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Megaeventos e legislação de exceção.

Poderes como servos do capital e legado de ataque aos direitos fundamentais

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3 ESTADO DE EXCEÇÃO PERMANENTE, ESTADO COMO SERVO

Necessitas legem non habet[29].

Citado por Giorgio Agamben no início de seu “Estado de Exceção”, tal adágio tem fundamentado vários abusos por aqueles que se acham investidos de poderes quase subrenaturais, denominados “poderes de Estado”, às vezes revestidos do Rei Midas “bem público”, ou “finalidade pública”, ou “dignidade humana”, expressões cunhadas para a proteção e busca de um consenso em torno do caminho a ser trilhado pela sociedade. Contudo, como sói acontecer neste país, nobres premissas são desvirtuadas com fins demagógicos e utilizados como ferramentas de persuasão para causas menos nobres.

 Alguns preconceitos preparam o campo para a utilização equivocada do sistema jurídico contra o próprio sistema, ferindo de morte o ideário de ordem democrática. É assim o próprio conceito de Estado.

Com efeito, a previsão constitucional do estado de defesa e sítio, encontra-se no Título V da Constituição Federal de 1988, com o nome “Da Defesa do Estado e Das Instituições Democráticas”.

Neste ponto, surge a pergunta: quem é este Estado? No texto “Deus e Estado”[30], Hans Kelsen conclui que “esse Estado da teoria geral do estado é, enquanto ordem, idêntico ao direito. Enquanto pessoa é apenas a personificação, a expressão antropomórfica da unidade do direito”, ou seja, uma hipostasia[31]. Em que pese ocupar espaço na Constituição pátria, este Estado não passa da própria realização da Carta Magna e da ordem jurídica que ela ordena. O estado de necessidade que, pela lógica da doutrina da estabilização constitucional, pode motivar qualquer atitude excepcional à ordem vigente deve ser justamente a necessidade de manutenção da harmonia constitucional.

Imaginar a existência de um Estado que justifique e busque agir pelo estado de necessidade, firmando seus passos brutos, é trazer um ente equiparado a Deus ao “Estado” laico. Kelsen não deixa dúvidas de que o Estado seria, pois, uma crença:

Assim, Deus e Estado só existem se e na medida em que alguém crê neles, e são aniquilados – junto com seus imensos poderes que saturam a história universal – quando o espírito humano se liberta de tais crenças. [32]

Enquanto não se dá tal libertação, continuamos à mercê de uma “política de Estado”, justificando-se no estado de necessidade diverso da manutenção e dinamismo da ordem constitucional. Excepciona-se rotineiramente a ordem constitucional para fazer valer interesses mesquinhos metamorfoseados na entidade opressora do Estado.

Aqui é oportuno recobrar a Tese VIII de Walter Benjamin: “A tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção no qual vivemos é a regra” [33].

 Vê-se, assim, que a utilização do conceito de Estado tem o objetivo de tirar a forma da ordenação normativa, fantasiando poderes numa entidade personificada, que passa a ser titular da força e a motivar, em seu nome, atitudes contrárias à ordem jurídica constitucional. Sob o amparo (ou domínio) do Estado, é possível qualquer reversão que busque a segurança deste ente estranho à norma constitucional e que se sobreponha a ela. Como antídoto, a lógica insofismável de Kelsen[34]: “A redução do conceito suprajurídico de Estado ao conceito de direito é o pré-requisito imprescindível para o desenvolvimento de uma autêntica ciência jurídica enquanto ciência do direito positivo depurado de todo direito natural”.

Esta constatação torna-se útil nesta monografia para que se possa descortinar a utilização falaciosa do Estado em prol de interesses mercantis diversos dos interesses individuais, sobretudo no momento em que o Brasil é bombardeado por interesses comerciais “maiores”, restando a conclusão de que “o pensamento dual (Estado e Direito), cuja origem filosófica pode ser rastreada na obra platônica, serve a propósitos políticos conservadores.” [35]

É evidente que a classe política não se descuidaria da possibilidade de utilizar o argumento “dos interesses de Estado” para justificar o estado de exceção fora da própria exceção constitucional. Os artigos de lei, atos normativos e projetos de lei a serem citados nesta breve monografia, sobretudo os que limitam o direito de greve, livre iniciativa, que expõe o bem público ao perigo de desvio (com a falta de transparência e rito seguro), que praticam a desinfecção social, vêm excepcionar a ordem constitucional, ainda que travestidos formalmente como instrumentos normativos escorreitos (leis).

É preciso acrescentar aqui outro fator que motiva e tenta justificar ações limitadoras de direitos constitucionais, bem como fomentam a direção da normatividade rumo a uma excepcionalidade constitucional: o risco possível de atentados terroristas ou ocorrências violentas que atinjam atletas, autoridades ou turistas envolvidos nos grandes eventos, com potenciais repercussões midiáticas. Diante desta possibilidade, que nunca deixou de estar presente, caminha-se para a criação voluntária de um estado de emergência[36].

Aos moldes do que ocorre nos Estados Unidos da América, com o USA Patriotic Act de outubro de 2001, a possibilidade da ocorrência de atentados terroristas, numa política de precaução[37], já se mostra capaz de excepcionar a ordem constitucional. Debord (2011, p. 185) alerta que, em casos como este:

As populações espectadoras não podem saber tudo a respeito do terrorismo, mas podem saber o suficiente para ficar convencidas de que, em relação a esse terrorismo, tudo mais deve lhes parecer aceitável, ou, no mínimo, mais racional e mais democrático.

Com esse viés, amparados ora sob a entidade do Estado e suas finalidades prioritárias e que exigem a sobreposição utilitarista, ora sob a urgência do capital que exige celeridade e efetividade na aplicação de suas medidas de usura, os poderes governamentais colocam em funcionamento a engrenagem do estado de exceção. As instituições democráticas são colocadas a serviço dos empreendimentos lucrativos de grandes instituições privadas, e o pacote de leis e atos normativos, na prática, visam garantir o respaldo para o êxito das ações da FIFA e seus patrocinadores, deixando um legado de violação aos princípios republicanos.

Relevante pormenorizar a legislação de exceção que se instalou no Brasil, selecionando, dentre vasto leque, a que apresenta maior potencial danoso, a partir do referencial teórico que apoia esta monografia.

3.1 Militarização

José Afonso da Silva (1997, p.692) enxerga o papel das Forças Armadas como indissociável da defesa das instituições democráticas e assim leciona:

Correlacionando a defesa das instituições democráticas e Forças Armadas é forçoso convir que estas ficaram, na perspectiva constitucional, como instituições comprometidas com o regime democrático inscrito na Constituição de 1988, em termos que já estudamos antes, o que torna mais grave qualquer desvio, ainda que circunstancial, que envolva desrespeito aos direitos fundamentais do homem, incluindo os individuais, os sociais (aí o direito de sindicalização e o de greve), os políticos e de nacionalidade. Nesse mesmo compromisso ficam envolvidos os órgãos da segurança pública.

Depreende-se que ao conjunto de instituições previstas pela Constituição Federal cabe parcela do exercício de poder, cada qual realizando seu mister em função dos interesses, bens e serviços públicos. Assim, às Forças Armadas, como citado, cabe o seu quinhão na dinâmica democrática, o que significa dizer que não podem ser utilizadas como substitutas dos órgãos regulares de segurança pública, salvo se em estado de exceção.

Garantir a segurança pública nas cidades-sedes dos megaeventos é muito mais do que posicionar militares com armas e blindados de guerra a cada cinquenta metros na Praia de Copacabana, nas margens da Lagoa da Pampulha ou sob os casarões históricos de Salvador.

Às Forças Armadas não competem prestar serviços de segurança pública em tempos de paz e de normalidade constitucional. Esta atribuição é expressamente destinada aos órgãos policiais elencados no art. 144, caput e incisos I a V, da Constituição Federal, no capítulo III – Da Segurança Pública:

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

I - polícia federal;

II - polícia rodoviária federal;

III - polícia ferroviária federal;

IV - polícias civis;

V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.

E não poderia ser de outro modo. A doutrina que fundamenta as Forças Armadas não é a mesma que sustenta as forças policiais, responsáveis pela segurança pública. Enquanto aquelas se preocupam, quando lidam com civis, com manutenção da ordem dominante, estas, desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) buscam sua raiz na defesa da cidadania e dos direitos fundamentais [38]:

O processo da construção de uma instituição policial se diferenciaria da instituição militar, de natureza bélica. O exército teria como pressuposto de atuação o máximo emprego da violência para abalar a coesão do inimigo na guerra. A instituição responsável pela polícia utilizaria o mínimo de força necessário para compelir à obediência individual e coletiva nos tempos de paz.

Essas são as palavras de Francis Albert Cotta, concluindo que caberia às polícias, e não aos militares, “produzir e sustentar a paz por meios pacíficos e civilizados”. [39]

É tempestivo denunciar uma deturpação do sistema policial brasileiro, antes de prosseguir.

O art. 144, em seu inciso V, traz a previsão da Polícia Militar e Corpo de Bombeiros Militares como órgãos da segurança pública, e não se pode ignorar a importância das polícias militares nesta estrutura. Numericamente, formam o maior contingente policial brasileiro. Inclusive, são tidas pelo texto constitucional, no §6º do mesmo art. 144, como “forças auxiliares e reserva do Exército”.

Considera-se a militarização dos órgãos de segurança pública, de per si, ainda que inscrita na Constituição Federal, um atavismo no sistema. Tal retrocesso é denunciado por Francis Albert Cotta, quando diz que as polícias brasileiras, em sua mais remota origem, ainda em épocas escravocratas, se distanciaram do caminho das polícias europeias em busca de uma proteção do indivíduo, e surgiram destinadas prioritariamente à manutenção da ordem desumana que existia ao sul do Equador. [40]

Se esta verdade sobre os primórdios das polícias brasileiras está magistralmente apresentada por Francis Albert Cotta, em seu livro “Matrizes do Sistema Policial Brasileiro” (2012), não é por outro motivo senão para denunciar um equívoco de origem, em prol de uma trilha mais ao sol, conforme atesta o Professor Andityas[41]:

Para que cheguemos sequer a cogitar uma polícia que vem, é preciso antes um rigoroso trabalho arqueológico capaz de revelar à polícia – e tal só pode ser, como toda verdadeira revelação, uma auto-revelação – as suas estruturas históricas e ideológicas, os seus determinismos, aporias e mitologemas.

Ao revés, em busca de uma polícia que volta, e não em prol de uma polícia que vem[42], trabalha o maestro Governo Federal em prol dos interesses mercantis dos megaeventos.

Comprova-se esta realidade através da Portaria 2.221, de 20/08/12, aqui de citação cogente:

Considerando que a Excelentíssima Senhora Presidenta (sic) da República, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, inciso VI, alínea "a", da Constituição Federal, publicou o Decreto de 14 de janeiro de 2010 e o Decreto de 26 de julho de 2011, instituindo o Comitê Gestor da Copa do Mundo FIFA 2014 - CGCOPA, bem como o Decreto nº 7.682, de 28 de fevereiro de 2012, o qual altera o art. 5º do Decreto nº 7.538, de 1º de agosto de 2011, relacionando como Grandes Eventos: a Jornada Mundial da Juventude de 2013; a Copa das Confederações FIFA de 2013; a Copa do Mundo FIFA de 2014; os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016; e outros eventos designados pelo Presidente da República. Neste contexto, o Ministério da Defesa está autorizado a realizar o planejamento para o emprego temporário das Forças Armadas para atuar: nas áreas de Defesa Aeroespacial, de Controle do Espaço Aéreo, de Defesa de Áreas Marítima, Fluvial e Portuária, de Segurança e Defesa Cibernéticas, de Preparo e Emprego, de Comando e Controle, de Defesa Contra Terrorismo, de Fiscalização de Explosivos, de Forças de Contingência e de Defesa Contra Agentes Químicos, Biológicos, Radiológicos ou Nucleares; em ações complementares, quando for o caso; e em outras atribuições constitucionais das Forças Armadas, em todas as cidades-sede, durante os Grandes Eventos.

É preciso ter a clareza de que “o uso do exército para os trabalhos que são da alçada civil não pode ser uma solução de longo prazo", conforme recentemente declarou o Secretário de Defesa dos EUA, Leon Panetta[43]. Embora representante do país que se tem notabilizado pela militarização de diversas práticas civis, não deixa de ser uma assertiva coerente com o autêntico (e hoje mitológico) Estado Democrático de Direito.

O ideário de segurança pública, que a partir da Revolução Francesa passou a pedir (ao menos utopicamente) o modelo de “polícia cidadã” [44], resguardando a paz dos indivíduos e da garantia do exercício de seus direitos fundamentais, neste momento sofre, em nossa pátria, um profundo retrocesso. Contrariando uma otimista construção de uma polícia cidadã, que parece indicar a Constituição Federal de 1988 e suas previsões dirigentes, a coordenação da segurança pública passa excepcionalmente às mãos das Forças Armadas, conforme se vê na portaria assinada pela Presidente da República.

A portaria dá poderes amplos ao Ministério da Defesa para que atue “nas atividades compreendidas nos Grandes Eventos determinados pela Presidência da Republica”.

Sob o pretexto do exercício da “defesa”, utilizada com desprendimento na referida Portaria, alarga-se infinitamente o campo de atuação dos militares no período de exceção representado pelos megaeventos.

A opção militarizante adotada pela Presidência da República sofreu algumas tímidas críticas, como a do Colégio Nacional de Secretários de Segurança Pública – CONSESP[45]:

Segurança Pública é hoje um dos maiores anseios sociais em todos os recantos do país. Oportunidade de importantes melhorias como o aporte de legados posteriores aos grandes eventos não deve ser perdida, portanto o CONSESP vem a público manifestar sua preocupação com a questão, recomendando que a coordenação das referidas atividades de Segurança Pública continue sob a responsabilidade da Secretaria Especial de Grandes Eventos do Ministério da Justiça, com gestão compartilhada entre os Secretários de Estado de Segurança Pública do Brasil.

Orientando a opção do uso indevido das Forças Armadas em prejuízo dos órgãos constitucionais de segurança pública, a Presidência da República atropela a oportunidade de investimento nas polícias civis, a sua coordenação racional e integrada, e a capacitação dos órgãos policiais no exercício de sua função primordial. Os órgãos policiais são preteridos e levados ao descrédito com a militarização declarada.

O Ministro da Defesa, Celso Amorim, diante da repercussão da decisão da presidente de passar a coordenação da segurança dos Grandes Eventos às Forças Armadas, “fez questão de ressaltar que a Defesa não quer tomar a função de ninguém. Mas, se a juízo da Presidenta (sic) da República, as Forças Armadas devam ser acionadas, seja em um papel supletivo ou principal, nós estaremos presentes, estaremos ajudando”. [46]

Sintomático observar que os Decretos de 14 de janeiro de 2010 e 26 de julho de 2011, instituindo o Comitê Gestor da Copa do Mundo FIFA 2014 - CGCOPA, bem como o Decreto nº 7.682, de 28 de fevereiro de 2012, o qual altera o art. 5º do Decreto nº 7.538, de 1º de agosto de 2011, buscam seu substrato legitimador no Decreto 3.897, datado de 24/08/2001, que “fixa as diretrizes para o emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem”.

O art. 2º do referido Decreto, sinaliza:

Art. 2º  É de competência exclusiva do Presidente da República a decisão de emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem.

Aqui está a janela para a excepcionalidade constitucional e o uso das Forças Armadas em contradição com as funções institucionais democráticas. Pela própria localização topográfica da previsão das Forças Armadas na Constituição (no capítulo antecedente reservado à segurança pública, sem nenhuma hierarquia funcional sobre esta, no mesmo título “Da Defesa do Estado e Das Instituições Democráticas”), é intuitivo a sua impossibilidade de atuação em substituição aos órgãos permanentes e democráticos de segurança pública.

 A estreia dos megaeventos no Brasil não traz em si a necessidade do uso das Forças Armadas, senão no exercício arbitrário da força militar como “opção de se manter a ordem e o controle por meio de mecanismos repressivos num ambiente em que pessoas são consideradas coisas” [47], em prol da garantia do retorno próspero de investimentos para os patrocinadores aliados da FIFA e do Governo Federal.

Opta-se pela falsa aparência de que a segurança pública está sob controle. Vitimizada, a Segurança Pública encontra-se em perigo, na verdade.

Exercício da pura violência[48].

Até mesmo o malfadado Decreto 3.897/2001 somente admite o uso das Forças Armadas para a garantia da “lei e da ordem” quando “esgotados os instrumentos a isso previstos no art. 144 da Constituição”.

Também a Lei Complementar nº 97, de 09 de junho de 1999, que dá amparo ao decreto acima, em seu artigo 15, §2º delineia estreitos limites ao uso das Forças Armadas, nos mesmos moldes:

§ 2º A atuação das Forças Armadas, na garantia da lei e da ordem, por iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais, ocorrerá de acordo com as diretrizes baixadas em ato do Presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no art. 144 da Constituição Federal.

§ 3º Consideram-se esgotados os instrumentos relacionados no art. 144 da Constituição Federal quando, em determinado momento, forem eles formalmente reconhecidos pelo respectivo Chefe do Poder Executivo Federal ou Estadual como indisponíveis, inexistentes ou insuficientes ao desempenho regular de sua missão constitucional.

Curiosamente, tentou-se em vão encontrar amparo constitucional para a previsão do art. 15, §2º, da Lei Complementar nº 97, de 09 de junho de 1999, que por sua vez é sustentáculo do Decreto 3.897/2001. A determinação de regulação por lei complementar prevista no art. 142, § 1º, da Constituição apenas assim dispõe: “Lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas.” E ponto final.

Em nenhum momento a Constituição Federal entrega às Forças Armadas qualquer ascensão sobre os órgãos de segurança pública ou possibilita a invasão de competências. Quando no artigo 142, in fine, evocam-se as Forças Armadas na “garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem” não é senão na perspectiva democrática. A Constituição não permite uma leitura autofágica de sua estrutura.

Coube à tendência repressiva do legislador complementar colocar a democracia sobre o cadafalso.

A Lei Complementar nº 97/99 e o Decreto 3.897/2001, nos artigos comentados, são flagrantemente inconstitucionais.

Ainda assim, as polícias brasileiras não cumprem com sua função institucional? Não parece que seja o caso. Constitui, antes, uma opção à margem dos princípios constitucionais a escolha da Presidência da República de lançar mão das Forças Armadas em prejuízo dos órgãos policiais constitucionalmente desenhados para tal fim. Opção a favor do mercado, em prejuízo da normalidade democrática. Uma legislação de exceção, portanto.

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Em seus estudos sobre Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Canotilho (1994, p. 63) sentencia:

A aporia da vinculatividade constitucional insiste na contradictio: por um lado, o legislador deve considerar-se materialmente vinculado, positiva e negativamente, pelas normas constitucionais; por outro lado, ao legislador compete “actualizar” e “concretizar” o conteúdo da constituição. Perante este “paradoxo”, a proposta a antecipar é a seguinte: o direito constitucional é um direito não dispositivo, pelo que não há âmbito ou liberdade de conformação do legislador contra as normas constitucionais nem discricionariedade na não actuação da lei fundamental. (...) Em termos sintéticos: a não disponibilidade constitucional é o próprio fundamento material da liberdade de conformação legislativa.

Em que pese o “caráter militar da polícia brasileira e seu foco na manutenção da ordem” (COTTA, 2012, p. 23), não seria exagero imaginar que caminhava-se a passos lentos, diga-se (antes destes últimos ataques aos órgãos policiais), para a construção de uma polícia democrática e desmilitarização do corpo policial[49]. No entanto, a sociedade do espetáculo que transformou a democracia na “liberdade ditatorial do Mercado, temperada pelo reconhecimento dos Direitos do homem espectador” (DEBOR, 1997, p. 11), exige neste momento, e agora por estar no centro do palco midiático, sem soluções racionais que suportem dialogar com os princípios individuais consagrados, o subjugo à autoridade dos militares. O que poderia não ser exagero (desmilitarização), demonstra ter sido ingenuidade.

Nesta perspectiva, é importante realçar que a ilegalidade (corrupção, envolvimento em milícia, assassínios etc) dos agentes de segurança pública, propagados diuturnamente pela imprensa, não podem ser motivo para o decreto de apoderamento das atribuições dos órgãos policiais. À ilegalidade do servidor, num estado democrático, cabem as vias regulares de punição e exclusão dos quadros da corporação. E nem esta ilegalidade é tão perversa quanto a ilegalidade institucional, que fere de morte a Constituição Federal, e contra a qual, no atual estado de coisas, não há antídotos.

Em que pese não haver nenhuma ameaça externa, ou grave e iminente instabilidade institucional, ou mesmo qualquer calamidade de grandes proporções na natureza (afinal, “Deus é Brasileiro”), o mercado internacional, personificado na FIFA e seus patrocinadores, exige que as Forças Armadas, por precaução, protejam a todos de eventuais ameaças e até mesmo do futuro incerto.

O vice-almirante José Carlos Mathias, Comandante do 7º Distrito Naval em Brasília, em declaração sobre o treinamento dos fuzileiros navais que participarão do controle dos megaeventos, resume bem a missão das Forças Armadas[50]:

O nosso objetivo é evitar que haja, que se atrapalhe [...] que as pessoas, até por curiosidade, possam atrapalhar o andamento normal dos jogos. O importante para nós [...] é que o ator principal são (sic) as competições, são os jogos, são os jogares de futebol, ou seja, o espetáculo é que tem que prevalecer.

Esta precaução, que justifica medidas excepcionais em “defesa do Estado”, é assim tratada por Gonzalo Velasco Arias:

O dispositivo de risco que, por um lado, assume a absoluta incerteza do futuro; por outro lado, ele estrutura o presente em função da previsão de um acontecimento catastrófico. A precaução dispõe a realidade em função da possibilidade de uma con­tingência catastrófica cujo advento não se pode conhecer. O risco que representa é o de “pior cenário possível” no qual se produziriam danos irreparáveis. Em consequência, o nível de risco tolerado é nulo [...] [51].

Veja-se que a Portaria citada, não se contenta com os Grandes Eventos previstos para 2013 e 2014, trazendo uma cláusula de extensão que alarga a já excepcional e inconstitucional invasão militar na segurança pública e no campo de atribuições dos órgãos policiais: “outros eventos designados pelo Presidente da República.[52]

Em verdade, tal alargamento é dado pelo Decreto nº 7.682, de 28 de fevereiro de 2012, que altera o art. 5º do Decreto nº 7.538, de 1º de agosto de 2011, acrescentando o inciso V: “outros eventos designados pelo Presidente da República”. 

Imperioso encerrar este tópico citando a clareza do art. 12 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão:

Artigo 12º- A garantia dos direitos do Homem e do Cidadão carece de uma força pública; esta força é, pois, instituída para vantagem de todos, e não para utilidade particular daqueles a quem é confiada. (grifo nosso)

3.2 Violação à soberania e coordenação de dados sigilosos pela FIFA

Além de um retorno ao apoio da força militar para controle da ordem, e aqui não há como afastar as lembranças dos anos de chumbo anteriores à Constituição Federal[53], algumas regras elementares de segurança da informação e política de sigilo institucional serão quebradas, em favor da entidade privada que domina os lucros do futebol profissional.

O artigo 13 da Lei 12.663, de 05 de junho de 2012 - Lei Geral da Copa prevê que o credenciamento dos envolvidos com os eventos FIFA será realizado por ela, o que significa, ao que tudo indica, que esta entidade privada será a partir de então detentora de um acervo que vulnera a soberania nacional[54], vez que fragiliza o sistema de segurança vigente.

Segue a íntegra do dispositivo legal:

Art. 13.  O credenciamento para acesso aos Locais Oficiais de Competição durante os Períodos de Competição ou por ocasião dos Eventos, inclusive em relação aos Representantes de Imprensa, será realizado exclusivamente pela FIFA, conforme termos e condições por ela estabelecidas.

No Planejamento Estratégico de Segurança para a Copa do Mundo de 2014, da lavra do Ministério da Justiça – Secretaria Extraordinária de Segurança para Grandes Eventos, no seu item 11.3 – Credenciamento, corrobora o mandamento do artigo acima citado[55]:

O conceito de credenciamento para a Copa do Mundo de 2014 será desenvolvido pelo Comitê Organizador Local (COL), respeitadas as exigências da FIFA, para assegurar a preparação e a execução dos eventos. O credenciamento deve garantir que todos os indivíduos envolvidos na operação sejam corretamente identificados e possuam direito de acesso para exercer as suas funções e cumprir suas atribuições.

Todo policial federal, civil, militar, guarda municipal, agente de fiscalização imbuído de poder de polícia, que esteja designado para os trabalhos junto aos eventos deverá, necessariamente, fornecer seus dados de qualificação ao big brother FIFA.

Esta espécie de informação, por raciocínio comezinho, é sigilosa e deve se restringir à instituição que coordena o agente de segurança. Com tais dados em mãos é possível fazer um mapa preciso, quantitativo e qualitativo, de nossa segurança pública. Tais dados são estratégicos para a segurança da República Federativa do Brasil e a sua divulgação indevida, por lesar e expor a perigo de lesão a soberania nacional, recebe o tratamento especial da Lei 7.170, de 14 de dezembro de 1983 – Lei de Segurança Nacional, que em seu artigo 13 tipifica a conduta de quem expõe dados sigilosos de interesse do Estado:

Art. 13 - Comunicar, entregar ou permitir a comunicação ou a entrega, a governo ou grupo estrangeiro, ou a organização ou grupo de existência ilegal, de dados, documentos ou cópias de documentos, planos, códigos, cifras ou assuntos que, no interesse do Estado brasileiro, são classificados como sigilosos.

Apenas sob a premissa da legislação de exceção e da visão crítica de que, sob as ordens do capital, o Estado se tornou um servo, é possível fazer a leitura de tais dispositivos sem sobressalto.

O Comitê Organizador Local (COL), vinculado ao Comitê Organizador Brasileiro, é pessoa jurídica brasileira de direito privado, constituída na forma de sociedade limitada (Ltda.) e com regramentos previstos nos artigos 1.052 e seguintes do Código Civil. De onde tal sociedade privada tirou a autoridade para alcançar o status e poder de credenciar, desenvolver as regras do credenciamento e manter em bancos de dados todo o cadastro das autoridades de segurança pública envolvidas nos megaeventos, senão na confirmação de que o capital domina os governos? Não há a necessidade de soberania, não há necessidade de resguardo de dados confidenciais e compartilhamento?

Nas premonitórias palavras de Debord (1997, p. 139), “A necessidade de dinheiro é a verdadeira necessidade produzida pela economia política, e a única necessidade que ela produz”.

Ana Carrasco-Conde, corrobora tais suspeitas[56]:

¿Qué poder es este que maneja los hilos? No el de um país, no el de um “primer mundo”, sino el de un grupo, ajeno em princípio a toda ideología, que extiende sus tentáculos allí donde puede tener una influencia que le permita la consecución de sus fines y que se mueve por el principio de la ganancia privada a corto plazo.

3.3 Regime diferenciado de contratações públicas

Foi alardeado que com os Grandes Eventos o Brasil se transformará, com obras públicas de infraestrutura, oportunidades de emprego, propaganda da marca Brasil aos quatro cantos do mundo, tudo graças à economia. Diga-se, a economia tem ditado os últimos cinco debates de candidatos à presidência da República Federativa do Brasil e os números dela são hoje o verdadeiro termômetro de eficiência e boa gestão, esquecendo-se que “a economia transforma o mundo, mas o transforma apenas em mundo da economia” (DEBORD, 2011, p. 30).

Desde que anunciados o cronograma dos chamados megaeventos, e com vistas a assegurar o retorno dos investimentos das empresas que explorarão a economia do país neste período, o Brasil está sob a vigília dos prazos da FIFA e do Comitê Olímpico Internacional, que são entidades privadas, ditando os rumos da política e dos recursos públicos.

Algumas flexibilizações da legislação saltam aos olhos como sintoma deste estado de exceção, trazido pela urgência do capital e corroboram a assertiva de que “a formação da vontade política coincide agora plenamente com a do capital, legitimada por meio dos representantes políticos das populações”. [57]

Mais um exemplo é a Lei 12.462, datada de 04 de agosto de 2011, que institui o RDCP – Regime Diferenciado de Contratações Públicas:

Regime diferenciado de contratações públicas, aplicável exclusivamente às licitações e contratos necessários à realização:

I - dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, constantes da Carteira de Projetos Olímpicos a ser definida pela Autoridade Pública Olímpica (APO); e

II - da Copa das Confederações da Federação Internacional de Futebol Associação - FIFA 2013 e da Copa do Mundo FIFA 2014, definidos pelo Grupo Executivo - GECOPA 2014 do Comitê Gestor instituído para definir, aprovar e supervisionar as ações previstas no Plano Estratégico das Ações do Governo Brasileiro para a realização da Copa do Mundo FIFA 2014 - CGCOPA 2014, restringindo-se, no caso de obras públicas, às constantes da matriz de responsabilidades celebrada entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios;

III - de obras de infraestrutura e de contratação de serviços para os aeroportos das capitais dos Estados da Federação distantes até 350 km (trezentos e cinquenta quilômetros) das cidades sedes dos mundiais referidos nos incisos I e II.

IV - das ações integrantes do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) V - das obras e serviços de engenharia no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS.      

A flexibilização da Lei 8.666, de 21 de junho de 1993, adotada pela novel e excepcional legislação traz desde seu nascedouro questionamentos quanto à sua constitucionalidade. Impulsionada pelo discurso da celeridade e diante da premente necessidade de atender ao calendário da FIFA[58] a lei instituidora de tal regime diferenciado é discutida em duas ações diretas de inconstitucionalidade, a saber: ADIS nº. 4645/DF e nº 4655/DF, ambas distribuída ao Ministro Luiz Fux, aguardam pacientemente seus julgamentos, que provavelmente se darão post festum, por óbvio, ao se constatar que as grandes obras afetadas pelo Regime Diferenciado de Contratações já estão em fase de inauguração por todo o país.

A petição inicial da ADI 4645/DF questiona o chamado “contrabando legislativo”, já que “a Presidência da República, em consórcio com a maioria governista no Congresso Nacional” lançou mão da inclusão do Regime Diferenciado de Contração, por emenda do relator, quando tramitava na Câmara dos Deputados, no bojo da Medida Provisória 527, convertida na Lei 12.462/11, aqui discutida. 

A Medida Provisória 527 nada dizia sobre licitação e contratos públicos. “Dispunha sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios, criação da Secretaria de Aviação Civil, alteração da Lei da ANAC e da INFRAERO, criação de cargos em comissão, bem como contratação de controladores de tráfego aéreo”, conforme denuncia a petição inicial. Gol de mão da FIFA, validado.

Não teria sido a primeira tentativa de inclusão do regime de exceção de contratação para os interesses dos grandes eventos e de seus parceiros (aqui certamente representados pelos consórcios de construtoras) em outras medidas provisórias. A petição inicial da ADI acusa as tentativas frustradas de utilização do mesmo subterfúgio na tramitação das Medidas Provisórias 489, 503, 511, 517 e 521.

O Supremo Tribunal Federal já assentou, no julgamento da medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade - ADI 1050 MC/SC, sob a relatoria do Ministro Celso de Mello que:

O poder de emendar projetos de lei - que se reveste de natureza eminentemente constitucional - qualifica-se como prerrogativa de ordem político-jurídica inerente ao exercício da atividade legislativa. Essa prerrogativa institucional, precisamente por não traduzir corolário do poder de iniciar o processo de formação das leis (RTJ 36/382, 385 - RTJ 37/113 - RDA 102/261), pode ser legitimamente exercida pelos membros do Legislativo, ainda que se cuide de proposições constitucionalmente sujeitas à cláusula de reserva de iniciativa (ADI 865/MA, Rel. Min. CELSO DE MELLO), desde que - respeitadas as limitações estabelecidas na Constituição da República - as emendas parlamentares (a) não importem em aumento da despesa prevista no projeto de lei, (b) guardem afinidade lógica (relação de pertinência) com a proposição original e (c) tratando-se de projetos orçamentários (CF, art. 165, I, II e III), observem as restrições fixadas no art. 166, §§ 3º e 4º da Carta Política. (gripo nosso)

Além do aspecto formal de regular tramitação legislativa da Medida Provisória 527 e sua conversão na Lei nº 12.462/01, a ADIN 4645/DF questiona a inconstitucionalidade dos artigos abaixo enumerados, que insultam os princípios estampados no art. 37 da Constituição[59], sobretudo a moralidade, publicidade e legalidade:

Livre delegação ao executivo do regime jurídico de contratação a ser aplicado, art. 1º e art. 65.

A regra imposta pelo art. 37, inciso XXI, é o da obrigatoriedade da licitação como princípio da administração pública. A ressalva se dá apenas em virtude de lei, em espaço deliberativo, portanto, que pontuará os casos específicos que fujam à regra. A Constituição não permite a entrega de tal discricionariedade ao executivo.

Art. 1º  É instituído o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), aplicável exclusivamente às licitações e contratos necessários à realização:

I - dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, constantes da Carteira de Projetos Olímpicos a ser definida pela Autoridade Pública Olímpica (APO).

Art. 65.  Até que a Autoridade Pública Olímpica defina a Carteira de Projetos Olímpicos, aplica-se, excepcionalmente, o disposto nesta Lei às contratações decorrentes do inciso I do art. 1º desta Lei, desde que sejam imprescindíveis para o cumprimento das obrigações assumidas perante o Comitê Olímpico Internacional e o Comitê Paraolímpico Internacional, e sua necessidade seja fundamentada pelo contratante da obra ou serviço.

Presunção de sigilo do custo das obras, Art. 6º, §3º. Aqui há a quebra do mandamento constitucional do art. 37, que privilegia a publicidade. Sem a transparência e a publicidade na aplicação dos recursos públicos, abre-se a possibilidade para toda a sorte de abusos e desvios.

Dispensa de publicação no diário oficial, Art. 15º, §2º.

Antes de citarmos os artigos da lei de exceção, citamos BOBBIO (2009, p. 100):

Um dos princípios fundamentais do Estado constitucional: o caráter público é a regra, o segredo a exceção, e mesmo assim é uma exceção que não deve fazer a regra valer menos, já que o segredo é justificável apenas se limitado no tempo, não diferindo neste aspecto de todas as medidas de exceção.

Eis amostras do estado de exceção, em função do capital:

Art. 6º Observado o disposto no § 3º, o orçamento previamente estimado para a contratação será tornado público apenas e imediatamente após o encerramento da licitação, sem prejuízo da divulgação do detalhamento dos quantitativos e das demais informações necessárias para a elaboração das propostas.

§ 3º Se não constar do instrumento convocatório, a informação referida no caput deste artigo possuirá caráter sigiloso e será disponibilizada estrita e permanentemente aos órgãos de controle externo e interno.

Art. 15. Será dada ampla publicidade aos procedimentos licitatórios e de pré-qualificação disciplinados por esta Lei, ressalvadas as hipóteses de informações cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado, devendo ser adotados os seguintes prazos mínimos para apresentação de propostas, contados a partir da data de publicação do instrumento convocatório:

§ 1º A publicidade a que se refere o caput deste artigo, sem prejuízo da faculdade de divulgação direta aos fornecedores, cadastrados ou não, será realizada mediante:

I - publicação de extrato do edital no Diário Oficial da União, do Estado, do Distrito Federal ou do Município, ou, no caso de consórcio público, do ente de maior nível entre eles, sem prejuízo da possibilidade de publicação de extrato em jornal diário de grande circulação; e

§ 2º No caso de licitações cujo valor não ultrapasse R$ 150.000,00 (cento e cinquenta mil reais) para obras ou R$ 80.000,00 (oitenta mil reais) para bens e serviços, inclusive de engenharia, é dispensada a publicação prevista no inciso I do § 1º deste artigo.

Em semelhante linha, Roberto Gurgel, Procurador Geral da República, também impulsionou a ADI nº 4655, provocado pelo Grupo de Trabalho Copa do Mundo FIFA 2014 da 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal[60], denunciando as afrontas ao processo legislativo constitucional e a princípios constitucionais. Diversos artigos da lei de exceção são combatidos nesta ação direta de inconstitucionalidade e saltam aos olhos as extravagâncias fora dos limites permitidos pela “normalidade democrática”.

Em pesquisa sobre o tema, encontrou-se o vídeo intitulado “Megaeventos – Grandes Obras e seu Impacto Urbano Social”, onde a crítica à falta de transparência no processo de construção dos estádios na Copa do Mundo da África do Sul é lembrada e comparada à atual situação brasileira[61]:

Outra lição que o Brasil pode aprender é que deve haver o máximo de transparência nos acordos com a FIFA. Demorou cinco anos para descobrirmos isso. Não deixe seu amor pelo futebol, sua paixão pelo jogo, ofuscar o debate racional que deve ocorrer sobre como o dinheiro é gasto, como a democracia funciona, e como os cidadãos deveriam ser os responsáveis por decidir sobre as medidas a serem tomadas.

3.4 Cerceamento do direito de greve

Fazendo coro à legislação de exceção a ser implementada quando da passagem do show business da FIFA e seus patrocinadores pelo país do futebol, tramita no Senado Federal o Projeto de Lei 728/2011 que, elasticamente:

Define crimes e infrações administrativas com vistas a incrementar a segurança da Copa das Confederações FIFA de 2013 e da Copa do Mundo de Futebol de 2014, além de prever o incidente de celeridade processual e medidas cautelares específicas, bem como disciplinar o direito de greve no período que antecede e durante a realização dos eventos, entre outras providências.

É preciso perceber que a passagem do capital internacional e de seus investidores pelo país não permite qualquer incômodo a suas aplicações. A mera possibilidade de manifestações da sociedade organizada por meio de sindicatos e associações de servidores/empregados tenta ser abafada por uma legislação casuística, impulsionada nos corredores do Congresso Nacional pela vontade do Governo, manietado pelos interesses de lucros dos agentes capitalistas.

Criminaliza-se o direito constitucional de greve, num atentado de olímpica força contra a democracia.

Norberto Bobbio já registrou tal fenômeno antidemocrático:

De qualquer modo, uma coisa é certa: os dois grandes blocos de poder descendente e hierárquico das sociedades complexas – a grande empresa e a administração pública – não foram até agora sequer tocados pelo processo de democratização. E enquanto estes dois blocos resistem à agressão das forças que pressionam a partir de baixo, a transformação democrática da sociedade não pode ser dada por completa. Não podemos sequer dizer que esta transformação é realmente possível.

O direito de greve, previsto como direito fundamental do individuo, está expresso no artigo 9º da Constituição Federal, da seguinte forma:

Art. 9º É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.

§ 1º - A lei definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.

§ 2º - Os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei.

Ao discorrer sobre o direito de greve, José Afonso da Silva registra:

Não é um simples direito fundamental dos trabalhadores, mas um direito fundamental de natureza instrumental e desse modo se insere no conceito de garantia constitucional, porque funciona como meio posto pela Constituição à disposição dos trabalhadores, não como um bem auferível em si, mas como um recurso de última instância para a concretização de seus direitos e interesses. [62]

É também esfera elementar de participação dos indivíduos, como coletividade com coincidência de anseios na formação social. Criminalizar tal direito/conduta é inviabilizar mais um canal de legitimidade da construção comunitária, é impedir que o sujeito seja agente de sua história[63].

Justamente quando mais se necessita da participação popular, sobretudo através da sociedade organizada, para pressionar o rumo da governança no sentido das finalidades preconizadas pela Carta de Princípios pactuada em 1988, deixa-se à margem da lei qualquer iniciativa que possa representar protesto contra a violência da voracidade neoliberal.

A greve, ultima ratio de trabalhadores hipossuficientes frente à burocracia autoritária e empresas privadas, direito social historicamente conquistado, ameaça ser atingido de frente caso o Projeto de Lei 728/2011 seja convertido em mais uma lei de exceção.  

O direito de greve não pode ser inviabilizado por limites legais abusivos.

Segundo a doutrina de José Afonso da Silva (1997, p. 294):

A lei não pode restringir o direito mesmo, nem quanto à oportunidade de exercê-lo nem sobre os interesses que, por meio dele, devam ser defendidos. Tais decisões competem aos trabalhadores, e só a eles. Diz-se que a melhor regulamentação do direito de greve é a que não existe. Lei que venha a existir não deverá ir ao sentido de sua limitação, mas de sua proteção e garantia.

Em seus estudos e, acredita-se, sem imaginar que a legislação recrudesceria para a proteção do capital e seus investimentos, José Afonso da Silva já alertava que a nova ordem constitucional instaurada não limitou o direito de greve quanto à natureza da atividade ou serviços essenciais, como fazia a velha ordem. Tão somente cabe à lei “definir quais serviços e atividades sejam essenciais e dispor sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.” [64]

A circunstância elucidada por José Afonso da Silva evidencia que a legislação ordinária não pode reduzir os limites de fruição do direito a ponto de estancar a viabilidade de seu exercício.

Também conhecido como o AI-5 da Copa, o Projeto de Lei 728/11 traz em seu artigo 42 a nomenclatura “serviços ou atividades de especial interesse social”, a partir da qual relaciona em sua abrangência uma série de categorias que terão o direito de greve seriamente diminuído no período que, por toda argumentação já trazida, podemos chamar de ditadura transitória da FIFA.

A relação trazida pelo artigo 42 citado é de larga abrangência e engessa qualquer reivindicação trabalhista por meio do instrumento da greve dos profissionais que operam no(a): tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis; assistência médica e hospitalar; distribuição e comercialização de medicamentos e alimentos; operação, manutenção e vigilância de atividades de transporte coletivo; coleta, captação e tratamento de esgoto e lixo; telecomunicações; controle de tráfego aéreo; operação, manutenção e vigilância de portos e aeroportos; serviços bancários; hotelaria, hospitalidade e serviços similares; construção civil das obras destinadas aos eventos ou de mobilidade urbana; prestação judicial e de segurança pública.

Sobre este tópico, o atual art. 10 da Lei 7.783, de 28 de junho de 1989, terá considerável alteração com o novel art. 42 do Projeto de Lei 728/2011 acima citado. A disciplina dos serviços considerados de necessidade inadiáveis à comunidade teve seu norte voltado à necessidade de manutenção do espetáculo da FIFA e das ocorrências que possam circundar os eventos. Foram acrescentados casuisticamente nesta categoria os profissionais de hotelaria, hospitalidade e serviços similares, também da construção civil, “no que se refere” (sic) a obras destinadas aos eventos de que trata o projeto ou de mobilidade urbana.

Caso haja movimento grevista dos profissionais dos serviços considerados de necessidade inadiáveis para a FIFA, além da comunicação a entidade patronal com 15 dias de antecedência, a categoria de trabalhadores terá que garantir o funcionamento de 70% da força de trabalho, “garantindo o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade e da organização dos eventos”, nos termos dos artigos 43 e 44 do afrontoso Projeto de Lei.

A palavra “comunidade” falseia os interesses do conglomerado de empresas que exploraram o dinheiro que circundará os megaeventos, em detrimento de pessoas desfavorecidas e no mais das vezes vilipendiadas na relação de trabalho.

Momento de grandes lucros para as empresas (multinacionais, em sua maioria) que administram os eventos, momento de imposição do silêncio para empregados (brasileiros, em sua maioria) que fazem os eventos acontecerem. A contenção da voz do indivíduo empregado sufoca a voz que poderia gritar contra os abusos, garante a tranquilidade do capital, dilapidando direitos fundamentais.

Gol de mão da FIFA, em vias de ser validado.

Aos servidores públicos, com tratamento do direito de greve complementado pela norma do art. 37, inciso VII (“o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica”), o Supremo Tribunal Federal despendeu nos Mandados de Injunção nºs 708 e 712 tratamento para garantia do direito de greve, ainda que sem a lei reguladora exigida pela Constituição e inexistente pela morosidade parlamentar. Na ausência de referida lei, atende-se ao direito de greve com a aplicação da Lei 7.783/89 e a possibilidade de que o juiz, à luz do caso concreto, adote regime mais severo, “sem desconsiderar, entretanto, a garantia do exercício do direito.” [65]

Nos termos da decisão da Suprema Corte, nos autos da Reclamação nº 15.511 MC/MG, de relatoria do Ministro Teori Zavascki:

Considerada a evolução jurisprudencial do tema perante o STF, em sede do mandado de injunção, não se pode atribuir amplamente ao legislador a última palavra acerca da concessão, ou não, do direito de greve dos servidores públicos civis, sob pena de se esvaziar direito fundamental positivado. (...) O legislador poderia adotar um modelo mais ou menos rígido, mais ou menos restritivo do direito de greve no âmbito do serviço público, mas não poderia deixar de reconhecer direito previamente definido pelo texto da Constituição. (...) Ao julgar o MI 708, esta Corte decidiu que, em atenção ao princípio da continuidade dos serviços públicos, o legislador pode adotar regimes mais severos para o exercício do direito, a depender da essencialidade do serviço, mas jamais o poder discricionário quanto à edição, ou não, de lei que garanta o exercício do direito de greve. 

Depreende-se, pois, a evolução histórica do Supremo Tribunal Federal convergindo para o resguardo do direito de greve, em que pese o assédio dos detentores do poder. Data de 02/04/13 a decisão, por unanimidade, de concessão da liminar na reclamação citada.

Em vista da reconhecida inércia do legislador em regular o direito de greve dos servidores, o STF amadureceu sua postura em defesa do trabalhador estatutário, chancelando, ainda que com parâmetros, a legalidade dos movimentos grevistas. Isto se deu pela desídia do parlamento que perdura há 25 anos.

Após um quarto de século inerte quanto à regulação do direito de greve do servidor público, o Congresso Nacional ameaça, para as categorias eleitas pela FIFA como prioritárias para o funcionamento de seus entretenimentos (sobretudo os incisos III, VI, VIII, IX e XIII do art. 42 do projeto de lei), inviabilizar o gozo da prerrogativa social.

A regulação dada pelo Projeto de Lei 728/2011, ainda que sob o disfarce das “necessidades inadiáveis da comunidade”, inviabiliza o direito de greve, em prol dos interesses momentâneos das entidades privadas envolvidas, sendo, portanto, inconstitucionais e demonstrando o caráter de excepcionalidade da ordem jurídica material já exposta ao longo desta monografia.

Ademais, o embuste de rotular o direito de greve como mera “extorsão salarial junto ao governo”, como sintomaticamente declarou ao tempo da elaboração deste trabalho o assessor especial do Ministro da Justiça, Marcelo Veiga, desconsidera a clássica diversidade do direito atacado[66]:

Quer dizer, os trabalhadores podem decretar greves reivindicativas, objetivando a melhoria das condições de trabalho, ou greves de solidariedade, em apoio a outras categorias ou grupos reprimidos, ou greves políticas, com o fim de conseguir as transformações econômico-sociais que a sociedade requeira, ou greves de protestos.

Em exemplo recente, o colunista José Roberto Ferro chama a atenção para a última e maior greve da história da Polícia Federal, em artigo intitulado: “Greve por mais eficiência no setor público” [67]. Nesta greve, ocorrida em 2012, junto a outras reivindicações, estava "a reestruturação de processos de trabalho ineficientes, a exemplo da maior parte das investigações, com o aproveitamento pleno das competências dentro do órgão, quebrando a centralização burocrática”. 

Como já alertara Antonio Giménez Merino, na atual ordem capitalista mundial os direitos fundamentais “estão sendo feridos de morte por novas restri­ções à liberdade de informação, associação, reunião e ma­nifestação das pessoas, sobretudo daquelas que se opõem à barbárie neoliberal.” [68]

A greve, justamente por ser um instrumento de pressão por mudanças e meio legítimo de sublevação em prol dos interesses de uma parcela da sociedade, só possui razão de ser quando há a possibilidade real de confronto com os interesses dominantes. Sem o incômodo, ou a partir do momento em que a manifestação de reivindicação passa a ser canalizada de forma a não trazer prejuízo ou percalço no percurso da maioria manietada, perde seu sentido, por esvaziar toda a sua possibilidade de eficácia. Em outras palavras, limitar até a impossibilidade o direito de greve equivale a marginalizar tal direito, deixando à ilegalidade[69] o uso da previsão constitucional. Com a manobra aqui denunciada, sob as vestes da legalidade, da necessidade pública, da celeridade e dos proveitos econômicos prometidos a toda a nação, o estado de exceção da ordem normativa se faz presente, e o capital soberano se mostra sem pudor, ditando os rumos. Novamente, vale lembrar Antonio Giménez Merino:

A realidade da nova regulação econômica mundializada – dominada por uma poliarquia e articulada mediante as regras da governança – se impôs definitiva­mente aos velhos mecanismos estatais de controle jurídico que limitavam sua atuação.

Adotando a mesma linha repressiva dos governos da Europa e dos EUA, após os movimentos populares conhecidos como Movimento 15-M e Occupy Wall Street, sob o discurso da precaução[70], o Estado, como disserta Merino (2012):

[...] fazendo uso de sua função primordial de manter a ordem, responde à contestação social – à ação organizativa, mas principalmente à propositiva – mediante a estratégia do medo: criminalizando as organizações so­ciais críticas e as novas formas de resistência civil pacífica, isolando os movimentos sociais mediante a associação sim­bólica dos mesmos com a violência e o caos, ressaltando as condições para uma regulação mais restritiva dos direitos políticos básicos que não sejam os de escolher periodicamen­te representantes da vontade geral (reunião, manifestação, associação, liberdade de comunicação etc.).

 A adoção desta postura despolitiza a sociedade, no momento em que impede o exercício de um legí­timo instrumento de participação política, qual sejam a greve e seus corolários movimentos de pressão política.

Naredo (apud MERINO, 2012) arremata:

Si, como ha venido siendo habitual, el Gobierno decide y actúa sin tener en cuenta a la ciudadanía, evita el debate en los propios órganos delibera­tivos del Estado a través de oscuras componendas extraparlamentarias u otros ardides y no incentiva, sino que castiga, las iniciativas ciudadanas de participación, control y legislación, ese Gobierno no debe llamarse democrático, sino despótico o autocrático, por mucho que fuera votado en su día por una minoría suficiente del censo electoral.

Dentre os vários argumentos da persuasão exitosa no presente estado de exceção, está o argumento utilitarista[71] do crescimento econômico advindo de tais espetáculos.

Michael Sandel demonstra que a ideia de que “ao determinar as leis ou diretrizes a serem seguidas, um governo deve fazer o possível para maximizar a felicidade da comunidade em geral” se torna falaciosa, já que “os direitos e a dignidade humana têm uma base moral que transcende a noção de utilidade” [72].

O mesmo autor, crítico perspicaz do utilitarismo, traz à reflexão o conto The Ones Who Walked Away from Omelas, da autora Ursula K. Le Guin.

O conto fantástico supõe a realidade de uma cidade bela e feliz, onde todos os moradores vivem contentes e com sorrisos estampados nos rostos, tudo funciona. A exceção se encontra em um porão mal iluminado, onde está uma criança malnutrida e abandonada. Embora todos saibam da existência da criança que sofre continuamente, sabem também que a felicidade e paz de todos e de cada um “dependem inteiramente do sofrimento abominável da criança”.

Que coincidência entre a personagem ficcional e a realidade dos que sofrem para que o dinheiro seja feliz nos Grande$ Evento$?

Neste ponto e partindo desta reflexão, é forçoso tratar de outra ramificação do estado de exceção instaurado para regozijo da FIFA e seus patrocinadores, que é a política de desinfecção das cidades sedes, também conhecida como “higienização urbana” ou ainda “faxina social”.

3.5 Higienização urbana

É cediço que a Constituição Federal, em seu artigo art. 6º, estampa como direito fundamental o direito à moradia[73], pressuposto elementar da aferição do respeito à dignidade da pessoa humana. Quando assim o faz em seu título sobre os Direitos Sociais, faz em consonância com o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, que em seu artigo 22 determina[74]:

ARTIGO 22

Direito de Circulação e de Residência

1. Toda pessoa que se ache legalmente no território de um Estado tem direito de circular nele e de nele residir conformidade com as disposições legais.

Direito reconhecido e conquistado nos países que buscam ainda que idealmente uma ordem jurídica protetora do indivíduo, o direito à moradia não pode ser dissociado do direito à liberdade.

Jaime Melanias dos Santos, em pesquisa histórica sobre o conceito de moradia, em dissertação de mestrado, conclui que:

O direito à moradia, antes mesmo de ser reconhecido como direito social em razão da Emenda Constitucional nº 26, já era previsto como consequência da proteção de outros direitos fundamentais, dentre eles o próprio direito à vida e à propriedade, ou o direito à inviolabilidade do domicílio, ou à inviolabilidade da vida privada. De igual modo, o direito à moradia emergia do princípio da dignidade da pessoa humana. A moradia, então, ainda que não expressamente reconhecida como direito distinto, era protegida em nível constitucional como resultado da proteção de outros direitos e como elemento necessário à dignidade do indivíduo.

A moradia está ligada com a escolha do indivíduo de, em determinado lugar, pousar sua vida e ali compartilhar com a vizinhança e com o espaço físico contextual sua existência. Quando se elege a moradia, ainda que carente de rebuscamentos ou luxo, a riqueza que um ser humano ali planta é de valor afetivo e dotado de valores que defluem de sua dignidade.

Assim que o Pacto de São José da Costa Rica defende, em diferentes artigos, o direito à moradia, à escolha da moradia e a realização de vida que o indivíduo tem a partir desta escolha:

Artigo 11 – Proteção da honra e da dignidade

1. Toda pessoa tem direito ao respeito da sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade.

2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação.

3. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas.

Artigo 21 – Direito à propriedade privada

1. Toda pessoa tem direito ao uso e gozo de seus bens. A lei pode subordinar esse uso e gozo ao interesse social.

2. Nenhuma pessoa pode ser privada de seus bens, salvo mediante o pagamento de indenização justa, por motivo de utilidade pública ou de interesse social e nos casos e na forma estabelecidos pela lei.

3. Tanto a usura, como qualquer outra forma de exploração do homem pelo homem, devem ser reprimidas pela lei.

Artigo 22 – Direito de circulação e de residência

1. Toda pessoa que se encontre legalmente no território de um Estado tem o direito de nele livremente circular e de nele residir, em conformidade com as disposições legais.

3. O exercício dos direitos supracitados não pode ser restringido, senão em virtude de lei, na medida indispensável, em uma sociedade democrática, para prevenir infrações penais ou para proteger a segurança nacional, a segurança ou a ordem públicas, a moral ou a saúde públicas, ou os direitos e liberdades das demais pessoas. (...)

O uso regular do espaço urbano ou rural para ali assentar sua residência recebe, por meio do reconhecimento da usucapião (art. 183 da CF), a afirmação de sua importância na vida do indivíduo. Em defesa da dignidade do sujeito e de sua família, formaliza-se a propriedade daquele que ininterruptamente, pelo prazo legal e nas condições estabelecidas, reside em determinado local e ali faz sua moradia[75].

Os dispositivos citados deveriam ser suficientes para, com a coerência que deve nortear o ordenamento jurídico, afastar qualquer possibilidade de remoção urbana arbitrária ou higienização social em prol da limpeza exigida pela FIFA e seus parceiros comerciais, quando da realização dos grandes eventos.

Defender os princípios constitucionais que deveriam estar clarividentes como normas ínsitas a uma sociedade democrática e que se pretende justa, tem-se demonstrado um trabalho árduo e infrutífero.

De acordo com o Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas, entre 150 mil e 170 mil pessoas sofrem o risco de remoção forçada de suas residências[76], para darem lugar às obras dos megaeventos.

Não obstante a mobilização das associações de moradores atingidos pela chamada higienização social, o documentário intitulado “Megaeventos – Grandes Obras e Seu Impacto Urbano Social” [77] denuncia que tais deslocamentos da população pobre já se encontram em plena realização.

O urbanismo capitalista se distancia do humanismo.

O relato pormenorizado desta realidade encontra-se registrado no atual dossiê “Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos no Rio de Janeiro” [78], produzido pelo combativo Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro, aqui já mencionado.

Não é noutro sentido a denúncia de Debord de que “o urbanismo é a tomada de posse do ambiente natural e humano pelo capitalismo que, ao desenvolver sua lógica de dominação absoluta, pode e deve agora refazer a totalidade do espaço como seu próprio cenário”. [79]

Vê-se que esta reconstrução não aceita a presença dos despossuídos que, com a valorização de espaços residenciais pela demanda do capital, são literalmente expropriados, com auxílio da burocracia totalitária, e transferidos para áreas distantes, sem infraestrutura razoável, completamente alienados de sua história de vida, distantes de seu meio social, alijados, enfim, de sua dignidade[80].

Neste sentido, a higienização social empreendida pelos governos das cidades sedes, em contraste com os princípios constitucionais e sem a leitura devida das leis de planejamento urbano com a consectária dignidade da pessoa humana, acrescenta “provas e exemplos mais pesados e mais convincentes” à tese de que a sociedade do espetáculo vê “a Terra como mercado mundial”. (DEBORD, 1997, p. 29)

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Sobre o autor
Johnny Wilson Batista Guimarães

Mestre em Processo Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, bacharel em Direito pela mesma Faculdade, especialista em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera, com extensão universitária em formação para o magistério superior. Habilitado pela OAB/MG. Escrivão de Polícia Federal, classe especial, com ingresso na carreira em 1997, atualmente lotado e em exercício na Superintendência Regional da Polícia Federal em Belo Horizonte/MG na Delegacia de Prevenção e Repressão a Crimes Fazendários.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUIMARÃES, Johnny Wilson Batista. Megaeventos e legislação de exceção.: Poderes como servos do capital e legado de ataque aos direitos fundamentais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3659, 8 jul. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24900. Acesso em: 22 nov. 2024.

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