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O Estado de coisas inconstitucional pela efetivação do direito à saúde

Agenda 19/01/2016 às 09:13

Diante de uma situação de gritante afronta a direitos fundamentais, sobretudo à saúde, o Judiciário entra em cena não para intervir em outro poder, mas para chamá-lo a promover a justiça.

João, que não dispõe de recursos financeiros para custear um plano de saúde, após ser baleado em uma tentativa de assalto, espera, nos corredores de um hospital público, juntamente com outras sete pessoas em igual situação, uma vaga na Unidade de Terapia Intensiva-UTI do maior hospital de sua cidade; Márcia, empregada doméstica, descobriu que sua filha, Bia, com apenas dois anos de idade, precisa, em caráter de urgência, realizar uma cirurgia para corrigir uma deformação congênita no céu de sua boca; Maria, portadora de patologia denominada Niemann-Pick tipo C, busca na justiça um medicamento que possibilitaria aumento de sobrevida e melhora na sua qualidade de vida. Pedro, após ser vitima de acidente automobilístico, encontra-se há mais de quatro anos na fila do Sistema Único de Saúde – S.U.S aguardando a realização de um cirurgia ortopédica. A demora ocasionou-lhe a perda de sua capacidade laboral. Pedro, hoje, encontra-se inválido para o trabalho, um custo que certamente onerou mais o Estado do que o próprio procedimento cirúrgico; do outro lado, três médicos tiveram a prisão decretada na UTI do Hospital Público de Teresina, após recusarem receber dois pacientes que apresentaram ordem judicial de internação em razão da falta de vagas que o Estado não dispõe. [1]

Enquanto são inúmeras as pessoas representadas por esses casos reais, “a universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência” (art. 7, I); “a integralidade de assistência” (art. 7, II); “a preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral”(art. 7, III); “igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie” (art. 7, IV) e todos os demais princípios que regem o S.U.S. previstos na Lei 8.080/90,  bem como as disposições da nossa Carta Constitucional, ficam apenas no papel. Faltam vagas, faltam materiais, faltam médicos. Falta, além de tudo, uma formação humanista por parte dos profissionais da saúde.

Não é apenas de se ver, de se ler ou para decorar. Quando o constituinte de 1988 elegeu à categoria de Direito Fundamental o direito a saúde (art. 7º), certamente estava imbuído da ideia de Força Normativa da Constituição, encampando o pensamento de Konrad Hesse, o qual se traduz nas palavras Gerivaldo Neiva: “esta compreensão importa que a Constituição deverá imprimir ordem e conformação à realidade política e social, determinando e ao mesmo tempo sendo determinada, condicionadas mas independentes.” [2]

Nada há de tão efetivo, contudo, nessa idealização. E não seria pior se o contrário não fosse uma realidade:  muitos dos que participaram dessa construção brilhante que é a nossa Constituição, não só avaliam a sua ineficiência, como são os grandes responsáveis por ela. O poder político acaba sendo condicionante da nossa realidade fática (Conceito político de constituição de Carl Schimitt) sob o argumento de que a reserva dos cofres públicos não é suficiente para o cumprimento de todos os deveres que lhes são atribuídos. Usa-se judicialmente como defesa para essa barbárie a Teoria da Reserva do Possível, a qual explicarei adiante.

Esse argumento também tem sido utilizado como lobby para alteração da base estrutural do S.U.S. e, nesse contexto, o atendimento universal corre sérios riscos de ser suprimido, uma vez que as empresas privadas que atuam no âmbito da saúde apresentam ligações diretas com chefes do executivo e com o legislativo. Nas últimas eleições, por exemplo, eram elas as maiores financiadoras de campanha. A contribuição das operadoras de plano de saúde foi de mais de R$ 52 milhões para 131 candidatos. Segundo Stephan Sperling, que integra a Rede Nacional de Médicos Populares, em entrevista concedida a Rede Brasil Atual, "Eduardo Cunha foi um dos principais recebedores de investimentos de seguradoras e de convênios de saúde, e eles estão cobrando esse apoio". Ele alerta que o setor privado de saúde, “por meio de lobby junto aos parlamentares, quer transformar o SUS numa estrutura disputável por interesses econômicos". [3]

Mas, para a esperança de muitos, a decisão do STF que declarou a inconstitucionalidade da doação de empresas para campanhas eleitorais promete acabar em parte com essa ingerência privada em setores estratégicos de promoção de direitos fundamentais.

Especificamente no que tange o direito à saúde, é preciso reconhecer que o Governo Federal tem mostrado uma tímida preocupação com a questão, instituindo algumas medidas que poderão resultar melhoras a longo e a curto prazo, como a ampliação de vagas nos cursos da área da saúde, sobretudo, nas universidades de medicina e com criação do programa “Mais Médicos”. No entanto, tais fatos representam uma gota de água num deserto imenso em que se encontra o sistema público de saúde. Ainda há muito a ser feito, sobretudo, em termos estruturais, como a unificação do concurso público para ocupação dos cargos de médicos e da estruturação de sua carreira, estabelecendo níveis que obriguem a todos aqueles que ingressarem no serviço público a assumirem seus cargos independente da localidade desejada, assim como acontece com os órgãos do judiciário, por exemplo. Faz-se necessária, ainda, uma padronização dos procedimentos administrativos, como a oferta de serviços e materiais e, acima de tudo, uma fiscalização técnica eficiente no repasse de verbas e na aplicação de investimentos. E, principalmente, anseia-se que a saúde pública altere sua atuação repressiva, passando a atuar preventivamente no combate a enfermidade, o que poderá representar a longo prazo uma economia nos cofres públicos. [4] 

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Talvez um dos maiores entraves nessa mudança seja o fato de que a saúde é o mais fácil alvo de favores políticos. A burla de uma fila no S.U.S, a marcação de uma consulta, a “doação” de óculos, próteses dentárias, cadeiras de rodas, próteses auriculares ou ortopédicas são os votos mais fiéis do eleitorado mais necessitado.


Teoria da Reserva do Possível x Mínimo Existencial

O resultado disso é uma enxurrada de demandas judiciais que cresce dia a dia, a ponto de o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) editar, desde o ano de 2013, uma recomendação aos Tribunais para que criem Varas Especializadas em conflitos da sáude [5]. Como resposta reiterada, o poder público tem apresentado a Teoria da Reserva do Possível. E assim segue o Estado Democrático de Direito, cada vez mais distante do que foi idealizado por Hesse e cada vez mais próximo do conceito de Constituição traçado por Schimitt, fazendo da normatização constitucional uma decisão política do titular do poder constituinte, onde nem todas as normas ali elencadas referem-se a “uma decisão política fundamental”.

Assim, muitas vezes é preciso buscar no direito comparado teorias que não se adéquam à nossa realidade, a exemplo da Reserva do Possível. Explico: essa famigerada teoria teve origem na Alemanha, quando a Corte foi instada a se manifestar sobre a limitação de vagas em cursos universitários. Com base no princípio da razoabilidade, firmou-se a noção de que o cidadão não pode exigir do Estado algo que não esteja no limite do razoável.   No caso concreto, os autores afirmavam o descumprimento ao art. 12 da Carta Constitucional Alemã, que prevê o direito do cidadão à livre escolha de sua profissão e, por essa razão, aquele Estado deveria oferecer o número de vagas pleiteadas em universidades equivalentes à demandada desejada, sem que houvesse concorrência ou uma disputa. Assim, considerando que os cidadãos daquele país já dispõem de um mínimo de prestações materiais capazes de assegurar existência digna, a jurisprudência Alemã desenvolveu a tese de que não se pode exigir do Estado prestações supérfluas, que escapem limite do razoável, não sendo exigível que a sociedade arque com esse ônus.

No Brasil, com a maestria com a qual se utiliza o direito posto para manutenção de uma ordem (des) igual, a teoria ganhou conceitos unicamente financeiros, e passou a ser utilizada como um limite à intervenção judicial no executivo, tendo com base a insuficiência de recursos. Assim, com uma limitação absoluta, passou-se a defender que apenas os direitos negativos seriam passíveis da tutela judicial, pois aqueles que demandassem recursos financeiros (os positivos) estariam sujeitos à Reserva do Possível.

Alguns pensadores do direito, entretanto, irresignados com a tentativa de burla à nossa Constituição, criaram uma corrente dissidente quanto aos limites da aplicação da tese, que, felizmente, foi encampada pela jurisprudência do STF (ADPF 45 MC/DF de Relatoria do Ministro Celso de Melo).  Prevaleceu, então, a linha de que a Reserva do Possível esbarra na ideia do chamado “mínimo existencial”, segundo o qual existem direitos positivos ligados ao núcleo essencial da dignidade da pessoa humana que seriam sempre e imediatamente tuteláveis, ficando os demais sob a órbita da reserva do possível.

Tal constatação fez surgir para o Administrador Público aquilo que a doutrina denominou de escolhas trágicas, ou seja, a capacidade para fazer escolhas corretas que permitam alocar os “escassos recursos” financeiros de que o Estado dispõe, priorizando as demandas sociais mais urgentes.


Micro justiça x Macro justiça

Dentro da problemática da saúde em nosso país, essa teoria tem causado grandes preocupações, pois o Executivo insiste em negar legitimidade à interferência judicial na execução da tutela a saúde sob o fundamento de que haveria uma ingerência indevida no Poder Executivo, pondo em risco o equilíbrio da tripartição dos poderes. Não é de se repudiar completamente tal constatação. No entanto, o que se pode observar no âmbito da saúde é algo além do excesso de judicialização, parafraseando o Ministro Barroso: é a escassez da boa política provocando uma necessária interferência do judiciário enquanto guardião máximo dos direitos assegurados constitucionalmente. [6]

 O tema ganha contornos ainda mais dramáticos se considerarmos o risco que se corre ao comprometer o todo com a alocação de recursos na concentração de demandas individuais. É que muitos dos que se encontram em situação de vulnerabilidade não dispõem de acesso à informação que lhes possibilite a busca ao judiciário, principalmente se considerarmos a carência das Defensorias Públicas em boa parte do país. Além disso, ainda que todos pleiteassem a tutela jurisdicional, as decisões proferidas repousariam na visão restrita e casuística do magistrado, causando um choque também na segurança jurídica.

Nesse contexto, sob o prisma do tão criticado ativismo judicial, o magistrado brasileiro fica cotidianamente dividido entre o drama do caso concreto e a intervenção nas políticas, e, na maioria das vezes, acaba optando pelo tipo de provimento judicial focado no caso concreto, o que chamamos de micro justiça. Tamanha relevância dessa questão levou o STF, no pedido de Suspensão de Segurança 3741/2009, a alertar para a necessidade do julgador, nesses casos, observar se o ente federativo responsável pela demanda teria condições de suportar a extensão dos efeitos da sentença a todos os outros indivíduos que se encontrem na mesma situação.

Surge, com isso, outro problema: a visão Tradicional da Teoria da Tripartição dos poderes, segundo a qual o judiciário não dispõe de competência para atuar dentro daquilo que se chama de macro justiça, ante a sua ausência de representatividade eletiva e as críticas ao temido ativismo judicial, por aqueles que temem a formação de um “superjudiciário”.

A tutela à saúde e o “Estado de Coisas Inconstitucional (ECI)”

A par das críticas a respeito do ativismo (umas fundadas, outra não), o fato é que não se pode ignorar os preceitos da nossa Carta Constitucional e os percalços da crise que o modelo democrático enfrenta hoje, ante a ausência de representatividade nas decisões daqueles e daquelas que são eleitos para atuar em favor de todos, sobretudo dos mais desfavorecidos.

Felizmente, as luzes do (neo) constitucionalismo, brilhando dessa vez na América Latina, surgem para iluminar a inóspita administração pública, propondo uma gestão compartilhada e dialógica entre os Poderes da República, através da teoria da Corte Colombiana sobre o Estado de Coisas Inconstitucional, recentemente encampada pelo STF.

O leading case chegou ao STF para relacionar o mesmo assunto tratado pela Corte da Colômbia no desenvolvimento dessa aplaudida tese: a crise no sistema prisional e a grave violação de direitos humanos por parte das autoridades públicas. O Julgamento de ambas as Cortes resultou na proposição de um diálogo institucional entre os poderes da república visando encontrar a melhor solução para acabar com a violação desses direitos. Promete-se, através desse diálogo, um modelo jurisdicional diferente do tradicional, resultando em uma sentença estrutural com fito de fixar o que se denominou “remédios estruturais”, instrumentos aptos a adequar a execução de determinadas políticas.

Nesse sentido, a doutrina já cuidou de estabelecer requisitos necessários para tal intervenção, quais sejam: a) constatação de uma violação massiva de direitos fundamentais que recai sobre grande número de pessoas; b) uma omissão reiterada e persistente das autoridades públicas no cumprimento de suas obrigações e na promoção dos direitos fundamentais; c) a necessidade de expedição de “ordens de correção estrutural” para uma pluralidade de órgãos ante a constatação de uma falha estrutural; e, por fim, d) a potencialidade de congestionamento da justiça, se todos os que tiverem seus direitos violados acorrerem individualmente ao Poder Judiciário. [7]

Desta forma, constata-se que o reconhecimento do “Estado de Coisas Inconstitucional” abre espaço para que se consigam resultados mais eficazes no que se refere aos inúmeros casos individuais que aguardam uma solução do Judiciário para efetivação da tutela do direito à saúde, já que impende, igualmente, uma solução mais justa e uniforme. Aos pensadores do direito, que façam efetivar essa busca como a próxima da pauta, já que a saúde é o núcleo primordial para o pleno exercício de qualquer direito fundamental e vem sendo sonegada de forma reiterada e sistêmica, sem que seja vislumbrada qualquer intenção dos responsáveis locais no sentido de resolver o problema.

Nessa proposta, diante de uma situação de gritante afronta a direitos fundamentais, o judiciário entra em cena não para intervir em outro poder, mas para chamá-lo a promover a justiça. Não para se sobrepor, mas para propor o necessário diálogo entre os “promotores do estado democrático de direito”, a fim de que seja feita a vontade da Carta Maior, caminhando para o dia em que justiça enquanto “pão do povo” possa ser não só compartilhada e distribuída, mas semeada de forma suficiente a proteger a todos que dela precisem.

Nesse contexto, faz-se necessário retomar a frase proferida há 6 anos em julgado do STJ (ainda hoje atual) sobre a efetivação do direito a saúde: “a Constituição não é ornamental, não se resume a um museu de princípios, não é meramente um ideário; reclama efetividade real de suas normas. Destarte, na aplicação das normas constitucionais, a exegese deve partir dos princípios fundamentais, para os princípios setoriais. E, sob esse ângulo, merece destaque o princípio fundante da República que destina especial proteção a dignidade da pessoa humana.” [8]


REFERÊNCIAS

[1] Disponível em (http://g1.globo.com/pi/piaui/noticia/2014/10/medicos-nao-atendem-pacientes-por-falta-de-leitos-e-tem-prisao-decretada.html)

[2] NEIVA, Gerivaldo Alves. Os fatores reais do poder e força normativa da Constituição. Articulações entre Konrad Hesse, Ferdinand Lassalle e Gramsci. Jus Navigandi. Disponível em:. Acesso em: 13/01/2016)

[3] Disponível em http://www.redebrasilatual.com.br/saude/2015/08/medicos-criam-site-para-defender-sistema-unico-de-saude-8713.html Acesso dia 14/01/2016

[4] ARRUDA, Igor Araújo de. Drible político à carreira médica nacional e o possível "discurso engana-pobre".Jus Navigandi.Disponível em https://jus.com.br/artigos/25498/drible-politico-a-carreira-medica-nacional-e-o-possivel-discurso-engana-pobre. Acesso dia 14/01/2016

[5] Pedido de vista suspende votação sobre varas de saúde. Conjur. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-mai-29/cnj-suspende-votacao-criacao-varas-especializadas-saude. Acesso dia 14/01/2016

[6] BARROSO, Luis Roberto. A ascensão política das Supremas Cortes e do Judiciário.Conjur. Disponível em http://www.conjur.com.br/2012-jun-06/luis-roberto-barroso-ascensao-politica-supremas-cortes-judiciario. Acesso dia 14/01/2016

[7] CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. O Estado de Coisas Inconstitucional e o litígio estrutural. Conjur. Disponível em http://www.conjur.com.br/2015-set-01/carlos-campos-estado-coisas-inconstitucional-litigio-estrutural. Acesso dia 14/01/2016.

[8] Julgamento do RMS n. 24.197/PR, T1, DJe 24/08/2010: http://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/16825941/recurso-ordinario-em-mandado-de-seguranca-rms-24197-pr-2007-0112500-5/relatorio-e-voto-16825943)

Sobre a autora
Monaliza Maelly Fernandes Montinegro

Defensora Pública do Estado da Paraíba. Foi Servidora Pública Federal no Instituto Nacional do Seguro Social - Analista com formação em Direito e exerceu o cargo de Técnica do seguro social. Formação em Direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Autora de artigos Jurídicos em periódicos como Jornal GGN, revista ContiOutra, site Bastidores na Política, site BemBlogado, JornaldeFato, na página do Rapper Emicida e na revista da Academia de Letras do Brasil/AM. Atualmente, colunista da revista on line justificando.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MONTINEGRO, Monaliza Maelly Fernandes. O Estado de coisas inconstitucional pela efetivação do direito à saúde. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4584, 19 jan. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/45906. Acesso em: 22 dez. 2024.

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