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A dispensa da apresentação das certidões negativas de débitos tributários para a concessão da recuperação judicial:

efeitos e consequências

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27/01/2014 às 14:35
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O trabalho demonstra a ineficácia da recuperação judicial de empresas, assim como encontrar uma solução definitiva para a questão, tomando por fundamento a preservação da empresa.

Resumo: A Lei n° 11.101/05 inseriu no ordenamento jurídico brasileiro o instituto da recuperação judicial. Porém, após oito anos de vigência, o referido normativo legal ainda carece de efetividade devido a mora legislativa no que tange aos créditos tributários. A solução que a jurisprudência vem adotando para viabilizar arecuperação judicialtem sido a dispensa de comprovação da regularidade. Tal medida permite o deferimento do instituto, mas não tem o condão de torná-lo efetivo. Em regra, a empresa em crise é devedora contumaz na seara tributária. A dispensa serve para mascarar a realidade econômica do devedor, que continua submetido à imposição de restrições de toda monta, como, por exemplo, a impossibilidade de contratação com os órgãos públicos, a vedação de acesso a linhas de crédito junto aos bancos públicos por conta da inserção do nome da empresa no CADIN, penhoras judiciais determinadas nas execuções fiscais em tramitação, entre outras medidas constritivas. O presente trabalho busca demonstrar a ineficácia do instituto em comento, assim como, mediante uma análise mais aprofundada dos princípios envolvidos, encontrar uma solução definitiva para a questão em deslinde, tomando por fundamento a preservação da empresa. Esta preservação, elemento crucial dos princípios da livre iniciativa e do pleno emprego esculpidos na CRFB, para ser efetiva, depende dos esforços de todos os envolvidos, tanto no âmbito privado (fornecedores, bancos, trabalhadores) quanto no âmbito público de todos os entes federados. Mediante uma releitura do pacto federativo tendo como prisma os contornos da sociedade brasileira, restará demonstrada a necessidade e a viabilidade da edição de um diploma normativo de aplicação nacional, contemplando além do parcelamento propriamente dito, um plano de concessão de remissão parcial do crédito tributário envolvido, propiciando, assim, verdadeiras condições para os devedores que estejam em recuperação judicial.

Palavras-chave: Recuperação Judicial. Função Social da Empresa. Parcelamento.Remissão. Certidão de Regularidade Fiscal. Princípio da Unidade da Constituição. Pacto Federativo. Competência Tributária.

Sumário: INTRODUÇÃO. 1. O INSTITUTO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL. 1.1Origem e Evolução no Direito Comparado. 1.2Evolução no Direito Brasileiro. 1.3 A Lei n° 11.101/05. 1.4 Conceito de Recuperação Judicial. 2.REGULARIDADE FISCAL.CONFLITO ENTRE O ART. 52 E O ART. 57 DA LEI Nº 11.101/05. 3.DA AUSÊNCIA DAS NORMAS PERTINENTES AOS PARCELAMENTOS ESPECIAIS AOS DEVEDORES EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL. 3.1 Do Princípio da Unidade da Constituição. 3.2 Do Pacto Federativo. 3.3 Da Mutação Constitucional. 4.A INDISPONIBILIDADE DO CRÉDITO PÚBLICO. CONCLUSÃO. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.


INTRODUÇÃO

A promulgação da Lei n° 11.101/05 provocou uma nova visão da legislação voltada para a solução das situações de crise econômica das empresas enquanto atividades econômicas organizadas, levando, inclusive, a alterações no Código Tributário Nacional, realizadas por meio da Lei Complementar n° 118/05.

Com o diploma legal promulgado, a legislação passou a ser aplicada aos casos pertinentes, trazendo o instituto da recuperação judicial e extrajudicial em substituição à concordata.

O crédito tributário tinha tratamento exíguo na legislação revogada, até mesmo porque os créditos fiscais não integravam os institutos, apenas se submetiam à ordem concursal na hipótese falimentar. O revogado art. 191 do CTN determinava que para a concessão da concordata ou para a extinção das obrigações do falido, era necessário que fosse feita prova da quitação de todos os tributos decorrentes da atividade que exercia.

A jurisprudência de então já se posicionava no sentido de que para a concessão da concordata não era exigida a prova da quitação dos tributos, mas tão somente para prolação da sentença que declarava o seu cumprimento.

Após a entrada em vigor da LC 118/05, que modificou a redação do art. 191 do CTN, passou a ser exigida a prova da quitação para o reconhecimento da extinção das obrigações do falido, assim como, o art. 191-A do mesmo diploma legal transferiu para o momento da concessão da recuperação o encargo de fazer prova da regularidade fiscal.

No mesmo sentido, conforme disposto no art. 57 da Lei n° 11.101/05, restou previsto que para a concessão da recuperação judicial, é necessário que se apresente as certidões comprobatórias de regularidade fiscal da empresa, dando homogeneidade às legislações afetas à matéria.

Ocorre que, de forma similar ao que vinha sendo decidido antes da modificação normativa, os magistrados, em diversos casos, vem dispensando o devedor da apresentação da certidão fiscal sob a argumentação de que a sua exigência inviabilizaria a concessão da recuperação, tendo em conta que, na maioria dos casos, a primeira coisa que o empresário em crise deixa de pagar são os tributos.

Por outro lado, com o deferimento da recuperação judicial sem a devida apresentação da certidão de regularidade fiscal, o recuperando busca a solução da situação crítica em que se encontra sem levar em conta as dívidas tributárias, fragilizando as garantias do crédito público, assim como comprometendo as perspectivas de sucesso do pleito recuperacional.

O problema reside no fato de que a dívida tributária não participa do plano de recuperação, estando excluída da previsão de pagamentos do devedor.

Dessa forma, quando o legislador deixou consignada a exigência da prova de regularidade fiscal, impôs ao devedor pleiteante da recuperação a quitação de seus débitos tributários ou pelo menos o seu parcelamento.

Quanto à quitação, é de se asseverar que, já que o empresário se encontra em crise buscando uma recuperação judicial, dificilmente poderá atender ao comando legislativo. Mas a possibilidade de parcelamento dos débitos - uma das hipóteses de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, poderia ser o caminho adequado para compatibilizar o cumprimento do plano de recuperação pactuado com os credores com a dívida tributária existente.

O problema reside na mora legislativa em editar as leis necessárias aos parcelamentos em condições factíveis aos devedores em recuperação, o que se dá em parte pelos óbices que a própria doutrina e jurisprudência criaram ao longo dos tempos, e em parte pelo desinteresse do Poder Legislativo em todos os níveis.

O presente trabalho busca, após uma breve digressão do instituto da recuperação judicial, trazer à discussão possíveis soluções, tendo utilizado como meio o enfrentamento de interpretações e conceitos que necessitam de uma releitura para que continuem a servir de parâmetros para as matérias afetas, a fim de que estejam em consonância com a evolução do Estado na sua vertente fomentadora da atividade econômica e da justiça social através da preservação da empresa, elemento crucial para a criação de empregos e para a devida distribuição de renda.

O presente trabalho foi desenvolvido por meio de pesquisa bibliográfica no âmbito doutrinário e jurisprudencial, agregando dados estatísticos obtidos mediante pesquisa explicativa e descritiva, com a finalidade de criar um contexto econômico, histórico e jurídico que serviu de alicerce para os estudos e as conclusões dele decorrentes.


1. O INSTITUTO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL

Para que se possa ter a perfeita compreensão do impacto e dos efeitos da dispensa da apresentação da Certidão Negativa de Débitos Fiscais no processo de recuperação judicial, é necessário um estudo do instituto recuperacional. Dessa forma, é salutar uma breve evolução histórica para que se perfaça com completude sua origem e legitimidade jurisdicional.

1.1. Origem e Evolução no Direito Comparado

Antes que se imaginasse falar em sistemas recuperacionais das unidades produtivas, a falência, espécie de insolvência, já assombrava de longa data os agentes econômicos.

Falência vem do latim fallere, que significa deixar de cumprir com o prometido, ou seja falha, omissão.[1]

O nome “quebra”, foi atribuído à situação de insolvência porque durante a idade média os comerciantes que não saldavam suas dívidas tinham as suas bancas literalmente destruídas, como sinal de incapacidade para efetuar seus negócios, ficando, desde então, conhecida a falência como “quebra”, assim denominada pelas ordenações do reino inclusive.

Durante bastante tempo o instituto da falência foi associado a um sentido pejorativo, sendo o devedor visto como um fraudador; como se o insucesso da atividade fosse sempre provocado de forma dolosa. Não que não haja até os dias atuais aqueles que realmente provoquem a falência para atingir objetivos escusos, mas para estes, a legislação de regência atual guarda a condenação por crimes falimentares, afastando dos demais punições incompatíveis com os riscos que naturalmente existem no desenvolvimento das atividades econômicas.

Na Roma antiga o devedor respondia com o seu corpo pelas dívidas adquiridas e não saldadas, sendo estas, dessa forma, eminentemente subjetivistas.Esse tratamento foi abandonado, passando a vigorar a máxima utilizada até os dias atuais, tendo-se migrado para um enfoque objetivista[2]: é o patrimônio do devedor que responde pelas dívidas contraídas.

Passou ainda a vigorar a possibilidade do devedor de boa-fé (e que se encontrasse em dificuldades financeiras para honrar seus compromissos de forma transitória) pedir ao Imperador a indutiaquinquinallis, ou seja, uma espécie de moratória combinada com um parcelamento, em que o devedor se comprometia a saldar suas dívidas em até cinco anos. Justinano, de forma a legitimar tal concessão, passou à assembleia dos credores a competência de deferir essa espécie de recuperação, dando, de forma semelhante a atualmente adotada no Brasil, uma feição contratual ao instituto.[3]

Durante a segunda grande guerra, mais precisamente em 1942, a Itália, de forma inovadora, promulgou uma nova legislação falimentar, na qual restou criado o instituto da “administração controlada”:

Assim sendo, a Itália ousou ao unificar os Códigos Civil e Comercial em pleno transcorrer da Segunda Guerra Mundial, assim como dando novo tratamento ao instituto da falência quando, em 1942, instituiu, por lei, que o empresário que se encontrasse em dificuldade temporária para adimplir suas obrigações e comprovasse a possibilidade de saneamento da empresa poderia requerer ao tribunal o controle da gestão de sua empresa e da administração de seus bens, a fim de garantir os interesses de seus credores, por período não superior a dois anos.[4]

A legislação italiana optou por estabelecer uma condição objetiva para o referido procedimento, diferindo da forma adotada pelo ornamento brasileiro na medida em que na verdade, representa uma moratória parcelada, muito assemelhada ao instituto revogado da concordata.

Cumpre salientar que, no que tange ao tratamento atribuído ao crédito tributário, na Itália existe a previsão da chamada transazionefiscale, que consiste na dilatação dos prazos de pagamento ou mesmo na remissão de parte da dívida, recebendo, assim, o crédito tributário tratamento assemelhado aos demais credores quirografários ou em condições mais favorecidas quando presentes privilégios na forma da legislação de regência, consoante ensinamentos de Ruy Pereira Camilo Junior.[5]

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Cumpre ressaltar que, de forma similar à adotada na legislação pertinente brasileira, existe uma dualidade procedimental: a administração controlada, visando o saneamento da dívida, e o restabelecimento da atividade econômica e a falência, que representa a liquidação mediante execução coletiva concursal visando minorar os prejuízos a credores e ao próprio devedor.

Nos Estados Unidos da América, desde 1934 existe legislação afeta à matéria em comento, tendo, em 1978, sido promulgado o New BankruptcyCode cujo capítulo 11 é dedicado à reorganização da empresa em crise.

Segundo o referido dispositivo legal, o devedor, desde que preenchidos determinados requisitos, apresenta um plano de recuperação onde segue anexado um balanço, uma justificativa e o devido requerimento. Após a aprovação de pelo menos a maioria dos credores, preenchidas as condições legais, a Corte o ratifica, passando - em princípio - a não intervir no desenvolvimento da atividade econômica, e mantendo, portanto, o devedor na sua posição de domínio da atividade.

De forma diversa da existente na legislação brasileira, os créditos tributários não são necessariamente dotados de privilégios. Ao contrário: o IRS (InternalRevenue Service) é dotado de poderes para instituir unilateralmente garantias para a hipótese de inadimplemento tributário.

Segundo a legislação norte-americana, existe a possibilidade de remissão da dívida tributária caso estejam presentes alguns requisitos, cabendo ressaltar alguns pontos de interesse. O primeiro, de forma diversa do que prevê a legislação brasileira, é que o devedor pode ser pessoa física ou jurídica. O segundo, ligado ao procedimento, é que ele tenha se desenvolvido dentro dos ditames legais, e, é claro, que seja efetuada a verificação da existência de garantias vinculadas aos créditos tributários.[6]

Para o deferimento do plano, é necessário que reste pactuado que a quitação das dívidas com prioridades e garantias reais será efetuada em até seis anos,contando do requerimento do plano. Dessa feita, as dívidas tributárias são remidas, excetuando-se as provenientes de fraude ou evasão tributária.

Na hipótese de liquidação, sendo o devedor pessoa física, este perde todos os seus bens, sendo-lhe porém asseguradas as suas rendas futuras. De forma diversa, quando se trata de pessoa jurídica, não há que se falar em remissão,[7] tendo em conta a autonomia patrimonial.

Desde longa data a Espanha soube reconhecer com clareza solar a nítida diferença entre a crise financeira e a insolvência propriamente dita, possuindo, desde 1922, legislação tratando da possibilidade da recuperação da atividade econômica que transforma a decretação da falência em última alternativa.

Na seara tributária, os impostos reais que incidem sobre a propriedade imobiliária ou veicular possuem uma hipoteca legal. De forma tácita, as dívidas tributárias provenientes da propriedade dos bens em comento, usam o próprio bem como garantia. Não houve grande avanço no âmbito tributário com a promulgação da “Ley Orgânica 8/2003”, sendo mais relevante a mudança de paradigma no seu aspecto funcional, no qual se passou a priorizar a recuperação ao invés dos direitos dos credores propriamente ditos, muito se aproximando ao modelo adotado na ordem jurídica brasileira.

Da mesma forma, na esteira das modernizações ocorridas ao redor do mundo, em especial nos demais países europeus, a França, mediante a promulgação da Lei n. 67.563/67 e a Ordenação n. 67.820/67, remodelou o seu direito falimentar.

Uma das principais modificações foi a ampliação da aplicabilidade do instituto falimentar, antes restrito aos que praticavam atos de mercancia, passando a estender o procedimento também às demais pessoas jurídicas.

Outro ponto de vital importância foi o fortalecimento da atividade judicial no processo de recuperação e/ou execução coletiva.

Quanto aos créditos tributários, merece destaque a possibilidade de que a Administração Fiscal tenha poderes para conceder a remissão parcial ou total da dívida tributária de forma análoga às perpetradas na iniciativa privada, haja vista aindisponibilidade dos créditos ser um dos maiores impedimentos à recuperação econômica das empresas.[8]

Em Portugal, a legislação de regência da recuperação e insolvência tem o condão de extinguir todos os privilégios dos créditos tributários, excetuando-se os que possuam garantia real. Tal iniciativa teve por motivação a indução do interesse fazendário nos processos recuperacionais.[9]

1.2. Evolução no Direito Brasileiro

No que tange às normas falimentares, podemos basicamente separar o direito brasileiro em quatro fases, a saber: a primeira, nascida com o Código Comercial. A segunda fase, iniciada com o Decreto 917/1890. A terceira fase, que surgiu mediante a edição do Decreto-Lei n° 7.661/45. E, por fim, a quarta fase, oriunda da promulgação da Lei n°11.101/05.

O regramento vigente na época do Código Comercial carecia de conceituação dos institutos, dando autonomia exagerada aos credores. Tinha a falência materializada mediante a cessação dos pagamentos, momento difícil de ser identificado, cabe ressaltar.

Com a edição do Decreto 917/1890, o direito falimentar brasileiro passou a se caracterizar pela existência de uma moratória consistente na quitação de ¾ dos débitos em até um ano. Havia também a possibilidade de um acordo a ser celebrado entre o devedor e a Assembleia-Geral dos Credores e, na hipótese de insucesso, decretar-se-ia a falência. No que tange à liquidação, a alienação de bens ficava condicionada à aprovação dos credores. Todas as medidas elencadas somente poderiam ser deferidas mediante a inexistência de protestos.

Sob a égide do Decreto-Lei n° 7.661/45, ocorreu uma judicialização do processo falimentar. Se antes o acordo sempre havia sido valorizado, nesta fase ele foi praticamente extinto. A natureza legal do sistema concordatário era de favor legal, ou seja: atendidos os requisitos, a concordata era deferida e todos haviam de se submeter aos seus efeitos.

Coexistiram duas modalidades de concordata, segundo Rubens Requião:

A concordata preventiva, como a própria palavra está a indicar, visaa prevenir a falência do devedor. Toma ele, antes de declarada afalência, a iniciativa de requerê-la ao juiz, que concedendo-a,previne a falência, mas, se negá-la, declara exofficio a falência dopeticionário. A concordata suspensiva tem por fim suspender afalência, restabelecendo no devedor falido a plenitude de suaatividade empresarial. Surge, portanto, posteriormente à falência jádeclarada, evitando a liquidação da empresa. É chamada também,porém impropriamente, de extintiva da falência. Na verdade, comotivemos oportunidade de acentuar, ela não extingue a falência, masapenas a suspende: se a qualquer momento, o concordatário nãocumpre suas obrigações ou infringe a lei, reabre-se a falência. Daíporque a denominação mais adequada é a de concordata suspensiva da falência.[10]

Na realidade, ao revés do que significava o nome “concordata”, ou seja, acordo, o referido instituto nunca se prestou a essa finalidade, servindo, na maioria das vezes, para prolongar a situação de crise; findando por submeter os credores a uma situação indesejada, e limitando o devedor, já que sua capacidade negocial ficava atrelada ao formalismo legal (prazos e requisitos que nunca foram meios adequados para a criação de um ambiente propício à recuperação da atividade econômica).

Enfim, após sessenta anos de vigência do Decreto-Lei n° 7.661/45 foi promulgada a Lei n° 11.101/05, implementando, então, o instituto da   recuperação judicial.

1.3. A Lei n° 11.101/05

O fundamento constitucional da legislação em comento se encontra positivado nos artigos 1°, IV, e no artigo 170 caput, e nos incisos II, III e IV, todos da CRFB/88.

No art. 1°, IV da CRFB, encontramos os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa elencados como alguns dos fundamentos da república, sendo elementos imprescindíveis ao desenvolvimento econômico.

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;

II - a cidadania

III - a dignidade da pessoa humana;

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V - o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.[11]

No caput e incisos do art. 170 encontramos os princípios gerais pertinentes à ordem econômica:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

I - soberania nacional;

II - propriedade privada;

III - função social da propriedade;

IV - livre concorrência;

V - defesa do consumidor;

VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)

VII - redução das desigualdades regionais e sociais;

VIII - busca do pleno emprego;

IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 6, de 1995)

Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.[12]

Consoante ensinamentos do professor Diogo de Figueiredo, por conta das negociações que deram azo à redação do artigo em análise, restaram misturados os princípios e as finalidades da ordem econômica, cabendo a sua divisão sob três dimensões: a dimensão ontológica, a axiológica e a teleológica.

Ontológica na medida em que ela realmente representa aquilo em que consiste. A dimensão axiológica se dá com base nos valores em que se encontrafulcrada. E a dimensão teleológica refere-se aos objetivos almejados.

O aspecto ontológico da ordem econômica compreende seus fundamentos fáticos: o trabalho, os meios de produção e a iniciativa econômica. O aspecto axiológico da ordem econômica declina os princípios que atuam como reitores da atividade interventiva do Estado e que são: soberania, a função social da propriedade e a livre concorrência.

Por fim, o aspecto teleológico da ordem econômica elenca as finalidades a que visa o Estado ao intervir na ordem econômica, ou seja, dirige-se aos resultados a serem idealmente alcançados em função de sua atividade interventiva, assim expressos: a existência da dignidade da pessoa humana, a sua defesa enquanto consumidor, a proteção do meio ambiente, a redução das desigualdades regionais e sociais, a busca do pleno emprego e o tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.[13]

Mediante os fundamentos, princípios e finalidades elencadas no artigo acima citado, resta evidente que para a persecução dos objetivos, se faz mister a existência de unidades de produção econômicas veiculadoras de riquezas, e essas unidades nada mais são do que as empresas.

A Lei de Recuperação e Falências, Lei n° 11.101/05, tem por finalidade primária a manutenção da atividade econômica e, no caso desta se mostrar inviável, atenuar os efeitos nocivos tanto no aspecto social quanto econômico decorrentes da decretação da falência.

Cumpre salientar a função social da empresa, que, transcendendo os limites privados da função de propiciar lucratividade aos seus sócios, passou a protagonizar papel de ilibada importância no cenário social, na medida em que por meio da atividade econômica exercida gera empregos, distribui renda, pratica fatos geradores de tributos e os recolhe aos cofres públicos, etc....

Cabe ressaltar a dicotomia entre a figura do empresário e da empresa, consoante dicção do art. 966 do CC/02:

Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.

Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa.[14]

Assim, empresário é quem exerce a atividade econômica organizada, ou seja, esta pode ser exercida de forma singular pelo empresário individual, ressaltando-se a figura da EIRELI (art. 980-A do mesmo diploma legal), ou mediante uma sociedade, nos moldes do art. 981 também do CC/02.

A lei n° 11.101/05, entre outros avanços, trouxe a adequação da legislação recuperacional e falimentar à Teoria da Empresa, acolhida no Código Civil de 2002 e implicou na inserção, mesmo que de forma oblíqua, dos créditos tributários, na medida em que, mesmo mantendo a continuidade das execuções fiscais em curso, inseriu a necessidade da regularidade fiscal por meio do pagamento ou da incidência de uma das hipóteses de exigibilidade do crédito tributário (em especial o parcelamento do passivo tributário na hipótese de recuperação e a realocação do crédito tributário na ordem falimentar).

Na verdade, conforme será amplamente debatido e defendido durante o desenvolvimento do presente estudo, é necessário que uma posição mais arrojada seja adotada pelo legislador no que tange à mitigação da indisponibilidade do crédito tributário e da concessão de condições realmente mais vantajosas ao devedor em processo recuperacial. De qualquer forma, mudanças ocorreram.

Uma delas foi a ordem que o crédito tributário passou a ostentar no concurso falimentar. De forma coerente, é de se asseverar que a sua alocação na ordem concursal após os créditos com garantia real foi mais que devida. Não se pode olvidar que aquele que obteve bem como garantia real na hora da concessão de um crédito ou da celebração de um negócio, deve ter respeitada essa garantia até o valor do bem gravado.

Além da mudança radical de paradigma axiológico, o texto legal abriu as portas para as modificações necessárias à viabilização do instituto da recuperação, bastando que, para tanto, outros ajustes sejam efetuados.

1.4. Conceito de Recuperação Judicial

Segundo o professor Sérgio Campinho, o conceito de recuperação judicial pode ser definido como:

“...um somatório de providências de ordem econômico-financeiras, econômico-produtivas, organizacionais e jurídicas, por meio das quais a capacidade produtiva de uma empresa possa, da melhor forma, ser reestruturada e aproveitada, alcançando uma rentabilidade auto-sustentável, superando, com isso, a situação de crise econômico-financeira em que se encontra seu titular, o empresário, permitindo a manutenção da fonte produtora, do emprego e a composição dos interesses dos credores...[15]

Conforme estabelece o renomado jurista por este viés, trata-se de um instituto de Direito Econômico. Por outro lado, caso seja visto sob o prisma processual, trata-se do meio pelo qual, mediante a propositura de uma ação judicial, o devedor busca solucionar a situação de crise em que se encontra.

Diante da certeza do objetivo propagador da atividade empresarial, cumpre adentrar na natureza jurídica do instituto recuperacional.

Consoante dicção do revogado Decreto-Lei nº 7.661/45, a concordata, instituto substituído pela recuperação judicial, tinha caráter de favor legal. De forma diversa da atual, em que os credores participam ativamente das decisões e da própria produção do plano e do seu cumprimento, na concordata, os credores a ela submetidos, notoriamente os quirografários, e caso o devedor preenchesse os requisitos legais, não tinham como se opor, cabendo-lhes apenas se submeter aos efeitos da sentença concessiva.

Realmente, diante dessa ótica, não havia interesse da Fazenda em intervir ou participar desse procedimento, exigindo o magistrado a certidão de regularidade fiscal ao devedor apenas para o momento da declaração de extinção da concordata, a despeito do texto legal que fazia menção à exigência no ato da concessão, conforme previsto no art. 191 em sua redação original:

Art. 191. Não será concedida concordata nem declarada a extinção das obrigações do falido, sem que o requerente faça prova da quitação de todos os tributos relativos à sua atividade mercantil.(Redação revogada pela LC nº 118, de 2005)

A recuperação judicial, ao revés da concordata, foi criada com natureza eminentemente contratual, sendo a tarefa do magistrado mais de natureza fiscalizatória do que decisiva.

O plano de recuperação é apresentado à assembleia de credores, a qual pode sugerir modificações e ajustes. Consoante ensinamentos de Sérgio Campinho, prevalece na recuperação judicial o princípio da autonomia da vontade e não a possibilidade da imposição por sentença de procedimento recuperatório aos credores, salvo no caso do art. 70 e seguintes da Lei nº 11.105/05, que trata da recuperação judicial das micro e pequenas empresas. Neste último caso, mediante o atendimento dasexigências legais, o magistrado pode deferir a recuperação sem mesmo convocar a assembleia de credores, se assemelhando, dessa forma, à extinta concordata.

Art. 72. Caso o devedor de que trata o art. 70 desta Lei opte pelo pedido de recuperação judicial com base no plano especial disciplinado nesta Seção, não será convocada assembléia-geral de credores para deliberar sobre o plano, e o juiz concederá a recuperação judicial se atendidas as demais exigências desta Lei.

Parágrafo único. O juiz também julgará improcedente o pedido de recuperação judicial e decretará a falência do devedor se houver objeções, nos termos do art. 55 desta Lei, de credores titulares de mais da metade dos créditos descritos no inciso I do caput do art. 71 desta Lei.[16]

Existe ainda outra hipótese de deferimento sem a anuência de todos os credores, tal como previsto no parágrafo 1º do art.58 da Lei nº 11.101/05, desde que atendidos de forma concomitante os requisitos elencados:

Art. 58. ...

§ 1o O juiz poderá conceder a recuperação judicial com base em plano que não obteve aprovação na forma do art. 45 desta Lei, desde que, na mesma assembléia, tenha obtido, de forma cumulativa:

I – o voto favorável de credores que representem mais da metade do valor de todos os créditos presentes à assembléia, independentemente de classes;

II – a aprovação de 2 (duas) das classes de credores nos termos do art. 45 desta Lei ou, caso haja somente 2 (duas) classes      com credores votantes, a aprovação de pelo menos 1 (uma) delas;

III – na classe que o houver rejeitado, o voto favorável de mais de 1/3 (um terço) dos credores, computados na forma dos §§ 1o e 2o do art. 45 desta Lei.

§ 2o ...[17]

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Sobre o autor
Nelson José Castro Weinstein

Advogado com especialização em Direito Tributário(UNESA) e em Direito de Empresa (PUC-Rio)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

WEINSTEIN, Nelson José Castro. A dispensa da apresentação das certidões negativas de débitos tributários para a concessão da recuperação judicial:: efeitos e consequências. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3862, 27 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26520. Acesso em: 23 abr. 2024.

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