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A inconstitucionalidade do “seguro desemprego” criado pelo art. 8º, §2º da Lei nº 12.529/2011 (Lei de Defesa da Concorrência)

Agenda 17/01/2013 às 13:15

O “seguro desemprego” previsto no art. 8º, §2º, da Lei n. 12.529/2011 padece de inconstitucionalidade material, por violação aos princípios da proporcionalidade, razoabilidade e moralidade.

I – Breve introdução sobre a inovação legislativa

A Lei n. 12.529/2011, que estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência – SBDC, entrou em vigor em 30/05/2012 e revogou a Lei 8.884/1994.

A nova lei antitruste estabeleceu que o SBDC é formado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE e pela Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda, conforme a redação do art. 3º.

Por sua vez, dispõe o art. 5º, I, II e III, que o CADE é constituído pelo Tribunal Administrativo de Defesa Econômica, pela Superintendência-Geral e pelo Departamento de Estudos Econômicos.

O atual Tribunal Administrativo de Defesa Econômica recebeu, basicamente, o tratamento jurídico que era dispensado ao antigo Plenário do CADE, quando vigorava a Lei n. 8.884/1994. Na nova lei, quando não se repetiu literalmente os dispositivos legais antes vigentes em relação ao Plenário do CADE, manteve-se a mesma teleologia, a exemplo da forma de composição (1 Presidente e 6 Conselheiros), da perda automática do mandato, da duração do mandato – antes de 2 anos permitida uma recondução (art. 4º, §1º), atualmente de 4 anos, vedada a recondução (art. 6º, §1°).

Todavia, no que concerne às vedações ao Presidente e aos Conselheiros, inovou a nova lei antitruste, ao estabelecer uma “quarentena” ao fim do mandato, nos termos do art. 8º, §1º, in verbis:

“Art. 8º  Ao Presidente e aos Conselheiros é vedado:

(...)

§ 1º  É vedado ao Presidente e aos Conselheiros, por um período de 120 (cento e vinte) dias, contado da data em que deixar o cargo, representar qualquer pessoa, física ou jurídica, ou interesse perante o SBDC, ressalvada a defesa de direito próprio.”

Trata-se de importante previsão legislativa, que se coaduna com o interesse público, a moralidade administrativa, a impessoalidade e outros cânones que orientam a Administração Pública.

Todavia, padece de inconstitucionalidade material a previsão contida no §2º, do mesmo artigo, que possui a seguinte redação:

“§ 2º  Durante o período mencionado no § 1º deste artigo, o Presidente e os Conselheiros receberão a mesma remuneração do cargo que ocupavam.”

Vê-se que o legislador privilegiou os agentes públicos citados ao garantir-lhes remuneração após o término de suas funções, aparentemente “compensando-o” pelo fato de não poder representar qualquer pessoa, física ou jurídica, ou interesse perante o SBDC, pelo período de 120 dias.

Adiante, serão expostos os motivos pelos quais se reputa o referido dispositivo inconstitucional.


II - Da Inconstitucionalidade do “seguro desemprego” criado em favor do Presidente e dos Conselheiros do Tribunal Administrativo de Defesa Econômica

Não se discute acerca da importância da vedação imposta ao Presidente e aos Conselheiros de atuarem perante o SBDC por um período de tempo pré-determinado, tão logo deixem a função pública.

Essa medida possui a clara intenção de evitar que os referidos agentes públicos acabem influenciando na atuação do referido órgão, em função das importantes atribuições que recentemente exerciam nos cargos de mais elevada hierarquia dentro da estrutura do SBDC.

Observa-se que essa medida é voltada à atuação do SBDC de forma escorreita, livre de pressões ou embaraços advindos da análise da pretensão formulada por quem era a autoridade máxima do referido Tribunal Administrativo de Defesa Econômica.

A Constituição Federal também prescreve uma espécie de “quarentena” aos Juízes que se aposentarem ou forem exonerados, nos termos do art. 95, parágrafo único, V, nos seguintes termos:

“Parágrafo único. Aos juízes é vedado:

(...)

V - exercer a advocacia no juízo ou tribunal do qual se afastou, antes de decorridos três anos do afastamento do cargo por aposentadoria ou exoneração. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)”

A análise da doutrina em relação à vedação imposta aos Juízes é aplicável à “quarentena” estabelecida pela nova lei antitruste:

“A EC n. 45/2004 inovou nas vedações, ao estabelecer a proibição de o ex-ocupante de cargo na magistratura exercer atividade advocatícia perante o juízo ou tribunal do qual se afastou, salvo se decorridos três anos do afastamento. Tem-se aqui a aplicação da chamada ‘quarentena’ no âmbito do Poder Judiciário, com o objetivo de evitar situações geradoras de um estado de suspeição quanto ao bom funcionamento do Judiciário. Embora a matéria tenha suscitado alguma polêmica, tendo em vista a restrição que se impõe sobre direitosindividuais, a decisão afigura-se plenamente respaldada na ideia de reforço da independência e da imparcialidade dos órgãos judiciais.

Eventuais críticas ao modelo adotado centraram-se na limitação ao exercício da atividade profissional. Por outro lado, a previsão procura afastar suposto perigo evidenciado pela odiosa prática do revolving doors, como se denomina no Direito norte-americano o trânsito entre setores público e privado. Refere-se a profissional que detém segredo e prestígio por conta de determinada atividade e que, em tese, exploraria o savoir-faire e o bom nome, em benefício próprio ou de terceiros.”

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(Mendes, Gilmar Ferreira et al. Curso de Direito Constitucional. 4ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2009, pg. 979)

No entanto, a previsão contida no §2º do mencionado art. 8º, da Lei n. 12.529/2011 viola frontalmente o princípio da moralidade, bem como não se afigura proporcional.

Antes de mais nada, é sabido que a presente teoria sobre a inconstitucionalidade do mencionado §2º deve caminhar por um trilho construído sobre a própria democracia, pois não se pode taxar qualquer lei de inconstitucional a partir de um juízo meramente subjetivista, ou seja, não se pode apenas dizer que determinada lei é inconstitucional porque não é proporcional, como se tal afirmativa fosse bastante em si, sem perquirir as consequências graves que essa medida representa para o regime democrático.

Nunca é demais lembrar que o poder emana do povo, que o exerce diretamente ou por meio de representantes eleitos (art. 1º, da CF), motivo pelo qual é inegável a atuação contramajoritária ao se reputar uma lei inconstitucional.

Também é necessário esclarecer que o controle de constitucionalidade, difuso ou concentrado, não se presta para afastar a presunção de constitucionalidade de uma lei apenas porque, no íntimo do intérpreteou até mesmo intuitivamente, achou que o ato normativo era desproporcional ou desarrazoado.

A interpretação a contrario sensu da lição doutrinária a seguir transcrita permite essa conclusão:

Não basta dizer que algo é razoável; é preciso saber com que parâmetros, em quais dos sentidos da expressão, e, principalmente, por quê.”

(Leituras Complementares de Direito Constitucional. Teoria da Constituição. Organizador Marcelo Novelino. Bustamante, Thomas da Rosa de. A razoabilidade na dogmática jurídica contemporânea: em busca de um mapa semântico, pg. 228)      

Faz-se ainda mais uma ressalva, a reforçar a seriedade exigida para que se repute uma lei desproporcional. A regra ou princípio[1] da proporcionalidade é muito mais do que um mero juízo comum de bom senso, pronto para “legitimar” qualquer subjetivismo, bem como não serve para substituir a vontade ou juízo de conveniência do legislador/administrador pelo do magistrado. Do contrário, padeceria a segurança jurídica e a própria legitimidade democrática, pois nenhuma lei estaria segura se fosse afastada a sua presunção de constitucionalidade a todo instante.

Sobre o princípio da proporcionalidade, esclarece o Professor Luís Roberto Barroso:

“O princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade, no Brasil, tal como desenvolvido por parte da doutrina e, também, pela jurisprudência, inclusive do Supremo Tribunal Federal, é o produto da conjugação de ideias vindas de dois sistemas diversos: (i) da doutrina do devido processo legal substantivo do direito norte-americano, onde a matéria foi pioneiramente tratada; e (ii) do princípio da proporcionalidade do direito alemão.

(...)

Em suma: a ideia de razoabilidade remonta ao sistema jurídico anglo-saxão, tendo especial destaque no direito norte-americano, como desdobramento do conceito de devido processo legal substantivo. O princípio foi desenvolvido, como próprio do sistema do common law, através de precedentes sucessivos, sem a maior preocupação com uma formulação doutrinária sistemática. Já a noção de proporcionalidade vem associada ao sistema jurídico alemão, cujas raízes romano-germânicas conduziram a um desenvolvimento dogmático mais analítico e ordenado.

(...)

Com foi visto, na tentativa de dar mais substância ao princípio, a doutrina alemã o decompôs em três subprincípios: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.”(Barroso, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010, pgs. 255-259)  

O Professor Luís Roberto Barroso tece ainda importantes considerações quanto aos aspectos estruturantes da proporcionalidade, que constituem a adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, após o que será feita a tentativa de demonstrar a desproporcionalidade da previsão de pagamento de remuneração ao Presidente e aos Conselheiros do Tribunal Administrativo de Defesa Econômica no período de “quarentena”:

“Em resumo, o princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade permite ao Judiciário invalidar atos legislativos ou administrativos quando: (a) não haja adequação entre o fim perseguido e o instrumento empregado; (b) a medida não seja exigível ou necessária, havendo meio alternativo para chegar ao mesmo resultado com menor ônus a um direito individual (vedação ao excesso); (c) não haja proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, o que se perde com a medida é de maior relevo do que aquilo que se ganha. Nessa avaliação, o magistrado deve ter o cuidado de não invalidar escolhas administrativas situadas no espectro do aceitável, impondo seus próprios juízos de conveniência e oportunidade. Não cabe ao Poder Judiciário impor a realização das melhoras políticas, em sua própria visão, mas tão somente o bloqueio de opções que sejam manifestamente incompatíveis com a ordem constitucional. O Princípio também funciona como um critério de ponderação entre proposições constitucionais que estabeleçam tensões entre si ou que entre em rota de colisão.” (Barroso, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010, pg. 261)  

Aparentemente, a previsão de pagamento de remuneração ao Presidente e aos Conselheiros do Tribunal Administrativo de Defesa Econômicapelo exato período de 120 dias seria uma “compensação” pelo fato de não poderem atuar perante o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência. Todavia, essa medida não se revela adequada, pois acaba ocasionando uma inversão de valores.

A vedação imposta pelo §1º, do art. 8º, decorre de um dever de probidade e moralidade, que se mostram acima do interesse meramente particular de atuação profissional destes ex-agentes públicos.Estes não estão prestando um favor à Administração Pública ao não atuar perante do SBDC logo após o término dos respectivos mandatos, e sim cumprindo com um dever inerente à supremacia do interesse público sobre o privado.  Uma“medida compensatória” desse jaez acaba criando um privilégio odioso, pois o ex-agente receberá remuneração sem a prestação do correspondente serviço público.

Ademais, é improvável que o objetivo do legislador fosse tornar mais atrativa a aceitação do encargo de Presidente e Conselheiro. Não se consegue imaginar que alguém fosse recusar a nomeação para este alto cargo só porque ficaria impedido de atuar perante o SBDC pelo período exíguo de 120 dias após o término do mandato.

Também pelo motivo exposto no parágrafo anterior, revela-se desnecessária a medida legislativa, ou seja, dificilmente alguém recusaria a nomeação para este alto cargo só porque ficaria impedido de atuar perante o SBDC pelo período de 120 dias. Mas não é só.

O referido “seguro desemprego” seria “mais aceitável” se o Presidente ou Conselheiro do Tribunal Administrativo de Defesa da Concorrência ficasse impedido de exercer qualquer tipo de trabalho em qualquer lugar. Todavia, depreende-se do §1º, do art. 8º, da Lei 12.529/2011 que os referidos ex-agentes públicos só não poderão atuar perante o SBDC, pelo que nada impede que trabalhem em qualquer outro lugar, desde que não utilizem informações privilegiadas obtidas em decorrência do cargo, o que constitui uma vedação perpétua (art. 8º, §4º).

Não custa lembrar que o Presidente e os Conselheiros são escolhidos dentre cidadãos de notório saber jurídico ou econômico, a teor do art. 6º, caput, da Lei n. 12.529/2011, sendo admissível que constituem profissionais facilmente absorvidos no mercado de trabalho, o que não justifica o pagamento desta espécie de “seguro desemprego”.

A “quarentena” prevista no §1º, do art. 8º constitui meio eficaz para se atingir o objetivo perquirido, mediante a imposição de sacrifício mínimo ao direito individual do Presidente e dos Conselheiros, referente à limitação temporária da liberdade profissional. Essa limitação mínima à liberdade profissionaldesses ex-agentes públicos não justifica um sacrifício à moralidade e à probidade administrativa, mediante pagamento de remuneração sem a prestação do correspondente serviço público.

Igualmente ausente a proporcionalidade em sentido estrito, pois o que se perde com essa espécie de “seguro desemprego” é muito maior do que o que se ganha. Na verdade, não se sabe nem mesmo o que se ganha com essa benesse criada pelo legislador, pois não é o pagamento da remuneração que garante que o então Presidente e os Conselheiros não atuarão perante o SBDC.

Pela proibição contida no §1º, do art. 8º, o Presidente e os Conselheiros não atuariam de qualquer forma neste período de 120 dias perante o SBDC, independentemente do pagamento de remuneração, por mero dever de probidade e moralidade que se sobrepõeà pretensão individual dos ex-agente públicos.

Embora pouco ou nada se ganhe com essa previsão legislativa, muito se perde. Consagra-se, por meio de lei, o pagamento de remuneração sem a correspondente prestação de serviço público, o que constitui, no mínimo, enriquecimento ilícito em face do erário público.

Vale ressaltar que é tranquila na doutrina e jurisprudência a aceitação dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade como parâmetros de controle de constitucionalidade, conforme a lição que se transcreve a seguir:

“Por fim, diversos autores incluem no estudo da inconstitucionalidade material a questão do desvio ou excesso do poder legislativo, caracterizado pela edição de normas que se afastam abusivamente dos fins constitucionais e/ou dos fins declarados. A ascensão e difusão do princípio da razoabilidade, com sua exigência de adequação entre meio e fim, de necessidade da medida (com a consequente vedação do excesso) e de proporcionalidade em sentido estrito, de certa forma atraiu o tema para seu domínio, tornando-se, na atualidade, um dos principais parâmetros de controle da discricionariedade dos atos do Poder Público.”

(Barroso, Luís Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, pgs. 52/53)

“Na Constituição de 88, não existe previsão expressa do princípio da proporcionalidade. O STF tem fundamentado o princípio – tratado pela Corte como idêntico ao princípio da razoabilidade – na cláusula do devido processo legal, na sua dimensão substantiva (art. 5º, XXXIV, CF).

(...)

Um ato estatal qualquer só será considerado compatível com o princípio da proporcionalidade se satisfizer, simultaneamente, aos três subprincípios, que devem ser empregados seguindo um percurso preestabelecido: primeiro, verifica-se se a medida satisfaz o subprincípio da adequação; se a resposta for positiva, passa-se ao subprincípio da necessidade; se, mais uma vez, o resultado for favorável à validade do ato, recorre-se ao subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito. Essa sequência de aplicação dos subprincípios é de observância compulsória e a violação a qualquer deles já basta para que se conclua no sentido da inconstitucionalidade da medida, por afronta ao princípio da proporcionalidade.”

(Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho/ Cláudio Pereira de Souza Neto, Daniel Sarmento. Belo Horizonte: Fórum, 2012, pgs. 468/469).

Da mesma forma, é plenamente aceitável os princípios que regem a Administração Pública enquanto parâmetros de constitucionalidade, mormente o da moralidade, igualdade e impessoalidade, a exemplo do que ocorreu na ADC n. 12, em que se declarou a constitucionalidade da Resolução n. 7 do CNJ, que veda a prática de nepotismo, conquanto conduta violadora da moralidade, impessoalidade, eficiência e igualdade. (ADC 12/DF. Rel. Min. Carlos Britto, julgamento em 20/08/2008)

Isso posto, entende-se que o “seguro desemprego” previsto no art. 8º,  §2º, da Lei n. 12.529/2011 padece de inconstitucionalidade material, por violação aos princípios da proporcionalidade, razoabilidade e moralidade.


Nota

[1]Alguns doutrinadores a tratam como regra (Virgílio Afonso da Silva), outros enquanto princípios (Luís Roberto Barroso), outros a chamam de postulado normativo aplicativo (Humberto Ávila). A informação pode ser constatada em: Silva, Virgílio Afonsa da. Direitos Fundamentais, conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2ª ed. Editora Malheiros, 2010, pg. 168/169.

Sobre o autor
Moises da Silva Maia

Procurador Federal lotado na Procuradoria Federal do Estado do Acre. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Acre.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAIA, Moises Silva. A inconstitucionalidade do “seguro desemprego” criado pelo art. 8º, §2º da Lei nº 12.529/2011 (Lei de Defesa da Concorrência). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3487, 17 jan. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23480. Acesso em: 22 nov. 2024.

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