Resumo: O presente artigo trata da judicialização da saúde a partir do julgamento da STA 175-AgR/CE, pelo Supremo Tribunal Federal, que representou um marco sobre o tema no Direito Brasileiro.
Palavras-chave: Direito à saúde, Direitos sociais, Judicialização da saúde, Supremo Tribunal Federal.
Sumário: Introdução; 1. Julgamento da STA 175-AgR/CE; 1.1. Breve análise e justificativa dos votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal; 2. Reflexões sobre direitos sociais; 3. Direito à saúde e a atuação judicial; 3.1. A doutrina após a STA 175-AgR/CE; 3.2. Algumas decisões do Supremo Tribunal Federal após a STA 175-AgR/CE; Conclusão; Referências.
Introdução
A atuação judicial no controle das políticas públicas tem despertado a atenção de grande parte da doutrina jurídica pátria e estrangeira, ao mesmo tempo em que tem chegado aos tribunais e interessado aos profissionais das mais diversas áreas do conhecimento. A questão muitas vezes tem sido analisada tendo por fio condutor a proteção e implementação dos chamados direitos sociais e a eficácia das normas constitucionais; outras vezes o estudo se dá com foco na doutrina da separação dos poderes ou equilíbrio das funções estatais; dentre tantas outras teses ou referenciais teóricos que tem contribuído para se pensar (criticamente) o tema. Os direitos sociais, segundo a doutrina, são muitas vezes classificados como direitos de segunda dimensão, direitos à prestação em sentido estrito ou ainda direitos de crédito, guardam relação com a chamada igualdade material. Apesar de não ser unânime, muitos consideram os direitos sociais como autênticos direitos fundamentais.
A relevância do tema se dá em face do crescente número de ações judiciais propostas em que se busca a proteção do direito à saúde, com as quais os tribunais tem se deparado e, consequentemente, com a crescente interferência judicial na atividade legislativa e executiva. Diante desta situação, o presente trabalho pretende, ainda que timidamente, colaborar com a discussão a partir da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no Agravo Regimental na Suspensão de Tutela Antecipada 175 (AgR na STA 175/CE) sobre o direito à saúde, na qual muitas questões foram examinadas e limites à atuação judicial foram propostos.
Conforme será demonstrado, pensar em balizas para a atuação do julgador nas demandas que envolvem o direito à saúde não nega o caráter de direito subjetivo do cidadão e dever do Estado. Antes se confirma que a implementação de direitos sociais se pauta (também) no tratamento com igual consideração e respeito a todos os cidadãos.
No tocante ao fornecimento de medicamentos pela via judicial, a celeuma foi tanta que a Corte Suprema realizou a Audiência Pública – Saúde, nos dias 27, 28 e 29 de abril e 4, 6 e 7 de maio de 2009, com a finalidade principal de discutir acerca dos aspectos jurídicos e da visão de outras áreas do conhecimento quanto ao direito à saúde. A audiência permitiu colher informações que possam auxiliar no julgamento de processos que se encontram na casa e ter uma visão holística da situação.
No primeiro capítulo será apresentado o caso envolvendo o AgR na STA 175, momento em que se analisará os votos dos ministros e seus argumentos, em particular o voto dos ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello. Em seguida será introduzido o debate acerca de questões envolvendo a temática. Por fim, no terceiro capítulo serão feitas algumas considerações sobre os direitos sociais e o papel do Judiciário. Ao final serão apresentadas as conclusões da presente pesquisa.
Para tanto, utilizou-se uma abordagem de natureza teórica e prática, com o estudo de caso. Já para a operacionalização deste método foram usadas as técnicas metodológicas de pesquisa bibliográfica, pesquisa documental e fichamento de textos.
1. Julgamento da STA 175-AgR/CE
O agravo regimental foi interposto pela União, contra a decisão que indeferiu o pedido de suspensão de tutela antecipada nº 175, ajuizada contra a decisão proferida pela 1ª Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região. A decisão agravada indeferiu o pedido por não constatar grave lesão à ordem, à economia e à saúde pública, mantendo a antecipação de tutela concedida pelo TRF da 5ª Região para determinar à União, ao Estado do Ceará e ao Município de Fortaleza o fornecimento do medicamento chamado Zavesca (miglustat), em favor da pessoa beneficiada pela ação.
Dos fatos relatados, verifica-se que foi concedida uma antecipação de tutela que obrigou a União, o Estado do Ceará e o Município de Fortaleza a fornecer o medicamento Zavesca (Miglustat) para uma paciente portadora de patologia denominada Niemann-Pick tipo C. O tratamento foi orçado em R$ 52.000,00 por mês, sendo que na época da interposição da ação pelo Ministério Público Federal o medicamento não estava previsto nos Protocolos e Diretrizes Terapêuticas do Sistema Único de Saúde (SUS), e tampouco havia sido contemplado pela Política Farmacêutica da rede pública.
O agravado alega que a decisão: 1. Causa grave lesão à ordem, à economia e à saúde públicas; 2. Viola o princípio da separação dos poderes; 3. Ofende as normas e regulamentos do SUS; 4. Deve reconhecer a ilegitimidade passiva da União, inexistência de responsabilidade solidária entre os integrantes do SUS por falta de previsão normativa e ofensa ao sistema de repartição de competência; e 5. Há grave lesão às finanças e saúde públicas.
O relator do processo foi o ministro Gilmar Mendes, tendo o plenário do STF negado o provimento ao recurso por unanimidade. De todos os votos, aqueles que serão objetos da presente pesquisa serão os do relator, que estabeleceu parâmetros para orientar a atividade jurisdicional na efetivação do direito à saúde; o voto do ministro Celso de Mello, que trouxe argumentos novos não analisados pelo ministro Gilmar Mendes; e o voto da ministra Ellen Gracie, que trouxe um questionamento sobre a (im)possibilidade de se tentar uniformizar um assunto com tantas particularidades no caso concreto.
Breve análise e justificativa dos votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal
O relator ministro Gilmar Mendes inicia seu voto contextualizando a decisão agravada, que indeferiu o pedido de suspensão de tutela antecipada, por não constatar grave lesão à ordem, à economia e à saúde pública e que há prova pré-constituída favorável à manutenção da tutela antecipada. Desta forma, passa a explicar que levará em conta a grande divergência existente sobre a interpretação do art. 196 da CF e as informações colhidas na supracitada audiência pública.
Um dos fatores que levam às divergências doutrinárias acerca da proteção do direito à saúde por meio do Judiciário reside na harmonização das doutrinas conhecidas como mínimo existencial e reserva do possível. Mendes advoga que os direitos fundamentais, numa dimensão objetiva, contêm uma proibição de intervenção ou de excesso e um postulado de proteção ou proibição de proteção insuficiente. Assim, existe um direito à organização e ao procedimento, visto que existem direitos que demandam providências estatais para a sua efetivação.
Na esteira das lições de Holmes e Sunstein (1999), todas as dimensões de direitos fundamentais têm custo, ou melhor, necessitam de recursos públicos para serem realizados. Acontece que quando se trata de direitos sociais em seu caráter prestacional em sentido estrito (positivo) são apresentados diversos argumentos contrários à judicialização, como o que haverá violação ao princípio da separação dos poderes; ou o fato de serem normas programáticas, que dependem de políticas públicas[1] elaboradas segundo escolhas alocativas pautadas em critérios de justiça distributiva. De forma que o juiz não está preparado para tomar este tipo de decisão, na medida em que é vocacionado para concretizar a justiça do caso concreto, sem possuir meios de analisar as consequências globais de sua decisão, podendo prejudicar o todo.
Ao revés, quem postula que o juiz deve atuar na materialização de direitos sociais argumenta que existem direitos, como o direito à saúde, que são indispensáveis para a realização da dignidade humana. Isto exige que os tribunais protejam, ao menos, o mínimo existencial de cada direito. Sem que se olvide que problemas encontrados em outros países não trazem dificuldades no ordenamento jurídico brasileiro em razão da previsão constitucional e de aplicação do mesmo regime jurídico aos direitos individuais e sociais (art. 5, § 1º, CF).
A solução seria a realização da ponderação, que leve em conta todos os argumentos favoráveis e contrários à atuação do Judiciário, pois se trata de uma relação conflituosa entre direitos individuais e bens coletivos. O começo deve ser feito a partir da análise do art. 196 da CF:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
O ministro Gilmar Mendes passa, então, a examinar cada um dos seis elementos que identifica no dispositivo legal supracitado. Primeiramente Mendes se refere à expressão “direito de todos”. Para ele é possível se entender no dispositivo constitucional tanto um direito individual quanto coletivo a saúde, e não deve ser lida apenas como uma norma programática – sob pena de se negar própria força normativa da Constituição. Essa dimensão individual se daria no momento em que se reconhece o direito a saúde como um direito público subjetivo que deve ser garantido pela Administração Pública, e, se não o for, é passível de ser exigido (seu cumprimento) pelo poder judiciário. Importante esclarecer que o direito à saúde não é absoluto, sendo realizado através de políticas públicas e estaria limitado, como outros direitos sociais, à disponibilidade financeira dos SUS.
Existindo o direito fundamental à saúde no ordenamento, há o correspondente dever de do Estado (União, Estados, Distrito Federal e municípios) em prestá-lo. A questão da garantia mediante políticas sociais e econômicas, para Mendes necessita de formulação de políticas públicas que concretizem o direito à saúde por meio de escolhas alocativas. Essas políticas devem visar à redução do risco de doença e de outros agravos – caráter preventivo – e o acesso universal e igualitário a todos, a reforçar a responsabilidade solidária dos entes da Federação.
Quanto ao último elemento identificado no dispositivo legal - ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde – o ministro esclarece que no Brasil o problema da efetivação desse direito não se dá pela falta de políticas públicas, mas sim da não execução destas por parte da administração pública. Mendes deixa claro que o direito à saúde, pelo tratamento que recebe pela Constituição Federal, é um direito fundamental e, como tal, tem aplicação imediata.
Logo, o problema talvez não seja de interferência do Poder Judiciário ao exigir a criação e implementação de políticas públicas em matéria de saúde, uma vez que, na grande maioria dos casos, se exige apenas o cumprimento de políticas públicas já existentes. Analisando isso como critério para decisão, Mendes demonstra que a existência, ou não, de política estatal (formulada pelo SUS) que abranja a prestação de saúde pleiteada pela parte se mostra como um primeiro parâmetro a ser considerado. Porém, se esta não existir, deve-se distinguir entre três situações: se a não prestação decorre de uma omissão legislativa ou administrativa, de uma decisão administrativa de não fornecê-la ou de uma vedação legal a sua dispensação.
Em relação à primeira situação, argumenta o ministro que não raro, busca-se, no Poder Judiciário, a condenação do Estado ao fornecimento de prestação de saúde não registrada na Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Esclarece que quanto ao fornecimento de medicamentos há a necessidade do fármaco possuir registro na ANVISA.
Mendes explica que segunda situação se verificaria no momento em que o SUS não fornecesse um tratamento por entender que inexistem evidências científicas suficientes para autorizar sua inclusão. E, nesse caso, podem ocorrer duas situações: o SUS fornece tratamento alternativo, mas não adequado a determinado paciente ou o SUS não tem nenhum tratamento específico para determinada patologia. Possuindo tratamento alternativo, este só pode ser fornecido à pessoa que comprovar que o tratamento fornecido pelo SUS não é eficaz no seu caso. Inexistindo tratamento na rede pública, o ministro nos apresenta mais uma bifurcação em dois casos: o caso de tratamentos experimentais – que não podem ser cobrados do Estado por meio de uma condenação judicial – e novos tratamentos ainda não testados pelo SUS – que podem ser impugnados judicialmente quando houver omissão administrativa (ausência de protocolo no SUS) na aprovação do fármaco. Os parâmetros podem ser organizados da seguinte forma:
1. Quando há política pública que abranja a prestação de saúde requerida pela parte o Judiciário está apenas determinando o seu cumprimento, hipótese em que há direito subjetivo a execução da política pública.
2. Tem que se verificar se o fármaco pedido possui registro na ANVISA, pois é vedado a Administração Pública fornecer medicamento sem registro, salvo quando há dispensa em virtude de medicamentos adquiridos por intermédio de organismos multilaterais internacionais, para uso de programas em saúde pública pelo Ministério da Saúde.
3. A prestação à saúde pleiteada deve ter evidência científica suficiente para a sua utilização. Caso o SUS forneça tratamento alternativo e não se comprove que ele não é adequado, a ele deve ser dada prioridade, exceto se for provado que por razões específicas o tratamento fornecido não é eficaz ao paciente. Quando estiver configurada a inexistência de políticas publicas e não se tratar de tratamentos puramente experimentais, pode-se questionar, por ações individuais ou coletivas, a elaboração dos Protocolos Clínicos e das Diretrizes Terapêuticas.
Feitas essas considerações, o ministro Gilmar Mendes se debruça agora à análise do caso em questão, iniciando com os argumentos apresentados pela União em seu agravo regimental. A primeira alegação seria a violação ao princípio da separação dos Poderes, uma vez que o Poder Judiciário estaria no caso intervindo em uma questão que seria competência do Poder Executivo. Esse argumento é afastado pelo ministro com o entendimento que em casos como este – onde medicamento ou de tratamento imprescindível para o aumento de sobrevida e a melhoria da qualidade de vida da paciente – a imposição do fornecimento do fármaco por via judicial é plenamente aceitável. Citando a jurisprudência do próprio STF (ADPF 45-MC/DF) e da Doutrina (Christian Courtis e Victor Abramovich) o ministro aponta para a possibilidade da intervenção do poder judiciário.
A União, em outra alegação, aduziu que a decisão que pretendia suspender invadiria a sua competência administrativa e provocaria desordem em sua esfera, ao impor-lhe deveres que são do Estado e do Município. Retomando um argumento que já havia apresentado – o da responsabilidade solidária – o ministro afasta tal alegação. Segundo ele, tanto doutrina quanto jurisprudência tem entendido que os entes federados são solidariamente responsáveis pelas demandas da saúde, e essa solidariedade decorre basicamente da competência comum que lhes é atribuída pela Constituição Federal (art. 23, II, da CF).
Continuando seu voto, o ministro trata do caráter excepcional do pedido de contracautela que não se verifica no pedido da União, uma vez que o pedido tem natureza recursal e a sua concessão levaria a causar danos à saúde e a subsistência do paciente. Já o argumento da grave lesão à economia e à saúde públicas não se configurariam para o ministro, na medida em que se entende que o alto custo de um tratamento ou de um medicamento que tem registro na ANVISA não se mostra como suficiente para impedir o seu fornecimento por parte Poder Público.
Finalizando o seu voto, Mendes lembra que não se justifica o temor de uma decisão como essa gerar precedentes negativos para o Poder Público, caracterizando assim um efeito multiplicador, uma vez que, como já foi dito, as questões dessa natureza devem ser analisadas caso a caso.
Já o ministro Celso de Mello inicia o seu voto falando da importância do direito à saúde representada pelo seu alto significado social e seu valor constitucional. Nesse sentido, a não realização desse direito se mostra como uma censurável inconstitucionalidade por omissão que se imputa ao Poder Público. Mello explica que se o Estado deixa de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição - com o objetivo de torná-los efetivos, operantes e exequíveis – e, dessa forma não cumpre com o dever de prestação que lhe é imposto pela Constituição, incide em violação negativa do texto constitucional. E é desse ‘non facere’ ou ‘non praestare’, que resulta inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total, quando é nenhuma a providência adotada, ou parcial, quando é insuficiente a medida efetivada pelo Poder Público.
Celso de Mello levanta interessante debate ao tratar da ideia da intervenção jurisdicional como limitação à discricionariedade administrativa. Segundo ele essa intervenção, justificada pela ocorrência de arbitrária recusa governamental em conferir significação real ao direito à saúde, é considerada plenamente legítima sempre que se impuser, nesse processo de ponderação de interesses e de valores em conflito, a necessidade de fazer prevalecer a decisão política fundamental que o legislador constituinte adotou em tema de respeito e de proteção ao direito à saúde.
O ministro parte do entendimento que o administrador público está vinculado à Lei Maior e às normas infraconstitucionais para a implementação das políticas públicas nesse campo, o que resulta na sua ausência de discricionariedade para deliberar sobre a oportunidade e conveniência de implementação de políticas públicas discriminadas na ordem social constitucional, uma vez que isso já foi deliberado pelo Constituinte e pelo legislador que elaborou as normas de integração. Dentro dessa lógica, a função do Judiciário é dirimir as dúvidas que surgem sobre essa margem de discricionariedade dando sentido concreto à norma e controlando a legitimidade do ato administrativo.
A partir daí, Mello discute a chamada “reserva do possível”. Lembrando dos já citados Sustein e Holmes (1999), afirma que a implementação dos direitos sociais sempre é onerosa, possuindo assim um vínculo inescapável com as possibilidades orçamentárias do Estado. Uma vez comprovada objetivamente a alegação de incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se pode exigir a imediata efetivação do comando fundado na Constituição.
Mello adverte que deve haver esta comprovação – justo motivo objetivamente aferível – é imprescindível para a utilização da cláusula da reserva do possível por parte do Estado. Busca-se com isso evitar que o poder público tente se exonerar dolosamente das obrigações que lhe são impostas no campo dos direitos sociais. Importante ter em mente que a concepção de “reserva do possível” de Celso de Mello está voltada ao lado financeiro, ou seja, ao possível dentro das possibilidades orçamentárias do Estado.
Em seu voto é trazido um novo elemento: a vedação ao retrocesso social. Citando vasta doutrina sobre o assunto, o ministro expõe que, ao se tratar de direitos fundamentais de caráter social, há impedimento de desconstituir o patamar ou grau de realização alcançado pelo cidadão ou pela formação social em que este vive. Dessa forma, ao tratar de direitos fundamentais sociais como a saúde, está-se diante de verdadeira dimensão negativa que impede a supressão ou diminuição dos níveis de concretização já atingidos.
Por outro lado, a ministra Ellen Gracie indaga se seria possível extrair um julgamento em repercussão geral que sirva a toda essa variedade de casos tão diversos entre si, e onde as circunstâncias fáticas são, muitas vezes, únicas. Esclarece que as moléstias trazidas ao Judiciário e os medicamentos requisitados são os mais variados possíveis e, a não ser que se adote uma categoria homogênea, como os portadores de diabetes que pleiteiem os reagentes e as fitas para fazerem exames, seria inviável uma solução idêntica para todos os casos.
Em que pese a relevância do tema e a forma como estes votos foram feitos, a questão levantada pela ministra Ellen Gracie é de fundamental importância para o tema: como tentar padronizar decisões que têm conteúdo tão discrepante entre si? A resposta influencia qualquer tentativa de editar súmulas vinculantes ou de prolatar decisões com efeito vinculante e/ou erga omnes pelo STF.
Também foi possível notar uma diferente forma de abordar o tema pelos ministros: enquanto a ministra Ellen Gracie tentou restringir ao máximo a formulação de padrões para o Judiciário, ao propor que se cuide de um tema bem específico; o ministro Gilmar Mendes cuidou do direito à saúde no sentido mais específico de fornecimento de medicamentos ou de tratamento médico, cabendo, conforme o caso, ações individuais e/ou coletivas.
Esta pequena distinção na generalidade de tratar o tema também demonstra algo muito comum encontrado na doutrina e jurisprudência: muitas vezes todos os direitos sociais são tratados como se fossem iguais ou como se o controle se desse da mesma maneira. Aqui o ponto suscitado pela ministra Ellen Gracie ganha mais relevância para chamar a atenção sobre o fato de que, postular a intervenção judicial para a concretização de direitos sociais ou controle de políticas públicas, não significa ingerência da mesma maneira sobre todos os direitos.
Ainda se nota que o tratamento do direito à saúde partiu da Constituição Federal em seu artigo 196, analisado pelos ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello, mas que não conceitua o direito à saúde, não se verificou nenhum esforço no sentido de definir, ainda que provisoriamente, o que é a saúde a que se tem direito segundo a Lei Maior. Isto é problemático de um lado, quando se pensa que saúde no Judiciário se resume a “portadores de diabetes que pleiteiam os reagentes e as fitas para fazerem exames”; ou que saúde, enquanto dever do Estado consiste em fornecer remédios e tratamento médicos gratuitamente à população; ou ainda que saúde é “a formulação de políticas sociais e econômicas que visem a garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência médico-hospitalar.”
Não se quer dizer que os votos não sejam relevantes, ao revés, ambos podem ser vistos como marcos no tratamento da matéria pelo STF, inclusive pela realização da audiência pública. O problema é que o tratamento judicial pode reduzir a dimensão do assunto para questões muito peculiares.
A realização de audiência pública também merece comentários. O art. 194, parágrafo único, inciso VII, da CF, dispõe que a organização da seguridade social tem como objetivo ter caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados. No mesmo sentido, o art. 198, inciso III, CF, ao tratar das ações e serviços públicos de saúde afirma que devem ser organizados a diretriz de possibilitar a participação da comunidade. Uma das objeções feitas ao controle judicial de políticas públicas é a limitação que o debate sobre o assunto pode sofrer, ao não permitir ouvir outros pontos de vistas diferentes dos das partes integrantes do processo. O fato do relator ter baseado sua decisão nas informações colhidas demonstra como ouvir argumentos diferentes, não necessariamente tidos como jurídicos, permite que se construa conclusões bem elaboradas, ainda que sempre passíveis de crítica.