada indivíduo saber a história de seus parentes próximos para prevenir a própria saúde.

No entanto, o conhecimento dos ascendentes biológicos não implica na atribuição da paternidade, posto que a paternidade deriva do estado de filiação, tecida na complexidade das relações afetivas, de modo que independem da origem (biológica ou não).

A respeito do tema, discorre Lôbo (2004)

O estado de filiação, que decorre da estabilidade dos laços afetivos construídos no cotidiano de pai e filho, constitui fundamento essencial da atribuição de paternidade ou maternidade. Nada tem a ver com o direito de cada pessoa ao conhecimento de sua origem genética. São duas situações distintas, tendo a primeira natureza de direito de família e a segunda de direito da personalidade. As normas de regência e os efeitos jurídicos não se confundem nem se interpenetram.

Pode-se afirmar que a filiação é gênero, do qual são espécies a filiação biológica e a não biológica. Lôbo (2004) conclui:

Nenhuma legislação até agora editada, nenhuma conclusão da bioética, apontam para atribuir a paternidade aos que fazem dação anônima de sêmen aos chamados bancos de sêmen de instituições especializadas ou hospitalares. Em suma, a identidade genética não se confunde com a identidade da filiação, tecida na complexidade das relações afetivas, que o ser humano constrói entre a liberdade e o desejo.

 Indubitavelmente, no estágio em que se encontram as relações familiares no país, não se pode mais confundir estado de filiação com identidade biológica, já que esta é determinada não só do fator biológico, mas principalmente das relações socioafetivas construídas no seio familiar.

Admite-se ainda, à luz dos princípios constitucionais consagrados pela Carta Magna que coadunam pela pluralidade familiar, a inseminação de mulheres solteiras, viúvas ou divorciadas, não obstante ausência de legislação específica, pois prevalece a filiação socioafetiva.

Nesse sentido, ressalta Nogueira (Apud ALDROVANDI e FRANÇA, 2002) que não se pode proibir aludido procedimento tendo em vista o art. 226, § 4º, da Constituição Federal (CF) reconhecer a família monoparental e a lei brasileira permitir a adoção de crianças por apenas um adotante (pai ou mãe).

Em posição diversa, assevera Leite (Apud ALDROVANDI e FRANÇA, 2002) que a inseminação deve atender a um projeto parental e não monoparental, rechaçando aludido procedimento em que a criança já nasceria órfã.

Demonstrando a polêmica da matéria, veja-se:

A inseminação de mulheres viúvas, divorciadas ou solteiras ainda não está regulamentada, sendo certo que logo poderão utilizar-se desses procedimentos em razão da inexistência de qualquer óbice à sua realização, sendo até contemplada pela Resolução do Conselho Federal de Medicina. Embora exista a possibilidade, doutrinadores e médicos divergirem quanto à sua realização, demonstrando a complexidade e a imaturidade da discussão do tema. (NICOLAU JÚNIOR, 2005)

A solução adequada deverá considerar o caso concreto, com fundamento no princípio do melhor interesse da criança, sendo importante destacar que na inseminação artificial heteróloga a vontade de ter um filho e assumir as responsabilidades da paternidade e da maternidade é muito mais significativa do que qualquer traço genético que une pais e filhos, assim como ocorre na adoção.

Sobre os autores
Felipe Antonio Colaço Bernardo

Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-graduado em Gestão de Política Pública Municipal pela Universidade de Franca. Pós-graduado em Direito Civil e Processual Civil pela UCDB/CPC Marcato (lato sensu).

Mariana Galvão Rodrigues da Cunha

Bacharel em Direito pela Universidade de Uberaba. Pós-graduanda em Direito Público pela PUC-MINAS (lato sensu). Pós-graduada em Direito Civil e Processual Civil pela UCDB/CPC Marcato (lato sensu).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BERNARDO, Felipe Antonio Colaço; CUNHA, Mariana Galvão Rodrigues. Aspectos jurídicos da reprodução humana assistida. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3588, 28 abr. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24261. Acesso em: 2 nov. 2024.

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