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Prioridade na tramitação de processos em demanda de tutela de saúde.

Mecanismo processual coadjuvante do defensor na defesa da vida

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19/06/2013 às 09:38
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3- Possibilidade de aplicação do princípio da reserva do possível a afastar a aplicação da prioridade

Coube no Pós-Guerra, a Otto Bachof[11] trazer o conceito de mínimo existencial, pois, já no início da década de 1950, considerou que o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. I, da Lei Fundamental da Alemanha, na seqüência referida como LF) não reclama apenas a garantia da liberdade, mas também um mínimo de segurança social já que, sem os recursos materiais para uma existência digna, a própria dignidade da pessoa humana ficaria sacrificada. Por esta razão, o direito à vida e integridade corporal (art. 2º, inc. II, da LF) não pode ser concebido meramente como proibição de destruição da existência, isto é, como direito de defesa, impondo, ao revés, também uma postura ativa no sentido de garantir a vida.

Cerca de um ano depois da paradigmática formulação de Bachof, o Tribunal Federal Administrativo da Alemanha (Bundesverwaltungsgericht), já no primeiro ano de sua existência, reconheceu um direito subjetivo do indivíduo carente a auxílio material por parte do Estado. Argumentando com base no postulado da dignidade da pessoa humana, no direito geral de liberdade e no direito à vida, que o indivíduo, na qualidade de pessoa autônoma e responsável, deve ser reconhecido como titular de direitos e obrigações, o que implica principalmente a manutenção de suas condições de existência em decisão chamada Numerus Clausus[12].

No Brasil, a decisão emblemática foi proferida pelo Supremo Tribunal Federal, relatada pelo Ministro Celso de Mello (Agravo Regimental no RE nº 271.286-8/RS, publicada no DJU em 24.11.2000) onde restou consignado – igualmente em hipótese que versava sobre o fornecimento de medicamentos pelo Estado (no caso, paciente portador de HIV) que a saúde é direito público subjetivo, não podendo ser reduzido à “promessa constitucional inconsequente”. Mais recentemente, a paradigmática decisão monocrática do STF proferida na ADPF n° 45, igualmente da lavra do Ministro Celso de Mello, afirmando – embora não tenha havido julgamento do mérito – a dimensão política da jurisdição constitucional e a possibilidade de controle judicial de políticas públicas quando se cuidar especialmente da implementação da garantia do mínimo existencial. Tal entendimento foi reiterado em decisão mais recente relatada pelo mesmo Ministro Celso de Mello (RE nº 436996/SP) reconhecendo um direito subjetivo de acesso a uma vaga na rede pública para crianças de até seis anos de idade em creches e pré-escolas também com fundamento na noção de mínimo existencial e, de modo especial, com suporte normativo expresso no art. 208 inciso IV da CF.

Por outro lado, seja com relação aos direitos sociais a prestações de um modo geral, seja relativamente à própria garantia do mínimo existencial, não há como desconsiderar que as prestações necessárias à efetivação dos direitos fundamentais dependem sempre da disponibilidade financeira e da capacidade jurídica de quem tenha o dever de assegurá-las. Por conta de tal objeção, sustenta-se que os direitos a prestações e o mínimo existencial encontram-se condicionados pela assim designada “reserva do possível” (Vorbehalt des Möglichen) pela relação que esta guarda, entre outros aspectos, com as competências constitucionais, o princípio da separação dos Poderes, a reserva de lei orçamentária, o princípio federativo.

Já há tempo se averbou que o Estado dispõe apenas de limitada capacidade de dispor sobre o objeto das prestações reconhecidas pelas normas definidoras de direitos fundamentais sociais[13], de tal sorte que a limitação dos recursos constitui, segundo alguns, em limite fático à efetivação desses direitos[14].

Constatam-se duas facetas diversas, porém intimamente entrelaçadas, que caracterizam os direitos fundamentais sociais prestacionais. É justamente em virtude destes aspectos que se passou a sustentar a colocação dos direitos sociais a prestações sob o que se denominou de uma “reserva do possível”, que, compreendida em sentido amplo, abrange mais do que a ausência de recursos materiais propriamente ditos indispensáveis à realização dos direitos na sua dimensão positiva[15].

A construção teórica da “reserva do possível” tem origem na Alemanha, especialmente a partir do início dos anos de 1970 [16]. De acordo com a noção de reserva do possível, a efetividade dos direitos sociais a prestações materiais estaria sob a reserva das capacidades financeiras do Estado, uma vez que seriam direitos fundamentais dependentes de prestações financiadas pelos cofres públicos.

Com efeito, mesmo em dispondo o Estado dos recursos e tendo o poder de disposição, não se pode falar em uma obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável[17]. Assim, poder-se-ia sustentar que não haveria como impor ao Estado a prestação de assistência social a alguém que efetivamente não faça jus ao benefício, por dispor, ele próprio, de recursos suficientes para seu sustento. O que, contudo, corresponde ao razoável também depende – de acordo com a decisão referida e boa parte da doutrina alemã – da ponderação por parte do legislador.

Dessarte, pela doutrina tedesca, a reserva do possível apresenta pelo menos uma dimensão tríplice, que abrange:

a) a efetiva disponibilidade fática dos recursos para a efetivação dos direitos fundamentais;

b) a disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos, que guarda íntima conexão com a distribuição das receitas e competências tributárias, orçamentárias, legislativas e administrativas, entre outras, e que, além disso, reclama equacionamento, notadamente no caso do Brasil, no contexto do nosso sistema constitucional federativo;

c) na perspectiva do eventual titular de um direito a prestações sociais, o problema da proporcionalidade da prestação, em especial no tocante à sua exigibilidade e, também, da sua razoabilidade.

Além disso, assume caráter emergencial uma crescente conscientização por parte dos órgãos do Poder Judiciário, de que não apenas podem como devem zelar pela efetivação dos direitos fundamentais, mas que, ao fazê-lo, haverão de cobrar com máxima cautela e responsabilidade, seja ao concederem (seja quando chegarem) um direito subjetivo a determinada prestação social. Também quando o poder público na consecução das metas constitucionalmente fixadas, declararem a inconstitucionalidade de alguma medida estatal com base na alegação de uma violação de direitos sociais, sem que tal postura venha a implicar necessariamente uma violação do princípio democrático e do princípio da separação dos Poderes.

Assim, levar a sério a “reserva do possível” (e ela deve ser levada a sério, embora sempre com as devidas reservas) significa também, especialmente em face do sentido do disposto no art. 5º, § 1º, da CF, que cabe ao poder público o ônus da comprovação da falta efetiva dos recursos indispensáveis à satisfação dos direitos a prestações, assim como da eficiente aplicação dos mesmos. Por outro lado, para além do fato de que o critério do mínimo existencial – como parâmetro do reconhecimento de direitos subjetivos a prestações – por si só já contribui para a “produtividade” da reserva do possível.

Neste contexto, também assume relevo o já referido princípio da proporcionalidade (Üntermassverbot x Übermassverbot), que deverá presidir a atuação dos órgãos estatais e dos particulares, seja quando exercem função tipicamente estatal, mesmo que de forma delegada (com destaque para a prestação de serviços públicos), seja aos particulares de um modo geral[18].Como nos ensina Canotilho:

 “não pode ser reduzida a limite posto pelo orçamento, até porque, se fosse assim, um direito social sob ‘reserva de cofres cheios’ equivaleria, na prática a nenhuma vinculação jurídica”[19].

Reconhecendo limites à teoria da reserva do possível, Canotilho[20] afirma que deve haver relativização para se concretizarem os direitos fundamentais, e mais especificamente, os direitos sociais. O Supremo Tribunal Federal também reconheceu limites a teoria da reserva do possível no sentido de que ela cede ante prestações que alicerçam o mínimo existencial.

“Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível”, ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível, não pode ser invocada pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade”[21].


4- A tutela de saúde como mais uma hipótese de prioridade processual

 Parece claro que a evolução no sentido da prioridade de tramitação processual de idosos e pessoas gravemente doentes não se configura como garantia plena a evitar injustiças graves ocasionadas pela demora processual a colocar em risco a dignidade da pessoa humana.

O conceito de doença grave, cruelmente, acaba por afastar a prioridade das tutelas de saúde em geral, o que poderá fazer prevalecer o trâmite de processos de cunho eminentemente patrimonial dos beneficiados pelos atos legislativos mencionados. Assim, uma demanda de cobrança poderá prevalecer ante uma demanda de pleito de medicamento somente pela circunstância de que o magistrado, em um primeiro momento, não considere patologia grave.

Com o correr do tempo, a patologia que não era considerada impactante, pela demora no enfrentamento do pleito poderá evoluir ensejando, inclusive, perigo de morte ao jurisdicionado.


5- Reflexões finais:

Ante os argumentos expendidos, homenageia-se o advento de normas que conferem a preferência do trâmite processual a determinados jurisdicionados em situação vulnerável.

Frisa-se, também, a impossibilidade de que tais garantias sejam restritas pela reserva do possível sob pena de violar diretamente o mínimo existencial alicerçador da dignidade da pessoa humana.

Ressalta-se, contudo a necessidade de ser estabelecido como pleito jurisdicional de tramitação preferencial, sobre todas as demais questões, os pleitos de tutela de saúde em razão de sua importância basilar à manutenção da dignidade da pessoa humana.


Referências bibliográficas:

ARRUDA, Samuel Miranda. O direito fundamental à razoável duração do processo. Brasília: Brasília Jurídica, 2006.?BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2002, páginas 46 e 47.

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Notas

[1] Artigo XXV 1. Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle.

[2] Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

[3] DALLARI. Sueli Gandolfi., 1995. Os Estados Brasileiros e o Direito à Saúde, São Paulo, Editora Hucitec, p. 133.

[4] DA SILVA, José Afonso., 1999. Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo, Malheiros Editores,p. 871.

[5] Stumm, Raquel Denise. Princípio da Proporcionalidade no Direito Constitucional Brasileiro, p. 129.

[6]Hesse, Komrad in: EuGRZ (Zeitschrift Europàische Grundrechte) Bestand und Bedeutung der Grundrechte in der Bundesrepublik Deutschland / Bericht für die IV. Konferenz der Europäischen Verfassungsgerichte, 1978 in Wien, EuGRZ 1978, P. 433.

[7]  Vidal Neto,Pedro.  Estado de Direito, editora LTR, Direitos Individuais e Sociais, p. 121 e ss.

[8] Murswiek, Dietrich in: HBStR V, pp. 248 e ss.

[9] Bieback, Karl-Jürgen  in: EuGRZ (Zeitschrift Europàische Grundrechte)) 1985, p. 659.

[10] ARRUDA, Samuel Miranda. O direito fundamental à razoável duração do processo. Brasília: Brasília Jurídica, 2006.?BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2002, páginas 46 e 47.

[11] Bachof,Otto. “Begriff und Wesen des sozialen Rechtsstaates”, in: VVDStRL nº 12 (1954), p. 42-3.

[12] BVerwGE 1, 159 (161 e ss.), decisão proferida em 24.06.1954.

[13] Brunner, Georg.  Die Problematik der sozialen Grundrechte, p. 14 e ss.

[14]  Starck, Christian in: BUNDESVERFASSUNGSGERICHT UND GRUNDGESETZ II, p. 518

[15] Figueiredo, Mariana Filchtiner,Direito Fundamental à saúde, editora Livraria do Advogado, p. 131 e ss.

[16]Canotilho, José Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 108.

[17] BVerfGE 33, 303 (333).

[18] Sobre o tema, especialmente no que diz com os direitos fundamentais sociais, ver especialmente Daniel Sarmento Direitos Fundamentais e Relações Privadas, Rio de Janeiro: Renovar, p.332 e ss., e, por último, Ingo Sarlet, “Direitos Fundamentais Sociais, Mínimo Existencial e Direito Privado”, in: Revista de Direito do Consumidor n° 61, janeiro-março de 2007, p. 90 e ss.

[19] Grau,Eros. “Realismo e Utopia Constitucional”, in: Fernando Luiz Ximenes Rocha e Filomeno Moraes (coord.), DireitoConstitucional Contemporâneo. Estudos em Homenagem ao Professor Paulo Bonavides, Belo Horizonte Del Rey, 2005, p. 125.

[20] CANOTILHO, José Joaquim Gomes apud SILVA, Cleber Demétrio Oliveira da. Os Consórcios Públicos e a efetividade dos direitos fundamentais à saúde e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, 2008, 167 f. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais, Pontifícia  Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008, p. 141.

[21] Supremo Tribunal Federal, Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental  nº 45, decisão monocrática do Ministro Celso de Mello.

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Sobre o autor
Arcênio Brauner Júnior

Defensor Público Federal e Defensor de Direito Processual Civil

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRAUNER JÚNIOR, Arcênio. Prioridade na tramitação de processos em demanda de tutela de saúde.: Mecanismo processual coadjuvante do defensor na defesa da vida. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3640, 19 jun. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24727. Acesso em: 22 dez. 2024.

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