1. Introdução. 2. Um conceito jurídico de saúde mental - poder judiciário. 3. Concretização judicial de direitos fundamentais da pessoa portadora de transtorno mental. 4. A jurisprudência concretizadora: uma experiência a realizar a dignidade do portador de transtorno mental. 4.1. Fornecimento de medicação: a saúde não é uma promessa constitucional inconsequente. 4.2. Saúde como direito líquido e certo. 4.3. O habeas corpus como garantia do direito à liberdade na internação psiquiátrica involuntária irregular. 4.4. O direito de ir e vir à unidade de tratamento. 5. Considerações finais – referências bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
Fiat Lux! No princípio Deus criou o céu e a terra. A terra estava deserta, vazia; as trevas cobriam o abismo. Sobre as águas, apenas um vento pavoroso. Deus disse: haja luz e houve luz (Gênesis), e alguém no mundo entendeu que Deus falava latim.
As interações sociais estão sujeitas a múltiplos fatores pessoais, sociais, fisiológicos, de personalidade, de linguagem, psicológicos etc, que influenciam os processos de comunicação humana. Como observam Paul Watzlawick, Janet Helmick Bealvin, e Don D Jackson, a ilusão mais perigosa de todas é a de que existe apenas uma realidade. Aquilo que de fato existe são várias perspectivas diferentes da realidade, algumas das quais contraditórias, mas todas resultantes da comunicação e não reflexos de verdades eternas e objetivas[1].
Quando a luz se fez pela primeira vez, a humanidade, ainda sem espelhos, relegou a loucura ao signo da animalidade, passando em seguida sobre o simbólico dos “loucos bêbados”, “loucos sem memória e entendimento”, loucos mansos e semimortos”, “loucos avoados e sem cérebro” - que passeavam escravizados na Narrenschiff[2] pelos rios calmos da Renânia e dos canais flamengos – para aportar na grande internação manicomial de que nos fala a obra inigualável de Michel Foucault[3].
O direito, notadamente a civilística, antecipando-se às teorias médicas, apurou a sua análise do fenômeno da loucura, registrando o aludido filósofo francês que num sentido, é justo dizer que é sobre o fundo de uma experiência jurídica da alienação que se constituiu a ciência médica das doenças mentais[4].
A psiquiatria, disciplina nascida no século XIX em decorrência da crença de que os manicômios para guarda poderiam ter uma função terapêutica[5], desenvolve o conceito de “doença mental”, inicialmente adotando parâmetros das doenças orgânicas ou somáticas.
O paradigma, até então, tanto para o direito quanto para a psiquiatria, era a “doença mental”.
Mas, a segunda guerra mundial, com seus extremos de destruição, levou às duas disciplinas à percepção da fragilidade de seus poderes isolados. O direito percebeu que a sua tão propalada “pureza”, e mera legalidade, defendidas pelo positivismo jurídico”[6], tinham a capacidade de servir a qualquer senhor, como bem demonstraram as leis e o ordenamento jurídico dos nazistas. A psiquiatria teve que reconhecer, para além das bases biológicas, que o indivíduo como agente sócio-cultural é construído segundo diretrizes simbólicas, semióticas e virtuais que o orientam segundo representações e significações que lhe determinam um lugar e uma identidade no sistema de produção de sua cultura e sociedade[7].
Enquanto o direito, agora aberto aos demais ramos do conhecimento humano, formulava teorias e práticas para superar a barbárie, transformando em normas jurídicas eficazes valores éticos e morais, na tentativa de construir dispositivos jurídicos eficientes que não mais permitissem outro episódio autoritário universal[8], a área da saúde mental (não mais só da psiquiatria), mormente as experiências de Franco Basaglia nas cidades italianas de Triste e Goriza, ofertaram ao mundo uma nova possibilidade: a chamada “desinstitucionalização da loucura[9]”.
Para desinstitucionalizar a loucura uma reforma psiquiátrica é exigida, uma reforma, sobretudo, no conceito de “doença mental” que passa a ser desconstruído para dar lugar a nova forma de perceber a loucura enquanto “existência-sofrimento[10]”. Como pondera Nacile Daúd Júnior, exige-se uma ressignificação dos conceitos de loucura e doença mental, considerando a doença mental um fenômeno complexo relacionado ao drama existencial humano, combatendo a simplificação que reduz o conceito ao modelo clínico médico-psicológico causa[11].
Para lidar com a realidade do pós-guerra o direito se transforma. Numa revolução lenta e silenciosa realiza mudanças de paradigmas, atribuindo à norma constitucional o status de norma jurídica (anteriormente não passava de um documento essencialmente político, sem vocação imperativa, apenas indicativa), cuja não observância deflagra os mecanismos jurídicos próprios de coação. Essa nova norma jurídica, superior a todas as demais[12], possui estrutura semântica aberta (princípios), para proporcionar a incorporação em si de valores éticos e morais do humanismo, exigindo uma interpretação diferenciada (hermenêutica constitucional), a ser realizada por jurisdição devidamente constitucionalizada, que passa a ter a sua importância aumentada na contemporaneidade, deixando para trás a tão conhecida supremacia do parlamento.
Verdadeira revolução foi a constitucionalização dos direitos humanos, retirando destes a inaplicabilidade, e transformando-as em “direitos fundamentais”, protegidos dos perigos do processo político majoritário, aplicáveis contra o Estado e particulares, resguardados pelo Poder Judiciário, contando com um amplo rol de garantias processuais, bem como novas disciplinas, como o direito constitucional processual, que agora fazem parte do direito constitucional contemporâneo.
Marcelo Lima Guerra esclarece que os direitos fundamentais, como categoria jurídica dotada de contornos próprios, como atualmente se reconhece que eles são, nascem no constitucionalismo do século XX. Contudo, boa parte dos valores e exigências que têm como conteúdo são há muito reivindicados pelo humanismo e incorporados pela cultura jurídica. O que caracteriza os direitos fundamentais, como uma nova categoria jurídica,é, precisamente, a força jurídica reconhecida a tais valores. Em outras palavras, é o regime jurídico a que se acham submetidos os direitos fundamentais o novum que os identifica como uma categoria específica[13].
Das necessidades da reforma psiquiátrica, quando verdadeiramente se fez luz, também restou estabelecido um novo paradigma: a “saúde mental”. Esse novo conceito, que é em verdade uma exigência também prática de todos os povos, está necessariamente ligado ao princípio jurídico que sustenta toda a estrutura do direito constitucional contemporâneo: o “princípio da dignidade humana”.
É na dignidade da pessoa portadora de transtorno mental[14] que o direito constitucional contemporâneo se encontra com as possibilidades do conceito de saúde mental. A matriz genética de todos os direitos fundamentais, também alberga eficientemente uma reforma psiquiátrica verdadeira e eficaz, aquela que, sem exceção, terá de ser construída com instrumentos materiais e processuais da Constituição, a norma suprema do Estado Democrático brasileiro, maior e mais poderoso depositório de possibilidades em saúde mental.
Não se quer dizer que a “doença mental” não mais existe. A idéia de que a doença mental seria um mito restou consignada apenas nas relevantes e corajosas percepções de Thomas S. Azasz[15] . Qualquer um que experimente o sofrimento psíquico pode dar o testemunho de quanto ele pode ser destruidor e letal, assim como a assistência psiquiátrica distante dos novos paradigmas do direito constitucional e da saúde mental.
No Brasil estamos com cerca de 40 anos de atraso na produção teórica e jurisprudencial entre “direitos fundamentais” e saúde mental. Impressiona, ressalvadas exceções valorosas, o descaso que fazem os juristas acerca do tema. A rigor, tem sido a doutrina de bravos e humanistas profissionais da saúde, como José Jackson Coelho Sampaio, Paulo Amarante, Pedro Gabriel Godinho Delgado, entre outros, que tem explorado a intercessão do direito e da saúde mental, contudo, sempre sob a perspectiva dos “direitos humanos”. Há uma nova tarefa a cumprir, a “concretização”, e ela exige um olhar agora para os “direitos fundamentais”.
Não se questiona que na história da humanidade as declarações de direitos humanos foram e são muito importantes, mas é também inegável que os novos tempos exigem a realização plena dos direitos declarados.
Norberto Bobbio esclarece que o problema grave de nosso tempo, com relação aos direitos do homem, não era mais o de fundamentá-los, e sim o de protegê-los.
Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é a sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados[16] .
Estamos diante de novas possibilidades. Na contemporaneidade do direito constitucional loucura é somente o não-direito. As esperanças da saúde mental afloram não somente de doutrinas e leis, mas, sobretudo, da Constituição Federal de 1988, e o guardião desse documento máximo é o Poder Judiciário.
A humanidade não pode esquecer as lições do arbítrio universal, precisa sempre recomeçar, nunca mais sem o princípio da dignidade humana, pois, como lembra Hannah Arendt, também é verdade de que todo fim na história constitui necessariamente um novo começo; esse começo é a promessa, a única “mensagem” que o fim pode produzir[17].
Na aproximação entre saúde mental e Poder Judiciário pode estar o princípio do fim da era manicomial, o verdadeiro começo da dignidade da pessoa portadora de transtorno mental.
2. UM CONCEITO JURÍDICO DE SAÚDE MENTAL – PODER JUDICIÁRIO
Intermináveis são as discussões sobre os conceitos de “doença mental” e “saúde mental”. Não cabe neste estudo, porém, digressões sobre os diversos autores e movimentos responsáveis pela referidas discussões. Importante, no entanto, é saber que inicialmente, do ponto de vista estritamente médico, falar em saúde mental seria falar de ausência de doença, ou seja, da erradicação da doença mental[18].
Essa visão estrita do conceito de saúde mental sofreu sensível evolução, mormente por influência da definição de “saúde” adotada pela Constituição da Organização Mundial de Saúde (OMS ou WHO)[19], em 1946, que, superando a concepção simples de saúde como ausência de doença, remete a uma expansão de sentido ao firmá-la como “o estado de completo bem-estar físico, mental e social”. Posteriormente a aludida definição foi alterada de forma a se incluir no conceito de saúde a capacidade para produzir uma vida social e economicamente produtiva[20].
Face às necessidades de concretização dos direitos das pessoas portadoras de transtorno mental, a discussão teórica sobre o termo médio que corresponda a uma barreira bem definida entre o normal e o mórbido[21], não pode impedir a imediata percepção de um conceito jurídico de saúde mental, uma definição adequada a ser utilizada quando da atividade jurisdicional.
Fernandes da Fonseca propõe entender-se “saúde mental” como o sistema de equilíbrio funcional do organismo capaz de permitir ao indivíduo uma boa adaptação social[22]. Contudo, talvez a mais legítima definição seja mesmo a da Organização Mundial de Saúde, para quem saúde mental não é apenas a ausência de transtorno mental. É definida como um estado de bem estar que permite que cada indivíduo se aperceba do seu próprio potencial, lide com o stress normal da vida, possa trabalhar produtiva e proveitosamente e seja capaz de dar o seu contributo à sua comunidade[23].
Como lembram Maria Victoria Famá, Marisa Herrera e Luz María Pagano, também é possível compreender-se “saúde mental” para fazer referência a um conjunto de conhecimentos e ações de caráter público e privado tendentes a prevenir a aparição de transtornos mentais e desajustes de conduta em pessoas e instituições, a detectar e tratar precocemente os casos existentes, e a produzir a reinserção social de quem tenha sido afetado por alterações psicológicas[24].
Embora não seja possível falar-se em um conceito “oficial” de saúde mental, convém reconhecer que o exercício da jurisdição no caso concreto pode perfeitamente adotar as definições acima aludidas, pois ao Poder Judiciário compete interpretar os chamados “conceitos indeterminados”, principalmente porque legalmente obrigado a resolver qualquer pendência que lhe chegue às mãos. A pacificação social a que se destina o direito não pode esperar eternamente por discussões doutrinárias.
Sueli Gandolfi Dallari esclarece:
A Constituição brasileira de 1988 forneceu muitas indicações para orientar o aplicar do direito na precisão do conceito jurídico de saúde. Sabe-se por decorrência da origem natural dos conceitos jurídicos – que a palavra saúde apresenta hodiernamente um núcleo, claro, preciso e determinado: a ausência manifesta de doença. Por outro lado, pela mesma razão, divisa-se um halo nebuloso, expresso por termos imprecisos, ou seja, o bem-estar físico, mental e social. O intérprete constitucional está, pois, obrigado, desde o exame dos princípios que informaram a política constituinte, passando pela compreensão das diretrizes na Constituição e alcançando, finalmente, o estudo das normas jurídicas nele incidentes, ao preenchimento do conceito de saúde.
A Lei maior da República estipulou critérios para que a saúde seja corretamente determinada em seu texto. Assim, vinculou sua realização às políticas sociais e econômicas e ao acesso às ações e serviços destinados, não só, à sua recuperação, mas também à sua promoção e proteção[25].
No ordenamento jurídico constitucional do Brasil todo juiz é um legítimo intérprete e aplicador da Constituição. O Supremo Tribunal Federal, no entanto, é o “guardião” da Carta Magna (art. 102, da CF/88), podendo desempenhar o papel de “regulador” e determinador da própria identidade cultural da República (Ebsen) e de controlador do “legislador mastodonte e da administração leviathan”(Cappelletti)[26] .
A Constituição da República Federativa do Brasil prescreve que saúde é “direito de todos e dever do Estado” (art. 196), sendo que inúmeras vezes a Corte Suprema declarou que a referida norma “não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente” (AGRRE 271286/RS, Ministro Celso de Mello, DJ de 24/11/2000).
Restou também definido pelo STF que em matéria de saúde pública a responsabilidade dos entes da Federação (União, Estados, Distrito Federal e dos Municípios) é solidária (RE 195.192-3/RS, DJ de 22/02/2000), ficando estabelecido que inicialmente compete aos poderes executivos e legislativos a implementação de políticas públicas em saúde.
Não podendo, entretanto, a Constituição Federal tornar-se uma promessa inconsequente, na omissão da Administração Pública, cabe ao Poder Judiciário a realização das medidas necessárias ao cumprimento do aludido art. 196 da Carta Política. Em casos de inércia do poder público, compete ao Poder Judiciário o controle da referida omissão, determinando a concretização de medidas para a plena realização do direito à saúde, sem que possa a Administração Pública alegar contingência de orçamento, frente o caráter cogente da norma constitucional comentada e à necessidade de respeito ao chamado “mínimo existencial[27]” (RE 482.611/SC, j. em 23/03/2010).
Como também já definiu o Superior Tribunal de Justiça “a omissão injustificada da administração em efetivar políticas públicas constitucionalmente definidas (como no caso da saúde, por exemplo) e essenciais para a promoção da dignidade humana não deve ser assistida passivamente pelo Poder Judiciário” (RESP 1041197/MS, DJ de 16/09/2009).
É lógico que o princípio da separação dos poderes não recomenda que o Poder Judiciário - órgão relativamente isento de responsabilidade, e não escolhido pelo povo - possa impor a sua hierarquia de valores ao interpretar as disposições constitucionais, mas é absolutamente inaceitável que os poderes executivo e legislativo se omitam diante das políticas públicas em saúde preconizadas pela própria Constituição.
Sendo assim, a manifestação do Poder Judiciário com relação à saúde e suas políticas públicas, embora excepcional, é medida possível, cidadã e garantida pelo Supremo Tribunal Federal.
Embora não tenha se manifestado a Corte Suprema sobre o conteúdo específico direito fundamental à saúde mental, é plenamente possível derivá-lo das disposições constitucionais relativas à saúde, abrindo-se para a sua concretização toda a imensidão de possibilidades da jurisprudência da Corte Máxima.
Sendo a saúde “direito de todos e dever do Estado” (art. 196), convém perceber, por inclusão lógica[28], que também a “saúde mental” é direito de todos e dever do Estado. Os direitos fundamentais das pessoas portadoras de transtorno mental, portanto, possuem aplicabilidade imediata (art. 5º, § 1º, da CF/88) e eficácia horizontal e vertical, obrigando o poder público e os particulares, como enuncia a doutrina constitucional e proclama o Supremo Tribunal Federal:
As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados[29].
Dessa forma, o “direito fundamental à saúde mental”, implica direito constitucional subjetivo, garantindo um estado de bem estar que permita a cada indivíduo a percepção e fruição do seu próprio potencial, para que possa lidar com o stress normal da vida e trabalhar produtiva e proveitosamente, a fim de ser capaz de dar o seu contributo à sua comunidade.
Noutra vertente, também acima enunciada, o “direito fundamental à saúde mental” implica um conjunto de ações de caráter público e privado tendentes a prevenir a aparição de transtornos mentais e desajustes de conduta em pessoas e instituições, a detectar e tratar precocemente os casos existentes, e a produzir a reinserção social de quem tenha sido afetado por alterações psicológicas.
Políticas de saúde mental são, portanto, direito de todos e dever do Estado (gênero)[30], mormente quando a OMS já em 2001 alertava que cerca de 450 milhões de pessoas sofriam de transtornos mentais ou de comportamento no mundo, sem contar o atual e cotidiano aumento e abuso de drogas e álcool, principalmente do crack, que possui efeito fidelizador imediato[31] .
O conteúdo do “direito fundamental à saúde mental” já foi amplamente delimitado no direito comparado[32], e inclui: o direito à internação e a resistir à internação, o direito a ser informado, ao consentimento informado, à autonomia, ao diagnóstico, ao prognóstico, tratamento e reabilitação adequados, direito ao tratamento menos invasivo, a recusa de determinado tratamento, direito ao devido processo legal de internação psiquiátrica involuntária, a alta médica, a comunicação, a seguridade, à dignidade, à indenização em caso de danos, à proteção do patrimônio, a não discriminação, a confidencialidade, a assistência em comunidade, a reabilitação e ressocialização, direito à continuidade do tratamento, direito à terapia farmacológica adequada, direito de participar do próprio tratamento, direito a um registro preciso do processo terapêutico etc.
Por sua vez, como lembra Luís Roberto Barroso, todas as normas constitucionais são normas jurídicas dotadas de eficácia e vinculadoras de comandos imperativos. Nas hipóteses em que tenham criado direitos subjetivos – políticos, individuais, sociais ou difusos – são elas, como regra, direta e imediatamente exigíveis, do poder Público ou do particular, por via das ações constitucionais e infraconstitucionais contempladas no ordenamento jurídico. O Poder Judiciário, como conseqüência, passa a ter papel ativo e decisivo na concretização da Constituição[33].
Daí, portanto, a importância da aproximação entre saúde mental e o poder judiciário para a concretização dos direitos fundamentais da pessoa portadora de transtorno mental.
É de se notar, entretanto, que essa aproximação possui um risco. Diz respeito à tendência do poder judiciário a se filiar às diretrizes da psiquiatria tradicional, olvidando os salutares ventos da reforma psiquiátrica.
Michel Landry[34] alerta para certa obstinação na justiça para privilegiar o papel do psiquiatra em detrimento de outras ciências humanas, o que deriva de sua preocupação em evitar o demasiado aprofundamento da criminogênese, como se a sociedade temesse descobrir um estreito parentesco entre o louco, o criminoso e o homem considerado normal. Pois se o louco é o avalista da ordem racional (M. Foucault), o criminoso deve ser, por sua vez, o avalista da honestidade e respeitabilidade dos outros.
Thomas Szasz[35] registrou que entre a lei e a psiquiatria existe um estabelecido e tácito acordo que permite ao psiquiatra institucional dizer quais pessoas são ‘mentalmente doentes’ e ‘perigosas’ e aos tribunais corroborarem ou rejeitarem esses diagnósticos. Na realidade, esses pareceres psiquiátricos são rotineiramente carimbados pelos tribunais.
Pesquisa realizada no Manicômio Judiciário do Estado do Ceará[36] também confirma a aceitação absoluta, por parte do judiciário, do resultado de perícias psiquiátricas, numa atividade que transforma o ato de julgamento em mera chancela mecânica.
Desta forma, é prudente não esquecer que o chamamento do judiciário para concretizar direitos dos portadores de transtornos mentais, embora urgente e necessário, deve ser iniciado por uma apresentação da nova saúde mental constitucional aos magistrados, matéria ainda a ser desenvolvida plenamente nos planos teórico e prático, embrião de novas possibilidades, esperança e preparação de um futuro necessariamente muito melhor, onde a linguagem da diferença finalmente nos traduzirá em seres iguais.
Exemplo de atuação conservadora por parte do poder judiciário, que apenas reforça o estigma e o preconceito, é a exigência jurisprudencial de interdição total[37] para o recebimento do benefício da prestação continuada[38] pelo portador de transtorno mental, quando o art. 20 da LOAS não faz esta exigência. Pesquisa realizada por Patrícia Ruy Vieira[39] revela a tendência do poder judiciário em decretar interdições totais, ignorando as virtudes da interdição parcial. Lembra o Conselho Federal de Psicologia, contudo, que pessoa incapacitada para vida independente e para o trabalho é aquela que precisa de ajuda para a sua própria sobrevivência. Isso não significa que ela esteja incapacitada para tomar decisões a respeito de sua própria vida, que não possa ter uma conta no banco, que não possa sair sozinha de casa, etc. A maioria das pessoas que possuem alguma doença mental é completamente capaz de regular sua vida, como qualquer outra, pelo menos na maior parte do tempo. Seu transtorno, no entanto, pode lhes impedir de trabalhar normalmente, e isso é o que deve ser medido para efeito do benefício[40].
Outro exemplo de atuação conservadora foi percebido em pesquisa[41] realizada no Manicômio Judiciário do Estado do Ceará, onde todas as decisões acerca da averiguação de cessação de periculosidade eram meras chancelas dos laudos psiquiátricos, documentos de fundamentação absolutamente iguais para todos os casos. A apreciação judicial anulou-se diante das prescrições da psiquiatria.
Para a adequada aproximação entre saúde mental e poder judiciário, portanto, é necessário municiar este com os paradigmas da reforma psiquiátrica e dos Princípios para a Proteção de Pessoas Acometidas de Transtorno Mental e para a Melhoria da Assistência à Saúde Mental da Organização das Nações Unidas – ONU. O direito não se realiza sozinho, exige luta[42].