1.Introdução:
Com o fim do relacionamento conjugal dos pais é comum que a maioria dos filhos fique sob a guarda monoparental materna. Percebe-se, nas decisões judiciais referentes a esses casos, uma supremacia do direito da mãe de permanecer com os menores em detrimento do pai, quando são descartadas as hipóteses de desinteresse ou abandono paterno. É o que se reflete até hoje quando o pai, ao manifestar o desejo de ter o filho sob seus cuidados. Primeiro, é necessário comprovar a incapacidade da mãe, para em segundo plano, provar as efetivas condições daquele pai de criar o menor, refletindo, portanto, uma hierarquia que poderíamos chamar de “inconstitucional”, no tratamento da questão.
Muito embora tenha havido uma evolução na sociedade com importantes mudanças no papel da mulher na esfera familiar e social, permanece no inconsciente coletivo um mito de a mulher ainda ser, presumidamente, a mais apta à criação dos filhos, ou seja, as crianças estarão sempre melhores em companhia da mãe. Isso é reflexo da cultura ocidental, que atualmente ainda preserva o mito materno, entendido como determinismo biológico presente em todas as mulheres. É possível crer que esse mito seja fruto de uma ideologia, sobrevinda de uma sociedade patriarcal que confere a todas as mulheres o dever "natural" de ter e permanecer com o filho.
Em contrapartida, essa tendência é contrária aos princípios constitucionais da igualdade entre pai (homem) e mãe (mulher) e, sobretudo, o da proteção integral do menor e do adolescente.
Vários são os documentos internacionais que legitimam a guarda monoparental ao genitor que, efetivamente, comprovar possuir as melhores condições gerir os interesses do menor, sem preferência determinada pelo gênero. A mãe e o pai são iguais em direitos e deveres, cabendo ao Poder Judiciário, quando necessário impor a guarda unilateral, a partir desta premissa, para identificar qual dos genitores assegurará, de fato, ao menor - pessoa em desenvolvimento e que requer prioridade absoluta - o seu melhor interesse. Tomando por base valores constitucionais, dentre eles o da dignidade da pessoa humana, novos institutos surgiram, dentre eles, o da guarda compartilhada, estabelecendo que a guarda monoparental, fosse conferida àquele cônjuge que apresentasse melhores condições de criar o filho. Entretanto, a realidade prática judiciária demonstra a prevalência ainda da guarda monoparental materna.
Se vivemos sob o paradigma da igualdade (presentes nos vários documentos legais que regem os ordenamentos jurídicos), podemos inferir serem as mesmas e extensivas as condições formais entre pai e mãe no que diz respeito a criação dos filhos. Presumir, portanto, que a mãe, seja sempre a pessoa mais apta à guarda dos filhos em detrimento ao pai, não soaria como preconceituoso?
Para a estudiosa Ana Carolina Akel[1] o modelo de guarda tradicional encontra-se falido, quando pressupõe ser melhor para os filhos ficarem com a mãe após a ruptura do casamento. E se considerarmos a modernidade, a situação torna-se maior em complexidade, pois a própria noção de família, de relacionamento humano, e as questões de gênero foram colocadas em questão, por não poderem mais ser negligenciadas.
No caso Salgueiro Mouta, a ser analisado, percebe-se que houve uma decisão preconceituosa, tendo por base a orientação sexual do pai, sem levar em consideração o bem-estar de uma criança e as condições de habilidade e afeto do genitor em conviver com a menor.
O acórdão trabalhado além de demonstrar que os órgãos internacionais de proteção e promoção dos direitos do homem, encontram-se atentos para salvaguardar novos direitos (como os dos homossexuais, transgêneros), de ser um leading case sobre os direitos dos homossexuais, uma vez que reconhece a importância de preservar laços de afetividade entre um genitor homossexual e seu filho e a constatação de que em um Estado Democrático de Direito, argumentos homofóbicos não se harmonizam com a sociedade moderna.
O exercício da paternidade vem ganhando novos ditames na contemporaneidade: concretiza a necessidade de um novo modelo de homens-pais para que eles possam assumir seus afetos e sentimentos, livre de estereótipos, exercendo a paternidade em paridade com a maternidade.
O direito de família português encontra-se vinculado a dois critérios de validade: a Constituição da República Portuguesa e a Convenção Européia dos Direitos do Homem. Este último documento passou a vigorar na ordem jurídica portuguesa e é válida internamente enquanto o Portugal se mantiver vinculado à ordem internacional. É como determina o artigo 8º, número 2 da Constituição da República Portuguesa. E o legislador nacional optou pelo sistema de recepção das normas internacionais de cláusula geral de recepção automática plena[2], ou seja, as normas internacionais são recebidas pelo ordenamento jurídico, ratificadas e válidas para a ordem interna.
A mesma corte já confirmou jurisprudência em três decisões fundamentais no que diz respeito aos direitos familiares: no caso apresentado, no acórdão Marie versus Portugal e no acórdão Reigado Ramos versus Portugal.
1. A transformação da família e seus reflexos na sociedade
Mesmo sendo uma instituição comum as várias culturas e sociedades, não é simples determinar o que seja família, já que em regra, associa-se família ao casamento ou a qualquer grau de parentesco, por exemplo.
A família já foi pensada como uma instituição patriarcal, monogâmica, parental e patrimonial, e foi o exemplo da tradicional família romana que veio a servir de padrão à família cristã medieval, que a reduziu à família nuclear, consagrando como família-modelo o pai, a mãe e o filho[3].
Entretanto, os novos paradigmas advindos da urbanização, com o crescimento das cidades pela industrialização, foram determinantes, por exemplo[4], para que houvesse uma mudança no que diz respeito à vida familiar: a mulher começou a integrar-se ao mercado de trabalho e ter independência financeira, o número de filhos reduziu-se, houve o desaparecimento das divisões conjugais e os laços de afinidade alargaram-se com a lei do divórcio.
Dentre as várias transformações ocorridas, talvez a mais significativa tenha sido o abandono da idéia de hierarquia dentro da família, valor que ultimamente perdeu lugar para a afetividade[5], ganhando visibilidade e passando a ocupar um significativo espaço na vida familiar. A família, assim, passou a ser regida por laços de companheirismo, solidariedade e colaboração. Nas palavras de Rolf Madaleno[6]:
“A família sociológica se assenta no afeto cultivado dia a dia, alimentado no cuidado recíproco, no companheirismo, na cooperação, na amizade, na cumplicidade. O afeto está presente nas relações familiares, tanto na convivência entre o homem e a mulher, como nas relações entre pais e filhos”.
A família moderna deixa de lado a autoridade e chama para as relações familiares, o afeto. Ou seja, a modificação mais recente pela qual passou a família foi deixar de ser um agrupamento social, religioso e de caráter econômico, para ser um grupo de afetividade e companheirismo o que fez reforçar mais ainda os laços entre pais e filhos, entre maridos e esposas.
Portanto, a família tornou-se um ambiente ideal para a realização do ser humano. E a proteção desta entidade justifica-se sobremodo por ser um instrumento de realização da pessoa humana e não apenas uma instituição jurídica e social que tem como fim reprodução e a conservação dos patrimônios.
O Instituto Nacional de Estatística oferece como conceito de família:
“o conjunto de indivíduos que residem no mesmo alojamento e que têm relação de parentesco (de direito e de fato) entre si, podendo ocupar a totalidade, ou parte do alojamento. Considera-se também como família clássica qualquer pessoa independente que ocupa parte ou totalidade de uma unidade do alojamento”.
Ainda em consonância com o último censo realizado em 2001[7], há uma série de variações de família: casais sem filhos, família unipessoais (são aquelas constituídas por pessoas solteiras, divorciadas ou viúvas, em grande parte são mulheres), famílias monoparentais[8] (mãe e filhos, pai e filhos, resultantes do divórcio) e as famílias reconstituídas (pessoas que são separadas e que têm filhos e que se casam novamente)[9], famílias constituídas por transsexuais[10], famílias homossexuais, dentre outras.
Atualmente, a família também vem sendo compreendida como um valor, e ganha legitimidade em função dos laços sócio-afetivos, transpondo assim qualquer vínculo biológico de consanguinidade. É a implementação factual do príncipio da afetividade[11].
1.2 As relações familiares no contexto de proteção internacional de direitos
Os vínculos afetivos dentro de uma sociedade sempre existiram, mas variam segundo valores culturais e, sobretudo, em função da influência religiosa em uma determinada época. Na sociedade ocidental, tanto a Igreja como o Estado buscaram intervir no comportamento sexual dentro do casamento. Foi no período da Idade Média, por exemplo, que surgiu o direito canônico para regular a família, sendo assim entre os séculos X e XV, a família era uma entidade religiosa e somente era reconhecido o casamento que fosse celebrado dentro de uma Igreja, através de um culto onde o homem e a mulher tinham seu papel previamente estabelecido[12].
É preciso considerar ainda que a família tradicional, que foi concebida pela lei, seguia um modelo conservador, por ser considerada uma instituição matrimonial, patriarcal, patrimonial, indissolúvel e heterossexual. O casamento, sob a ótica jurídica, pode ser pensado como uma instituição ou como um contrato, mas independente de qualquer tipo de celeuma jurídica, o casamento ainda é visto como a base da sociedade. Isso justifica a intervenção do Estado, no sentido de impedir que tal união se desfaça.
Antes, o casamento era indissolúvel, mas com as mudanças ocorridas na sociedade moderna, o divórcio passou ser um elemento presente em várias legislações. Em Portugal, o divórcio foi aprovado em 1910 (Decreto de 03 de Novembro) e tal legislação foi vigente até a concordata de 1940 assinada com a Santa Sé[13]. Houve, portanto, a dissolubilidade do vínculo matrimonial de casamento civis e católicos celebrados até 1/08/1940. Mas em 1966, com a entrada em vigor do código civil português, surgiram modificações importantes, tais como: a exclusão de algumas causas de divórcio litigioso, a eliminação do divórcio por mútuo consentimento.
Atualmente, portanto, o ordenamento português prevê duas modalidades de divórcio, a saber: o litigioso (artigo 1779 do CC), onde ainda é necessário a determinação do cônjuge culpado[14] e o por mútuo consentimento (artigo 1775 do CC).
Pode-se perceber uma evolução na sociedade e na lei e o ordenamento jurídico português não ficou à margem disso, mas pelo contrário, veio seguindo a evolução sócio-familiar da sociedade. Como exemplo, a Constituição da República Portuguesa proíbe de modo expresso qualquer tipo de discriminação em função da orientação sexual[15].
Mas a família por ser um dos elementos formadores da sociedade, ganhou proteção dos ordenamentos jurídicos[16] nacionais e internacionais como forma de proteção desta entidade. Na Declaração Universal dos Direitos do Homem constam duas determinações direcionadas à família: no artigo 12º, onde ressalva o respeito à vida familiar e no artigo 16º, que no número 1 é garantido o direito de casar-se e constituir uma família.
O citado documento, mesmo se tratando de uma Declaração Universal, por ser uma declaração, é desprovido de qualquer valor jurídico coercitivo face os Estados. Por isso na busca de impor a força vinculativa que faltava a Declaração, no ano de 1966 foi celebrado o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos[17] também com características universais, mas que resultou de direitos mais amplos do que da Declaração Universal.
Outro documento internacional que protege a família é a Convenção Européia dos Direitos do Homem, nos artigos 8º e 12º, que diz respeito à vida familiar e protege o casamento, respectivamente.
Na esfera comunitária é importante mencionar dois outros documentos que tangenciam a proteção familiar, a Carta Social Européia (1961) nos artigos 7º, 9º e 33º, abriga lugar a esta temática.
Portanto, não resta qualquer dúvida, que os legisladores nacionais e internacionais preocuparam-se com a família. Tendo em vista que há um valor universal no que diz respeito a preservação dos direitos desta entidade, em função do valor comum que ela representa nas várias culturas.
Outra observação que não deve passar despercebida é que em nenhum destes documentos que foram citados, há uma definição do que seja família. Caberá, assim, aos operadores do direito, diante do caso em concreto, considerar o que é família.
É um exercício hermenêutico nada fácil, na medida em que se organizam as várias formas de família na sociedade atual dentre elas: a família monoparental, pluriparental e as famílias homossexuais. Entretanto, o que é mais difícil, porém é saber: estes novos tipos de família encontram-se protegidos pelos diplomas legais?
Não podemos esquecer que o Direito é uma realidade viva, que deve permanecer atento às constantes modificações sociais, mantendo uma análise flexível e aberta dos ditames legais, para que possa oferecer proteção jurídica às novas celeumas sociais[18].
Assim, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem - TEDH acompanhou as transformações sociais das estruturas familiares, o que fez com que viesse desenvolver uma interpretação aberta do artigo 8º que versa sobre o respeito à vida privada e familiar.
3.Caso Salgueiro Mouta: Queixa número 33290/96
1. As circunstâncias dos fatos:
O senhor Salgueiro Mouta é cidadão português e no ano de 1983, casou-se com C.D.S e desta união nasceu no ano de 1987 uma menina. Entretanto no ano de 1990, a então esposa propõe uma ação de divórcio, e logo em seguida o senhor Salgueiro Mouta estabelece uma relação homoafetiva.
Daquela ação de divórcio, ficou estabelecido que a guarda da menor coubesse à mãe, mas também ficou garantido o exercício do poder paternal, beneficiando então, o senhor Salgueiro Mouta com o direito de visita a filha.
Um ano após da ação de divórcio (1992), senhor Salgueiro Mouta, solicitou ao tribunal que fosse revista a regulação do poder paternal, pois o requerente desejava ficar com a guarda da filha, tendo em vista que a menor não viva de fato com a mãe, como havia sido estabelecido na ação de divórcio, e sim com seus avós maternos.
A mãe de pronto contestou o pedido do pai, alegando que o companheiro do pai havia abusado sexualmente da menina.
Foi realizado um acompanhamento psicológico em todos os envolvidos no caso: a mãe, o pai, a menor, o companheiro do pai e os avós maternos da criança. O Tribunal de Família de Lisboa, no ano de 1994, decidiu confiar a guarda da menor ao senhor Salgueiro Mouta, considerando que a alegação da mãe de abuso sexual por parte do companheiro do pai foi sem fundamento, tendo sido na realidade um fato forjado pela mãe.
Concluiu o Tribunal:
“A mãe mantém uma postura pouco colaborante, sendo de todo improvável que a mude, desrespeitando, sucessivamente, as decisões d Tribunal. Forçoso é concluir que a mesma (a mãe) não se mostra, nesta altura, capaz de propiciar a “M” a vivência equilibrada e tranqüila que esta necessita. O pai mostra-se, nesta altura capaz de o fazer. Para além de dispor de condições econômicas e habitacionais para ter consigo, mostra-se capaz de lhe transmitir os factores de equilíbrio de que esta necessita e respeitar o direito da menor em continuar a conviver regularmente e assiduamente com a mãe e os avós maternos, a quem se mostra, indubitavelmente, bastante ligada”.
A menor permaneceu com o pai a de abril a novembro de 1995, data em que foi raptada pela mãe. O pai prestou uma queixa e até a época em que o caso foi levado ao Tribunal de Estrasburgo, o processo-crime continuava pendente.
No mesmo ano, a mãe recorreu ao Tribunal da Relação de Lisboa e esta Casa, através de um acórdão (em 09/01/96), concedeu provimento ao recurso e atribuiu a guarda da menor para a mãe, fixando o direito de visita ao pai.
O apelado contra-alegou no sentido da confirmação do julgado.
O Exm. Procurador da República perante o Tribunal da Relação emitiu douto parecer sustentando a nulidade da sentença, mas não a procedência do recurso. Foi analisada a matéria de fato que na 1º instância deu como provada, dentre outras coisas, que: 1) no ano de 1993 foi decretado o divórcio entre ambos e foi dissolvido o casamento, 2) que a menor ficaria com a mãe e que ao pai ficaria garantido o direito a visita regular, 3) a partir de abril de 1992 por influência da mãe a menor deixou de conviver com o pai, 4) que a mãe foi condenada a pagar uma multa por não permitir, deste Abril de 1992, o exercício do poder paternal, como havia sido estabelecido na sentença.
E em entrevistas individuais (em 25/06/1994) com os envolvidos no caso, o Gabinete de Apoio Psicológico que funciona junto ao Tribunal manifestou-se da seguinte maneira:
“A “M” é uma criança comunicativa e com desenvolvimento normal. (...) Revela-se afectivamente, ligada ao pai e à mãe, provocando-lhe a situação de conflito, existente entre ambos, uma certa instabilidade. Deseja uma maior proximidade dos pais, sendo-lhe difícil compreender e aceitar o facto de residir com os avós e de não conviver com o pai. A relação com o pai é muito boa, sendo este último muito afectuoso e disponível para a sua filha. Requerente e requerida são, ambos, pais afectivos e flexíveis, conseguindo, simultaneamente, ter um papel educativo e securizante com a sua filha. Os factores que motivaram a separação vieram posteriormente a desencadear um grande conflito entre os dois, o qual tem sido reforçada pela avó materna da “M” que não aceita a forma de vida assumida pelo requerente e tenta inconscientemente afastá-lo da filha. Conclui-se dizendo que ambos os pais têm capacidade para assegurar o bom desenvolvimento psico-afectivo da menor, pelo que nos parece que não a beneficia residir com a avó, a qual tem interferido negativamente no conflito existente entre o requerente e a requerida, formentando-o numa tentativa de afastar o primeiro pois não aceita a forma de vida por ele assumida”.
Ficou também constatado através do acompanhamento psicológico que no convívio com o pai a criança tinha percebido que o mesmo vivia com outro homem, o que não representou qualquer tipo de problema no que diz respeito à identidade psico-sexual sua ou de seus genitores.
O companheiro do pai também foi avaliado por um psiquiatra, e ficou constatado que este possuía uma personalidade estável com um desenvolvimento satisfatório no que diz respeito ao afeto. Não manifestou qualquer tipo de patologia individual ou de casal, afastando-lhe as alegações manifestadas pela menor (sobre o suposto abuso sexual).
Os psicólogos que acompanharam o caso, nos relatórios finais, observaram certa instabilidade emocional da criança, em função dos conflitos vivenciados entre a família materna e o pai, apresentando um comportamento defensivo e pela recusa em enfrentar situações que lhe causassem ansiedade.
Conclui também os profissionais que não é nada beneficiador a menor conviver com sua avó, pois esta condena as opções individuais do genitor e aumento a ansiedade da criança.
Vejamos então o recurso. No artigo 1905º, número 1 do Código Civil reza que nos casos de separação e divórcio de pessoas e bens, declaração de nulidade ou anulação do casamento, destino do filho, os alimentos devidos e a forma de prestá-los serão regulados por acordo dos pais, sujeitos à homologação do Tribunal: a homologação será recusada se o acordo não corresponder ao interesse do menor, incluindo o interesse deste em manter com aquele progenitor a quem não seja confiado, uma relação de grande proximidade. No número 2, reza que na falta de acordo, o Tribunal decidirá de harmonia com os interesses do menor, incluindo o de manter uma relação de grande proximidade com o progenitor que perder a guarda, cabendo esta aos pais, ou quando se verifique alguma das circunstâncias previstas no artigo 1918º, à terceira pessoa ou estabelecimento de educação ou assistência.
A organização tutelar de menores, também se ocupa desta matéria (artigo 180º, número 1), no qual o exercício do poder paternal será regulado em função do interesse e harmonia da criança.
Na carta magna dos direitos das crianças de 20 de novembro de 1959, da Assembléia Geral das Nações Unidas[19], determina que:
“a criança para ter um desenvolvimento harmonioso de sua personalidade, tem necessidade de amor e compreensão; deve, tanto quanto possível, crescer sob a salvaguarda e responsabilidade dos pais e, em qualquer caso, numa atmosfera de afeto e segurança moral e material, a criança de terna idade não deve, salvo circunstâncias excepcionais, ser separada da mãe.”
Tomando por base as orientações legais acima apresentadas, compreendeu esta instância que a menor, que na época tinha 8 anos de idade, necessitava ainda dos cuidados maternos.
No momento da separação, o pai reconheceu a idoneidade da mãe para cuidar da filha, inclusive, sugeriu aquele que a guarda ficasse com a mãe e quando da instauração do presente processo o pai manifestara o desejo de que a filha não permanecesse na casa dos avós maternos, face o comportamento da apelante e da avó da criança que toma várias atitudes para afastar a criança do convívio do pai por não aceitar a assumida homossexualidade do mesmo.
No artigo 182º, da Organização Tutelar de Menores - OTM, permite que haja uma alteração do regime anteriormente fixado quando este não seja cumprido por ambos os pais, ou, quando houver circunstâncias supervenientes que tornem necessário modificar o que fora estabelecido. Sendo prudente, analisar os fatos que motivaram a alteração da decisão.
Todavia, na inicial da alteração proposta pelo senhor Salgueiro Mouta, este alegou que além do fator da criança viver com os avós maternos e que estes por serem Testemunhas de Jeová influenciara a menor a não conviver com o pai por ele ser assumidamente homossexual. O Tribunal entendeu que não ficou demonstrado que tal religião poderia influenciar negativamente a criança e que isso não seria o suficiente para retirar a guarda da mãe.
Observa-se que ficou demonstrado que a mãe, comumente, não cumpria os acordos judiciais que permitiria ao pai a convivência pacífica e saudável com a menina, além de reiteradas ausências sem qualquer justificativa, as entrevistas no decorrer do processo.
Mesmo diante de várias atitudes da mãe que dificultava a convivência pacífica da menor com o pai, foi alegado que é um direito do pai viver de relação homoafeitva, mas que não seria a um ambiente socialmente e psicologicamente sadio ao desenvolvimento da criança. Que seria, portanto melhor que a menina crescesse no seio de uma família tradicional portuguesa.
Observa-se também que em nenhum momento foi questionada a habilidade do pai em tratar da filha, que o mesmo era atencioso as necessidades da criança e bastante amoroso com a mesma. Como também ficou comprovado que durante o período em que a criança foi privada de conviver com o pai, causou a menor ansiedade e colocou em risco seu bom desenvolvimento, bem como o equilíbrio psicológico.
Ficou bastante claro na sentença que seria necessário que a mãe compreendesse e aceitasse as condições ali estabelecidas, aí sob pena da mesma não mais poder exercer o poder paternal. Compreendeu que o não cumprimento do direito de visita, não configurava motivo suficiente para retirar da mãe o poder parental.
Foi aconselhado ao pai que durante o período de convivência com a filha, não propiciar as mesmas situações que a façam perceber que ele vivia em união homoafetiva.
O direito de visita concedido ao pai neste acórdão nunca foi respeitado pela mãe da criança.
A negação dos direitos de uma criança em função da orientação sexual de seus pais significa uma grande desigualdade no que diz respeito aos direitos desta criança, além de manter uma cadeia de discriminação ao seu genitor. Sem mencionar então o dano psicológico a criança.
Não houve recurso desta decisão.
3.1 O processo perante o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem - TEDH:
O senhor Salgueiro Mouta dirigiu contra o Estado Português uma queixa[20] perante a Comissão Européia dos Direitos do Homem, em fevereiro de 1996, nos termos do artigo 25º da convenção. A queixa foi registrada em Outubro do mesmo ano com o número 33290/96.
Em maio de 1997, a Comissão comunica a queixa ao governo Português, a fim de que este formulasse por escrito, observações sobre a admissibilidade da mesma. Em Outubro de 1997, após a prorrogação do prazo estabelecido o requerente respondeu somente em Janeiro de 1998.
Após a entrada em vigor do protocolo número 11, em Novembro de 1998, o caso foi apreciado pelo Tribunal nos termos do artigo 5º, número 2 do mencionado protocolo.
Em Dezembro de 1998, a câmara declarou admissível a queixa proposta pelo requerente tomando por base os artigos 8º e 14º da Convenção.
Somente em Junho de 1999 a câmara reuniu-se para deliberar sobre o fundamento do caso, a audiência ocorreu em Setembro de mesmo ano e estavam presentes os representantes do Governo Português, os advogados do requerente e o senhor Salgueiro Mouta. É neste momento que é proferido um acórdão sobre a questão apresentada e declara-se se é existente ou não a violação de um direito, conforme determina o artigo 40º.
3.3 Do direito: sobre a alegada violação do artigo 8º da Convenção. Tomado isoladamente e conjugado com o artigo 14º
O requerente censura o Tribunal da Relação por ter atribuindo a sua ex-mulher a guarda da filha do casal em função da sua orientação sexual. E tal decisão viola a artigo 8º da Convenção Européia dos Direitos do Homem quando analisado do modo isolado e quando conjugado com artigo 14º do mesmo documento.
O artigo 8º reza sobre o direito ao respeito pela vida privada e familiar, e tem por objetivo assegurar que a vida privada e familiar de uma pessoa não sofrerá qualquer tipo de ingerência por parte do poder público.
Portanto, TEDH, quando recebe uma queixa irá analisar se na mesma está descrita uma relação familiar, tendo em vista que somente os laços familiares são protegidos pelo artigo 8º da Convenção.
Quando a queixa apresentada enquadra-se na noção de “vida familiar[21]”, o Tribunal analisa se houve ingerência do Estado ou se este não cumpriu a obrigação positiva de assegurar o respeito pela vida familiar.
Uma vez que o Tribunal conclui que houve ingerência ou omissão, será avaliado se estas se enquadram no número 2 do referido artigo, ou seja, se estavam previstas em lei, se eram necessárias em uma sociedade democrática e se buscavam uma pretensão legítima, no sentido de decidir se houve ou não uma violação do artigo 8º.
O acórdão do Tribunal da Relação, uma vez que declarou nula a decisão do Tribunal de Família de Lisboa (de 1994) que atribuiu ao pai o exercício do poder paternal foi uma ingerência no direito do requerente no que diz respeito a sua vida familiar, de modo a situação apresenta enquadra-se nos ditames do artigo 8º da Convenção.
É justamente, quando da aplicação deste artigo que é possível perceber o dinamismo interpretativo do TEDH, pois se trabalha com dois conceitos muitas vezes indissociáveis: a vida familiar e a vida privada; a jurisprudência desta casa, tem feito a união destes dois conceito em muitos casos e feito a proteção de um único direito, o do respeito a vida privada e familiar.
Em função da natureza do caso apresentado e das alegações do requerente, o Tribunal considerou mais adequado enquadrar a questão no âmbito do artigo 8º, conjugado dom o artigo 14º que reza:
“O gozo dos direitos e liberdades reconhecidas na presente Convenção deve ser assegurado sem quaisquer distinções, tais como as fundadas no sexo, raça, cor, língua, religião, opiniões políticas ou outras, a origem nacional ou social, a pertença a uma minoria nacional, a riqueza, o nascimento ou qualquer outra situação”.
O requerente alegou que sua maior pretensão era defender os interesses da filha sendo o principal deles pode encontrar a criança e viver com ela. Sustentou que o acórdão do Tribunal da Relação atribuiu o poder paternal a mãe, mesmo tendo a genitora infringido várias determinações legais, em função da sua orientação sexual e que configurou uma injustificada ingerência no seu direito familiar. Também o requerente enalteceu que ele fora beneficiado por uma decisão do Tribunal de primeira instância que é um órgão que tem conhecimento direito dos fatos ocorridos.
Por isso, para o requerente, o acórdão é sim objeto de litígio perante a corte européia, por violar o artigo 14º da Convenção.
O Governo Português admitiu que podia ter aplicado o artigo 8º à situação de litígio, mas somente no que refere-se ao gozo do direito ao respeito da vida familiar do requerente com a sua filha. E deixou claro também que não se verificou qualquer tipo de ingerência por parte dos agentes públicos que tenha afetado o direito do pai ao livre e pleno desenvolvimento da personalidade da menor ou mesmo sobre a orientação sexual do requerente.
O Estado Português destacou em suas alegações que dispõe de amplo arcabouço legal[22] para dirimir conflitos em matéria de poder parental e afirma que nesta questão o que as autoridades nacionais pretendiam era um fim legítimo, fundamental para uma sociedade democrática: a proteção e promoção do bem-estar da menor. Portanto, o Tribunal da Relação de Lisboa, apenas preocupou-se com o interesse da criança e não na orientação sexual do pai, assim, o requerente não foi, portanto, vítima de qualquer ato discriminatório.
Entretanto, o requerente comprova no texto do acórdão que a decisão de atribuir o exercício do poder paternal a mãe baseou-se essencialmente, na orientação sexual do pai o que levou a um tratamento discriminatório sim. Vejamos:
“Que o pai da menor, que se assume como homossexual, queira viver em comunhão de mesa, leito e habitação com outro homem, é uma realidade que se terá de aceitar, sendo notório que a sociedade tem vindo a mostra-se cada vez mais tolerante para com situações deste tipo, mas não se defende que é um ambiente desta natureza é o mais salutar e adequado ao normal desenvolvimento moral, social e mental de uma criança, designadamente, dentro do modelo dominante na nossa sociedade. (...) A menor deve viver no seio de uma família, de uma família tradicional portuguesa, e esta não é, certamente, aquela que seu pai decidiu constituir, uma vez que vive com outro homem. (...) Em qualquer caso estamos perante uma anomalia e uma criança não deve crescer à sombra de situações de anomalia (...)”.
Tais passagens do acórdão, sendo bastante conservadoras, como os argumentos do Governo Português, constatam sim, que a vivência homoafetiva do pai pesou na decisão final. Idéia que pode ser reforçada quando o Tribunal português “aconselhou” ao pai que durante o período de convívio com a filha procurasse ter uma postura que atenuasse na menor a percepção de que o requerente vivia com outro homem.
Diante dos argumentos apresentados, a TEDH, conclui que houve uma diferença de tratamento entre o pai e a mãe que se baseou, sobretudo, na orientação sexual do pai, distinção que é recusada pelo artigo 14º da Convenção. De fato a Corte Européia concluiu que a homossexualidade do requerente foi determinante para a decisão do Tribunal da Relação de atribuir a guarda da criança à mãe. Fato que fez concluir que houve uma violação do artigo 8º e 14º da Convenção.
Ainda foi aplicado neste caso o artigo 41º da Convenção, onde declara que Tribunal poderá atribuir à parte lesada uma reparação razoável.
O requerente solicitou ao TEDH que lhe fosse atribuída uma justa reparação, entretanto não quantificou o pedido. Todavia, nestas condições, a Corte, considera que a declaração de uma violação, presente no acórdão constitui uma reparação razoável. Mas quando a restituição do dano é física e legalmente impossível, o Tribunal fixa uma indenização pelos danos e despesas do processo.
Diante dos fatos apresentados, o TEDH, por unanimidade, declarou que houve a violação do artigo 8º com o artigo 14º da Convenção. Ficou o Estado Português obrigado a pagar uma multa por danos morais e os honorários.
De acordo com o artigo 46º, n. 1, os Estados signatários comprometem-se a respeitar as sentenças do TEDH, o que resulta de fato, a obrigação de tomarem as medidas necessárias para cessar a violação, bem como prevenir que tal fato não ocorra novamente.
No que diz respeito aos efeitos dos acórdãos proferidos pelo TEDH, estes são obrigatórios e definitivos. E tomando por base o artigo 46º, número 1, não têm os mesmos efeitos erga omnes, ou seja, vinculam somente as partes envolvidas na lide.
Diante do que foi apresentado, conclui-se que os acórdãos desta Instituição, apresentam uma natureza declaratória, obrigatória, mas não executória. Todavia, o não cumprimento de um acórdão, terá como conseqüência a responsabilidade internacional do Estado condenado, como determina as normas de direito internacional.