4. A INDISPONIBILIDADE DO CRÉDITO PÚBLICO
De nada adianta a concessão de parcelamentos sem um real favorecimento ao devedor em recuperação. Prova desta assertiva encontra-se no insucesso dos programas de recuperação fiscal que periodicamente são lançados pelos entes tributantes.
Nestes programas os prazos são dilatados, contemplando algumas vezes inclusive remissão e/ou anistia de boa parte do passivo tributário, mas, em sua maioria, aqueles que aderiram não são capazes de chegar ao fim.
Basta uma breve reflexão para constatar que, se o devedor que não se encontra em processo recuperacional, em princípio possuidor de saúde financeira mais robusta que o recuperando, não alcança a quitação do passivo tributário, de que adiantaria o mero deferimento de um parcelamento ao recuperando?
Contudo, para que se possa falar em remissão ainda que parcial, necessário é que se adentre a indisponibilidade do crédito público.
Segundo disposto no art. 37 da CRFB, a Administração Pública é regida pelos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
Os princípios constitucionais afetos a Administração Pública são aplicáveis a qualquer situação em que ela se envolva, mas sempre fazendo-se um juízo de ponderação no qual o interesse público é o norte, dando-lhe legitimidade e juridicidade.
Cumpre salientar o princípio da unidade da constituição, onde resta asseverado que nenhum direito é absoluto, devendo sempre ser interpretado em conjunto com os demais dispositivos constitucionais.
Conforme antes asseverado, todo princípio possui um núcleo com natureza de regra e uma área ponderável. Seu núcleo deve sempre ser preservado, usando-se a área de ponderação em face de uma necessidade de mitigação.
Consoante ensinamentos de Luís Roberto Barroso, no que se refere ao interesse público, cabe colacionar entendimento que o divide em duas categorias: interesse público primário e secundário.
“...O interesse público primário é a razão de ser do Estado, e sintetiza-se nos fins que a ele promover: justiça, segurança e bem-estar social. Estes são os interesses de toda a sociedade. O interesse público secundário é o da pessoa jurídica de direito público que seja parte em uma determinada – quer se trate da União, do Estado-membro, do Município ou das suas autarquias. Em ampla medida, pode ser identificado como interesse do erário, que é o de maximizar a arrecadação e minimizar as despesas. (...) O interesse público secundário não é, obviamente, desimportante. Observe-se o exemplo do erário. Os recursos financeiros provêm os meios para a realização do interesse primário, e não é possível prescindir deles. Sem recursos adequados, o Estado não tem capacidade de promover investimentos sociais nem de prestar de maneira adequada os serviços públicos que lhe tocam. Mas, naturalmente, em nenhuma hipótese será legítimo sacrificar o interesse público primário com o objetivo de satisfazer o secundário. A inversão da prioridade seria patente, e nenhuma lógica razoável para sustentá-la. (...) O interesse público secundário – i.e., o da pessoa jurídica de direito público, o do erário – jamais desfrutará de supremacia a priori e abstrata em face do interesse particular...”[40]
Após esta breve digressão sobre a natureza dicotômica do interesse público, faz-se possível o desenvolvimento de tese fundamentada que vise sustentar concessões de parcelamentos combinados com hipóteses de remissão parcial do crédito tributário.
Em primeiro lugar, é de se asseverar a natureza da exação tributária no que se refere às receitas públicas. A exação tributária adentra ao erário na forma de receita pública derivada, haja vista que decorre da invasão, legalmente autorizada, do patrimônio privado.
Assim, podemos afirmar que a hipótese de remissão, segundo a legislação de regência no âmbito do Direito Financeiro, tem natureza de renúncia de receita fiscal.
Sob este prisma, cumpre salientar que a efetividade dos meios expropriatórios adotados nas execuções fiscais propostas em desfavor dos devedores em recuperação, em face da situação econômica precária em que o eles se encontram, tem pouca, ou mesmo nenhuma concretude, sendo, a possibilidade de recuperação uma saída bem atraente nas condições em que se apresenta.
Atendendo ao princípio da legalidade para a criação a remissão parcial dos débitos do devedor tributário em recuperação judicial, seria, da mesma forma como ocorre com o parcelamento, necessária a edição de diploma legal permissivo, consoante disposto no art. 172 do CTN.
Seguindo a mesma linha axiológica defendida para a plausibilidade da edição de lei nacional a tratar do parcelamento especial aos devedores tributários em recuperação judicial, este mesmo diploma legal poderia trazer previsão para remissão parcial dos créditos tributários do devedor em recuperação.
Art. 172. A lei pode autorizar a autoridade administrativa a conceder, por despacho fundamentado, remissão total ou parcial do crédito tributário, atendendo:
I - à situação econômica do sujeito passivo;
II - ao erro ou ignorância escusáveis do sujeito passivo, quanto a matéria de fato;
III - à diminuta importância do crédito tributário;
IV - a considerações de equidade, em relação com as características pessoais ou materiais do caso;
V - a condições peculiares a determinada região do território da entidade tributante.
Parágrafo único. O despacho referido neste artigo não gera direito adquirido, aplicando-se, quando cabível, o disposto no artigo 155.
Entre as hipóteses elencadas no referido dispositivo legal, é de se ressaltar a prevista no inciso I: mediante a situação de crise em que se encontra o recuperando, seria perfeitamente plausível o seu enquadramento.
Cumpre ressaltar que não se fala em concessão de remissão de forma discricionária, mas sim, através de critérios objetivos, levando-se em conta o débito tributário, a atividade desenvolvida pelo recuperando e a sua contabilidade, consistindo, assim, uma atividade plenamente vinculada, com percentual previamente estipulado em uma tabela que somente ocorreria após a aprovação do plano de recuperação pela assembleia dos credores, na qual o fisco também poderia participar inclusive com direito a voto.
CONCLUSÃO
Não se pode olvidar que a ausência do diploma normativo pertinente ao parcelamento especial para os devedores tributários em recuperação tem induzido o judiciário a optar pela dispensa da comprovação da regularidade fiscal, a despeito da expressa previsão legal.
Entretanto, resta evidenciado que a medida adotada não é a solução para o problema. É necessário que sejam tomadas medidas no intuito de trazer efetividade ao instituto da recuperação judicial, para que este não caia em descrédito, e, sim, que se torne um meio verdadeiramente eficaz de superação das crises empresariais.
A falta da exigência da comprovação da regularidade fiscal no momento do deferimento da recuperação judicial provoca, indubitavelmente, uma situação imaginária na composição do plano de recuperação, tendo em vista que o passivo tributário - em execução ou não - certamente despontará em algum momento para assombrar o devedor em recuperação e os credores participantes do plano de recuperação.
Consoante a opção escolhida para o Simples Nacional, instituído pela LC 123/06, o parcelamento especial para os devedores em recuperação carece de um diploma único a tratar da matéria para que se torne factível.
Entretanto, para ver esse diploma editado com abrangência nacional, há que, com fulcro no princípio da unidade da Constituição, se revisitar o pacto federativo sob a ótica da função social da empresa e da sua necessária preservação, adequando os contornos do pacto à realidade da federação brasileira.
Da mesma forma, faz-se imprescindível reavaliar o conceito de interesse público, assim como desmistificar a sua supremacia face ao interesse privado, haja vista que mediante a falência da unidade produtiva, ninguém mais arrecada nem tampouco recebe, sendo assim de extremada relevância que, além da edição do diploma normativo de abrangência nacional, também se contemple o devedor em recuperação com uma remissão parcial do crédito tributário, criando verdadeiramente condições para a superação da crise.
Todos os componentes da sociedade atual devem fazer concessões para viabilizar a manutenção da unidade produtiva, ainda que tenha-se que abrir mão de parcela do que se deveria arrecadar/receber no passado, como meio de viabilizar as arrecadações/recebimentos futuros.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após a discussão acima travada, e considerando que a matéria se agiganta e toma proporções que em um singelo artigo não é possível adentrar para abordar todas as questões com a profundidade que cada uma merece, restam algumas considerações a tecer.
Face à inércia que certamente continuará a pairar em todos os níveis da federação na seara legislativa, pode-se concluir que a empresa que porventura estiver diante de uma crise financeira mas que ainda seja viável sob a ótica econômica (e que realmente possua aspirações de se recuperar de forma ampla e irrestrita), pode perfeitamente lançar mão do remédio constitucional pertinente à mora legislativa.
O aludido remédio, o mandado de injunção, previsto no art.5º, LXXI da CRFB/88, presta-se às hipóteses em que, por conta da falta de legislação que permita o exercício de um direito subjetivo do impetrante, provoque-se o judiciário para ver suprida a lacuna.
Não há que se olvidar que no caso em comento, com fulcro na livre iniciativa, na função social da empresa e na sua preservação - valores que a CRFB consubstancia, é adequada a medida sugerida.
Cabe postular que ainda que o STF adote a teoria intermediária no deslinde da questão, ou seja: determine a aplicação de um diploma normativo análogo à situação enquanto o legislativo não se movimentar no sentido de cumprir com o seu papel constitucional, em contraste com a teoria concretista adotada em julgamentos anteriores, basta o suprimento da lacuna legislativa que existe no que tange às normas específicas para o parcelamento dos débitos tributários dos devedores em recuperação, para que setes passem a ostentar regularidade fiscal.
Sem o parcelamento tributário em condições especiais, o devedor em recuperação judicial não tem a sua regularidade fiscal assegurada, ficando inviabilizada inclusive a possibilidade de contratar com a Administração Pública, o que restringe substancialmente o mercado em que atua, comprometendo-se a efetividade do instituto em comento.
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