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Concretização judicial de direitos fundamentais da pessoa portadora de transtorno mental

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Agenda 03/01/2014 às 11:22

3. CONCRETIZAÇÃO JUDICIAL DE DIREITOS FUNDAMENTAIS DA PESSOA PORTADORA DE TRANSTORNO MENTAL 

As grandes mudanças de paradigmas no Direito, ocorridas ao longo do século XX, deram à norma constitucional o status de norma jurídica, adquirindo aquela as características desta[43], inclusive o atributo da imperatividade, ou seja, a nova norma jurídica constitucional possui comandos, mandamentos, ordens, dotados de força jurídica, e não apenas moral[44] .

A norma constitucional, dotada de superioridade hierárquica, possui uma estrutura semântica aberta, veiculando conceitos vagos ou ambíguos, dada a natureza política das Cartas Constitucionais, cujas normas devem traduzir o encontro de uma pluralidade de valores, muitas vezes conflitantes, bem como possibilitar e promover o consenso entre e antagônicas forças sociais[45].

Como esclarece Marcelo Lima Guerra:

Além disso, não há como firmar os valores fundamentais da ordem jurídica – uma das missões específicas de uma Constituição digna desse nome – através de uma linguagem marcada pelo tecnicismo: é a ‘voz do povo’, a linguagem natural e ordinária, com todas as suas ‘imperfeições’, ambigüidades e vaguezas, aquela que melhor se presta a veicular as normas constitucionais[46]                                 

Sendo, portanto, a norma constitucional tradutora de uma pluralidade de valores, veiculando uma linguagem natural e ordinária, com imperfeições, ambigüidades e vaguezas, convém admitir a necessidade de uma hermenêutica própria para interpretá-la, uma vez que a hermenêutica clássica, baseada nos métodos literal, gramatical, lógico e sistemático não possui instrumentação suficiente para essa nova tarefa. A era do brocardo in claris cessat interpretatio (Se a lei for clara, não se faz necessário interpretá-la) já passou.

Os novos tempos exigem - como esclarece Raimundo Bezerra Falcão[47] - a percepção de que o sentido não é imutável. Ele é sempre para o sujeito cognoscente, sem se olvidar a ação do objeto sobre o sujeito cognoscente. Além disso, e por isso, o sentido é criador. O sentido é livre por que o palco de sua criação é o pensamento, que também o é por excelência. E é inesgotável por ser livre.

Esse sujeito cognoscente é o intérprete, o novo intérprete constitucional, que pode ser qualquer pessoa física ou instituição, uma vez que todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com este contexto é indireta ou, mesmo diretamente, um intérprete dessa norma. O destinatário da norma é participante ativo muito mais ativo o que se pode supor tradicionalmente, do processo hermenêutico. Como não são apenas os intérpretes jurídicos da Constituição que vivem a norma, não detêm eles o monopólio da interpretação da Constituição[48].

A proposta democrática de Peter Härbele parte da seguinte tese:

(...) no processo de interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível estabelecer-se um elenco cerrado ou ficado em numerus clausus de intérpretes da Constituição[49].

A interpretação constitucional deve levar em conta as observações da doutrina contemporânea, segundo a qual as normas jurídicas não se confundem com os texto legislativos, estes são as expressões lingüísticas criadas ou postas pelas autoridades competentes, enquanto aquelas são, nas palavras de Marcelo Lima Guerra

O resultado de uma interpretação dos textos jurídicos, mas, pelo menos nos casos de em que ocorrem ambigüidades e/ vaguezas nos textos legislativos, as normas jurídicas não podem ser, simplesmente identificadas com o próprio significado destes textos. Isto porque a mera informação codificada nas expressões lingüísticas que compõem um texto legislativo, vale dizer, o significado destas expressões, não são suficientes para estabelecer, exatamente, qual é a norma que por este texto se pretendeu veicular. Nesse caso, pelo menos, o intérprete tem que se valer de informações contextuais, a fim de escolher qual o sentido a ser atribuído à expressão ambígua, o que também implica, como se viu, escolher qual a norma a ser atribuída ao texto legislativo apresentado[50]

É preciso consignar, ainda, que a interpretação não é um produto de uma operação realizada em partes (compreensão, interpretação e aplicação), como se fosse possível retirar do texto algo que ele possui em si mesmo; ao contrário o intéprete sempre atribui sentido. Mutatis Mutandis, foi o que fez Müller – de forma inovadora e porque não dizer, revolucionária – anunciar (de denunciar) que a norma é sempre o resultado da interpretação do texto, isto é, que a norma não está contida no texto. O acontecer da interpretação ocorre a partir de uma fusão de horizontes(..), porque compreender é sempre o processo de fusão dos supostos horizontes para si mesmos[51].

Para os novos paradigmas filosóficos da hermenêutica, interpretar é compreender. Compreender é aplicar, concretizar, tarefa responsável[52] do intérprete, que passa a exercer relevante função na concretização de direitos fundamentais.

O estudo desenvolvido no presente trabalho diz respeito, entretanto, somente à concretização “judicial” dos direitos fundamentais da pessoa portadora de transtorno mental, ou seja, aquela aplicação realizada por juízes e tribunais (colegiados de juízes) que efetivamente tornam realidade os aludidos direitos, não mais – apenas -com as feições das declarações de “direitos humanos”, mas agora sob as perspectivas dos “direitos fundamentais subjetivos” albergados pela Constituição Federal.

Os instrumentos utilizados pelo intérprete judicial são dados pela hermenêutica constitucional[53], e levam em conta que as normas constitucionais, especialmente por consagrarem “valores” fundamentais da ordem jurídica, estão em harmonia no plano abstrato[54], mas, entretanto, sempre entram em rota de colisão[55] quando da concretização de qualquer deles[56], exigindo três momentos indispensáveis anunciados por Marcelo Lima Guerra: o levantamento dos valores em jogo, a prognose de consequencias práticas  e a ponderação de bens[57].

O direito fundamental à saúde mental está veiculado num enunciado normativo de textura aberta (direito à saúde – arts. 6º e 196 da CF/88), estando protegido contra atos e abusos dos poderes estatais, além de obrigar juízes e tribunais à realização de uma efetiva proteção positiva, que confira a máxima eficácia possível no âmbito no sistema jurídico.

Lênio Luiz Streck reitera

É dever dos juízes e tribunais aplicar as leis em conformidade com os direitos fundamentas, além de estarem obrigados a “colmatarem” lacunas à luz das normas de direitos fundamentais, o que alcana, inclusive, a jurisdição cível, abrangendo de forma horizontal, as normas de direito privado[58]

Para a efetiva concretização dos direitos fundamentais da pessoa portadora de transtorno mental, portanto, o poder judiciário precisa levar em consideração os valores gerais já identificados no princípio da dignidade da pessoa humana e neles incluir os valores específicos dispostos nos “Princípios para a Proteção de Pessoas Acometidas de Transtorno Mental e a Melhoria da Assistência à Saúde Mental”, da Organização das Nações Unidas – ONU (1991).

Com efeito, referidos princípios, por conterem uma espécie de legitimação e consenso universais sobre os direitos da pessoa portadora de transtorno mental, devem integrar o conceito constitucional aberto de “saúde” ou “saúde mental” no momento da aplicação judicial. Registre-se que o Conselho Federal de Medicina, mediante a Resolução nº 1.407/1994, adotou os mencionados princípios como guia a ser seguido pelos médicos, o que já indica dever da classe médica para com essas orientações internacionais.

Os princípios da ONU para saúde mental possuem validade como normas deontológicas ou reguladoras aplicáveis mediante às sentenças judiciais quando se julga um caso concreto. É dizer que, seja normativamente ou através do modelo de interpretação judicial, os princípios de saúde mental possuem efetividade[59].

Alfredo Jorge Kraut esclarece que os princípios discutidos incorporam garantias para proteger o direito a ser diferente, ao estabelecerem que “a determinação de um transtorno mental nunca deverá ser feita com base no status econômico, político ou social, ou na pertinência a um grupo cultural, racial ou religioso, ou em qualquer outra razão não diretamente relevante para o estado de saúde mental da pessoa” (item 4.2) e também que os conflitos familiares ou profissionais, a não-conformidade com valores morais, sociais, culturais ou políticos, ou com as crenças religiosas prevalentes na comunidade da pessoa nunca serão fatores determinantes para o diagnóstico de um transtorno mental” (item 4.3).

A concretização de direitos fundamentais da pessoa portadora de transtorno mental implica numa leitura constitucional de todas as normas infra-constitucionais  relativa ao tema, mormente a Lei Federal nº 10.216/2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental[60].

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Não se pretende defender no presente trabalho que o poder judiciário seja o grande “salvador” da pessoa portadora de transtorno mental. Diante da terrível exclusão social existente em nosso país, compete a todos – poder público, sociedade e indivíduos - a concretização dos direitos fundamentais. Somente uma aplicação prioritária e solidária da Constituição poderá realizar plenamente a concretização dos direitos fundamentais da pessoa portadora de transtorno mental. 

No entanto, o poder judiciário, muito embora os movimentos sociais, pacientes, familiares e, até mesmo, o ministério público tenham alguma resistência em aceitar isso, é sim uma instância legítima e eficaz para a concretização dos mencionados direitos. O princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional (art. 5º, XXXV, da CF/88) garante que nada nem ninguém, nem mesmo a própria lei, pode impedir que chegue ao aludido poder as questões e as mazelas do cotidiano da saúde mental.

Acrescenta José Reinaldo de Lima Lopes:

O Judiciário, provocado adequadamente, pode ser um instrumento de formação de políticas públicas. Exemplo disto certamente é o caso da previdência social brasileira. Não fosse a atitude dos cidadãos de reivindicarem judicialmente e em massa seus interesses ou direitos, ficaríamos mais ou menos onde sempre estivemos. Mas, aqui, também o Judiciário há de dividir o papel de protagonista dos casos com os cidadãos e advogados iniciadores das ações[61]

No próximo item exporemos sobre algumas hipóteses em que juízes e tribunais concretizaram de forma adequada valores constitucionais, tornando assim realidade os direitos fundamentais da pessoa portadora de transtorno mental, sempre tendo como referência o princípio  da dignidade humana.


4.  A JURISPRUDÊNCIA CONCRETIZADORA: UMA EXPERIÊNCIA A REALIZAR A DIGNIDADE DA PESSOA PORTADORA DE TRANSTORNO MENTAL

Denomina-se “jurisprudência”, em termos jurídicos, o conjunto das decisões e interpretações das leis feitas pelos tribunais, adaptando as normas às situações de fato. Na ordem jurídico constitucional brasileira todo juiz é um legítimo intérprete constitucional, podendo, dentro de sua competência, aplicar os princípios, valores e direitos fundamentais da pessoa portadora de transtorno mental. 

Compete ao Supremo Tribunal Federal, entretanto, a “guarda” da Constituição (art. 102 da CF/88). Este órgão máximo do poder judiciário detém a última palavra sobre quaisquer temas que cheguem até ele, o que não impede juízes e tribunais inferiores de concretizar direitos fundamentais cotidianamente. A importância da jurisprudência aumenta no momento que ela se torna – como vem acontecendo no Brasil – parâmetro para novos julgamentos, rumos a serem trilhados para novos casos.

A seguir vamos examinar 4 (quatro) decisões judiciais que concretizaram conceitos indeterminados (saúde, por exemplo), ou interpretaram direitos fundamentais da pessoa portadora de transtorno mental. São alguns exemplos em que o poder judiciário fez valer a Constituição Federal para efetivar direitos fundamentais de pessoas portadoras de transtorno mental.

4.1FORNECIMENTO DE MEDICAÇÃO: A SAÚDE NÃO É UMA PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQUENTE

É dramática a situação de quem precisa de medicamentos especiais de alto custo (ou mesmo os comuns, que também são caros), espécies não fornecidas regularmente pelo Sistema Único de Saúde. Via de regra o poder executivo se nega a fornecer gratuitamente esse tipo de medicação, não restando ao paciente necessitado outra opção, que não procurar o poder judiciário para fazer valer o seu direito à vida e à saúde.

Ao ponderar sobre os valores fundamentais em colisão (saúde e vida x limitação orçamentária) o Supremo Tribunal Federal chegou à mesma conclusão da doutrina acerca da superioridade do direito à vida e à saúde, consignando de forma peremptória que o direito a saúde não pode ser reduzido a uma “promessa constitucional inconsequente”.

 Resultado natural desse entendimento - concretizador de norma de textura aberta (arts. 6º e 196 da CF/88[62]) - foi a ordem para o Estado fornecer os medicamentos necessários ao tratamento do paciente.

Assim reiterou a Corte Suprema na oportunidade:

E M E N T A: PACIENTE COM HIV/AIDS - PESSOA DESTITUÍDA DE RECURSOS FINANCEIROS - DIREITO À VIDA E À SAÚDE - FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS - DEVER CONSTITUCIONAL DO PODER PÚBLICO (CF, ARTS. 5º, CAPUT, E 196) - PRECEDENTES (STF) - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA. - O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar - políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. - O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas - representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ- LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE. - O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. DISTRIBUIÇÃO GRATUITA DE MEDICAMENTOS A PESSOAS CARENTES. - O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do STF (AGRRE 271286/RS, Ministro Celso de Mello, DJ de 24/11/2000).

As premissas desse julgamento, por razões óbvias, também se aplicam ao contexto da saúde mental, e se expandem por todo o ordenamento jurídico, fazendo com que os demais juízes e tribunais reconheçam que a vida e a saúde são direitos fundamentais de aplicação concreta.

A título de exemplo, desta vez especificamente sobre medicamentos psiquiátricos, o Superior Tribunal de Justiça proclamou

Ementa 

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. ART. 544, CPC. SUS. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. DIREITO À VIDA E À SAÚDE. PACIENTE PORTADORA DE DISTÚRBIOS MENTAIS. DEVER DO ESTADO. CONDENAÇÃO GENÉRICA. INOCORRÊNCIA.

1. O Sistema Único de Saúde-SUS visa a integralidade da assistência à saúde, seja individual ou coletiva, devendo atender aos que dela necessitem em qualquer grau de complexidade, de modo que, restando

comprovado o acometimento do indivíduo ou de um grupo por determinada moléstia, necessitando de determinado medicamento para debelá-la, este deve ser fornecido, de modo a atender ao princípio maior, que é a garantia à vida digna.

2. Configurada a necessidade de a recorrida ver atendida a sua pretensão, posto legítima e constitucionalmente garantida, uma vez assegurado o direito à saúde e, em última instância, à vida. A saúde, como de sabença, é direito de todos e dever do Estado.

3. Proposta a ação objetivando a condenação dos entes públicos ao fornecimento gratuito dos medicamentos necessários ao tratamento de distúrbios mentais, resta inequívoca a cumulação de pedidos posto umbilicalmente interligados o tratamento e o fornecimento de medicamento. É assente que os pedidos devem ser interpretados, como manifestações de vontade, de forma a tornar o processo efetivo, o acesso à justiça amplo e justa a composição da lide. Precedentes: REsp 625329 / RJ, Ministro LUIZ FUX, T1 - PRIMEIRA TURMA, DJ 23.08.2004; REsp 735477 / RJ, Ministra ELIANA CALMON, T2 – SEGUNDA TURMA, DJ 26.09.2006; REsp 813957 / RJ, Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, T1 - PRIMEIRA TURMA, DJ 28.04.2006.

4. A decisão que ante a pretensão genérica do pedido defere tratamento com os medicamentos consectários, desde que comprovada a necessidade por atestado médico, não incide no vício in procedendo do julgamento ultra ou extra petita, tampouco configura condenação genérica.

5. Agravo regimental a que se nega provimento (AgRg no Ag 865880/RJ, STJ, T1, Rel. Min Luiz Fux, DJ de 09/08/2007).

De fato, esse entendimento está consagrado em todo o país, sendo que recentemente o plenário do Supremo Tribunal Federal, no STA 175 AgR/CE, Relator Ministro Gilmar Mendes. DJ de 29/04/2010, fixou parâmetros para solução judicial dos casos concretos que envolvem direito à saúde.

4.2.SAÚDE COMO DIREITO LÍQUIDO E CERTO

O mandado de segurança, instrumento constitucional processual[63], por suas características intrínsecas, inclusive por prever a possibilidade de tutela emergencial por meio de liminar, revela-se ação de rito célere e exige prova documental pré-constituída, não admitindo dilação probatória, ou seja, todo o direito do impetrante deve ser comprovado documentalmente logo com a petição inicial.

Muito se discutiu se o mandado de segurança poderia ser utilizado para obrigar o Estado (gênero) a fornecer medicamentos a pacientes necessitados. Mas, pondo fim aos questionamentos, o poder judiciário, mais uma vez concretizando direitos fundamentais, entendeu que, comprovada a hipossuficiência econômica do impetrante e a sua necessidade médica (atestado ou relatório clínico), o medicamento tem que ser fornecido.

Veja-se o seguinte julgado do Superior Tribunal de Justiça, que chancelou decisões inferiores pela via do mandado de segurança

Ementa 

CONSTITUCIONAL. RECURSO ORDINÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA OBJETIVANDO O FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO (RILUZOL/RILUTEK) POR ENTE PÚBLICO À PESSOA PORTADORA DE DOENÇA GRAVE: ESCLEROSE LATERAL AMIOTRÓFICA - ELA. PROTEÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS. DIREITO À VIDA (ART. 5º, CAPUT, CF/88) E DIREITO À SAÚDE (ARTS. 6º E 196, CF/88). ILEGALIDADE DA AUTORIDADE COATORA NA EXIGÊNCIA DE CUMPRIMENTO DE FORMALIDADE BUROCRÁTICA.

1 - A existência, a validade, a eficácia e a efetividade da

Democracia está na prática dos atos administrativos do Estado voltados para o homem. A eventual ausência de cumprimento de uma formalidade burocrática exigida não pode ser óbice suficiente para impedir a concessão da medida porque não retira, de forma alguma, a gravidade e a urgência da situação da recorrente: a busca para garantia do maior de todos os bens, que é a própria vida.

2 - É dever do Estado assegurar a todos os cidadãos, indistintamente, o direito à saúde, que é fundamental e está consagrado na Constituição da República nos artigos 6º e 196.

3 - Diante da negativa/omissão do Estado em prestar atendimento à população carente, que não possui meios para a compra de medicamentos necessários à sua sobrevivência, a jurisprudência vem se fortalecendo no sentido de emitir preceitos pelos quais os necessitados podem alcançar o benefício almejado (STF, AG nº 238.328/RS, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 11/05/99; STJ, REsp nº 249.026/PR, Rel. Min. José Delgado, DJ 26/06/2000).

4 - Despicienda de quaisquer comentários a discussão a respeito de ser ou não a regra dos arts. 6º e 196, da CF/88, normas programáticas ou de eficácia imediata. Nenhuma regra hermenêutica pode sobrepor-se ao princípio maior estabelecido, em 1988, na Constituição Brasileira, de que "a saúde é direito de todos e dever do Estado" (art. 196).

5 - Tendo em vista as particularidades do caso concreto, faz-se imprescindível interpretar a lei de forma mais humana, teleológica, em que princípios de ordem ético-jurídica conduzam ao único desfecho justo: decidir pela preservação da vida.

6 - Não se pode apegar, de forma rígida, à letra fria da lei, e sim, considerá-la com temperamentos, tendo-se em vista a intenção do legislador, mormente perante preceitos maiores insculpidos na Carta Magna garantidores do direito à saúde, à vida e à dignidade humana, devendo-se ressaltar o atendimento das necessidades básicas dos cidadãos.

7 - Recurso ordinário provido para o fim de compelir o ente público (Estado do Paraná) a fornecer o medicamento Riluzol (Rilutek) indicado para o tratamento da enfermidade da recorrente (RMS 11183/PR, STJ, T1, Rel. Min. José Delgado, DJ de 04/09/2000).

Também por intermédio de mandado de segurança, o plenário do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará firmou

EMENTA

MANDADO DE SEGURANÇA. CONSTITUCIONAL. DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE. MEDICAÇÃO. CÂNCER. FORNECIMENTO. RESPONSABILIDADE. ESTADO (GÊNERO). RESERVA DO POSSÍVEL. INVOCAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE.

1. A jurisprudência nacional, na esteira de orientação expressa da Corte Suprema, reconheceu como solidária e linear a responsabilidade de todos os entes estatais para com a assistência à saúde, uma vez compreendido que cada ente federativo possui parcela de responsabilidade autônoma (arts. 23, II e 198, I da CF/88) sobre o sistema constitucional de proteção à saúde.

2. A prova pré-constituída realizada pela impetrante é mais do que suficiente para assegurar o grave mal que lhe acomete, a sua urgente necessidade da medicação específica e a sua evidente hipossuficiência. Detalhado Relatório Médico, baseado em literatura específica e na prática internacional. Exames complementares.

3. Paciente que necessita com urgência de medicamento específico para combater câncer de alto risco, compete ao Estado do Ceará fornecê-lo, pois a interpretação do Supremo Tribunal Federal acerca do Direito Fundamental à Saúde não admite escusas diante de quadro onde o próprio Direito Fundamental à Vida está em questão.

4.Limitações financeiras do Estado. Mera alegação.

A cláusula da ``reserva do possível”, ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível, não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade" (Ministro Celso de Mello - Informativo/STF nº 345/2004).

Segurança concedida (MS nº 2008.0023.5313-6/0, TJCE, Tribunal Pleno, Rel. Des. José Arísio Lopes da Costa, DJ de 10/02/2000).

Desta forma, convém perceber que por meio da concretização judicial passou a ser indiscutivelmente possível a utilização do mandado de segurança para garantir o “direito líquido e certo” de obter do Estado prestações positivas relacionadas ao direito à saúde. Essa possibilidade é uma garantia processual, pelo menos em tese, de se conseguir o direito fundamental à saúde do portador de transtorno mental de uma maneira mais célere do que os meios processuais ordinários.

Note-se que os fundamentos das decisões acima elencadas não se restringem ao fornecimento de medicamentos, uma vez que abrangem extensivamente todos os instrumentos, materiais e insumos terapêuticos para garantir a efetiva saúde do paciente, tais como o custeio de passagens para o tratamento fora do domicílio[64],  próteses[65], bombas de insulina[66], psicoterapia[67] etc.

Outra conquista judicial importante dos pacientes, entre eles obviamente as pessoas portadoras de transtorno mental, foi aquela que garantiu o seqüestro de verbas do Estado (gênero) para o cumprimento das decisões acima referidas[68]. Lembre-se que os bens do Estado são, em regra, indisponíveis, representando a mencionada conquista uma segura concretização de direitos fundamentais pelo poder judiciário.

4.3.O HABEAS CORPUS COMO GARANTIA DO DIREITO Á LIBERDADE NA INTERNAÇÃO PSIQUIÁTRICA INVOLUNTÁRIA IRREGULAR

Para a internação psiquiátrica involuntária a Constituição exige um “devido processo legal”, pois “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. (Art. 5º, LIV, da CF/88). A referida modalidade de internação, para além de suas funções médicas, também possui a nítida natureza de restrição ao direito fundamental à liberdade[69] .

Um procedimento de internação involuntária que esteja descumprindo - além do devido processo legal, princípios sensíveis da Constituição, como o da dignidade da pessoa humana, ou da proibição de tortura - enseja a impetração de habeas corpus, garantia constitucional do direito à liberdade, concedida até mesmo de ofício pelo poder judiciário.

O habeas corpus é importante e célere garantia constitucional do direito fundamental a liberdade. O instituto é historicamente ligado ao constitucionalismo e não precisa estar previsto na Lei Federal nº 10.216/2001 por que integra o rol de direitos e garantias fundamentais da Carta da República.

A ação constitucional ora examinada pode ser utilizada amplamente por qualquer pessoa, também devendo ser ajuizada quando o estabelecimento não assegurar os direitos da pessoa portadora de transtorno mental, previstos no parágrafo único do art. 2º da Lei 10.216/2001 e na Constituição Federal.

Registre-se que o paciente mantém, mesmo internado involuntariamente, o seu direito à liberdade de religião e consciência, possuindo direito à comunicação, à proteção de seu patrimônio, à livre expressão e ao direito de ação.

Esclarece Luís Roberto Barroso que

o habeas corpus pode ser impetrado por qualquer pessoa física ou jurídica, e também pelo Ministério Público (...), em favor logicamente de pessoa física, única capaz de ver tolhida sua liberdade de locomoção. Sequer é exigida capacidade postulatória do impetrante. E, mesmo que ninguém o impetre, poderão os juízes e tribunais competentes expedir, de ofício, ordem de habeas corpus[70] .

Embora tenha existido alguma controvérsia sobre o assunto, atualmente doutrina e jurisprudência admitem a utilização de habeas corpus contra atos de particular (diretores de clínicas ou hospitais psiquiátricos, por exemplo).

Como explica Heráclito Antônio Mossin[71], o habeas corpus não se projeta exclusivamente no campo penal ou processual, porquanto é ele cabível também na área extra persecutio criminis, visando tutelar o direito de liberdade corpórea do indivíduo quando estiver sendo lesada ou ameaçada de sê-lo, abusivamente por qualquer pessoa, aqui se incluindo o particular, embora a matéria não seja ainda pacífica.

No mesmo sentido, pronuncia-se Fernando Capez

Prevalece o entendimento de que pode ser impetrado habeas corpus contra ato de particular, pois a Constituição fala não só em coação por abuso de poder, mas também por ilegalidade. ‘Por exemplo: filho que interna pais em clínicas psiquiátricas, para deles se ver livres[72] .

O Superior Tribunal de Justiça também admite impetração de HC contra internação psiquiátrica involuntária irregular, como se pode constatar do julgado a seguir transcrito, onde paciente maior e civilmente capaz foi internado, sem diagnóstico, contra a sua vontade.

Veja-se:

Ementa

Habeas Corpus. Internação involuntária em clínica psiquiátrica. Ato de particular. Ausência de provas e/ ou indícios de perturbação mental. Constrangimento ilegal delineado. Binômio poder-dever familiar. Dever de cuidado e proteção. Limites. Extinção do poder familiar. Filha maior e civilmente capaz. Direitos de personalidade afetados.

- É incabível a internação forçada de pessoa maior e capaz sem que haja justificativa proporcional e razoável para a constrição da paciente.

- Ainda que se reconheça o legítimo dever de cuidado e proteção dos pais em relação aos filhos, a internação compulsória de filha maior e capaz, em clínica para tratamento psiquiátrico, sem que haja efetivamente diagnóstico nesse sentido, configura constrangimento ilegal.

Ordem concedida (HC 35301/RJ, STJ, T3, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJ de 13/09/2004).

Assim, além das ações de indenização por danos morais e materiais causados pela internação psiquiátrica involuntária irregular, é possível o manejo de habeas corpus para assegurar o pleno exercício de ir e vir da pessoa envolvida nessa questão, que, obviamente não tendo condições de sair livremente em virtude de sua patologia mental, pode perfeitamente, uma vez liberto, seguir para um estabelecimento médico que atenda todas as suas necessidades de saúde, uma vez atendidas as novas diretrizes globais para saúde mental.

4.3.O DIREITO DE IR E VIR À UNIDADE DE TRATAMENTO

De que vale a Constituição Federal garantir formalmente o direito de locomoção[73] se o cidadão, principalmente nos grandes centos urbanos, não tiver renda suficiente para pagar o transporte? Anatole France lembrava: "a majestosa igualdade das leis, que proíbe tanto o rico como o pobre de dormir sob as pontes, de mendigar nas ruas e de roubar pão”.

Como esclarece Luis Roberto Barros, não é incomum a existência formal e inútil de Constituições que invocam o que não está presente, afirmam o que não é verdade e prometem o que não será cumprido[74]. Essas promessas não cumpridas da Constituição afastam o “sentimento constitucional[75]” do povo e impõem o seu descrédito.

A concretização judicial de direitos fundamentais atua para efetivar as promessas da Constituição, pois é certo que esta, embora resultante de um impulso político, que deflagra o poder constituinte originário, é um documento jurídico. E as normas jurídicas, tenham caráter imediato ou prospectivo, não são opiniões, meras aspirações ou plataforma política[76], são instrumentos práticos voltados para efeitos concretos na realidade social.

Dentro dessa perspectiva o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro concedeu passe gratuito no transporte coletivo da municipalidade carioca para paciente psiquiátrico crônico e hipossuficiente, que residia longe da unidade de tratamento.

São os termos da decisão monocrática, confirmada pela 4ª Câmara Cível da aludida Corte de Justiça em 16 de janeiro de 2007

E M E N T A: Obrigação de fazer. Passe gratuito. Autora que é hipossuficiente e portadora de Transtorno Mental de Evolução Crônica Transtorno Bipolar. Tratamento psiquiátrico e exames realizados em hospital distante de sua residência, demandando valor superior a vinte e quatro reais de passagem, quantia demasiadamente excessiva, haja vista o estado de saúde da apelada que, inclusive, sobrevive através da ajuda de parentes. Compete ao Município regularizar os serviços públicos do local, inclusive o de transporte coletivo, que tem caráter social. Exegese do inciso V do artigo 30 da Carta Magna. Artigo 196 da Constituição Federal de 1988 que evidencia a responsabilidade solidária da União, Estados e Municípios em relação ao direito fundamental à saúde. Aplicação do Princípio da vedação dos atos de ruína que possa vir a atingir os valores mais relevantes da pessoa humana. Entendimento corroborado pela Jurisprudência uníssona deste C. Sodalício. Recurso que se apresenta manifestamente improcedente. Aplicação dos art. 557 do C.P.C. c.c. art. 31, inciso VIII do Regimento Interno deste E. Tribunal. Negado Seguimento. (Apelação Cível nº 2006.001.63296, TJRJ, 4CC, Rel. Des. Reinaldo P. Alberto Filho, j. em 28/11/2006).

Como se adiantou essa decisão monocrática foi confirmada, por unanimidade, pelo colegiado da 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, a 16 de janeiro de 2007, o que indica claramente que o poder judiciário exerce valioso trabalho de concretização dos direitos fundamentais da pessoa portadora de transtorno mental.

Sobre o autor
Gustavo Henrique de Aguiar Pinheiro

Mestre em Direito Constitucional/UFC e Especialista em Saúde Mental/UECE.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINHEIRO, Gustavo Henrique Aguiar. Concretização judicial de direitos fundamentais da pessoa portadora de transtorno mental. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3838, 3 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26307. Acesso em: 16 nov. 2024.

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