1 – Introdução
Considera-se indiciamento o ato pelo qual o Delegado de Polícia manifesta sua convicção jurídica motivada ao imputar a uma pessoa a condição de provável autor ou partícipe da infração penal investigada no inquérito policial. Essa é a acepção do indiciamento sob o enfoque material, é o indiciamento propriamente dito (“indiciamento material”).
Até o momento do indiciamento, o sujeito é tratado como “investigado”, ou seja, mero suspeito ou averiguado ou até apenas como parte envolvida. Formalizado o ato, o indivíduo passa a ser designado “indiciado” e, na concepção técnico-jurídica justificada da Autoridade Policial presidente do inquérito, figura como “provável autor” do fato objeto da investigação criminal. Trata-se, pois, da transposição de um juízo de possibilidade (mera suspeita) para outro de probabilidade (fundada suspeita).
Com a entrada em vigor da Lei Federal nº 12.830, de 20 de junho de 2013, que dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo Delegado de Polícia, consolidou-se a necessidade de deliberação motivada para o indiciamento, consoante se depreende da literalidade do parágrafo 6º, de seu artigo 2º:
O indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias (grifamos).
No âmbito da Polícia Civil Paulista, o art. 5º, da Portaria DGP nº 18 de 1998, já exigia que o indiciamento fosse determinado mediante despacho fundamentado da Autoridade Policial.[1] Da mesma forma, na órbita da Polícia Federal, mesmo antes da mencionada lei, já existia obrigatoriedade de motivação para o ato de indiciamento, naquele órgão então denominado “indiciação”, por força da Instrução Normativa nº 11/2001.[2]
Destaca-se que, nos casos de prisão em flagrante, o auto prisional substitui e equivale ao despacho de indiciamento, razão pela qual a “fundada suspeita” imposta pela lei processual para decretar a custódia provisória em flagrância (CPP, art. 304, § 1º) demanda também regular deliberação motivada, e implica da mesma maneira o formal indiciamento do sujeito, encerrando um juízo de probabilidade calcado no convencimento pela análise técnico-jurídica do fato, desenvolvido nos mesmos moldes e com idêntico raciocínio ao do indiciamento exarado no curso de procedimento investigatório iniciado via portaria, conquanto realizado em sede de cognição sumaríssima, pelo qual o indivíduo preso e autuado em flagrante delito passa a figurar como o “provável autor” da infração penal apurada.
Destarte, sob o prisma formal, além do auto prisional ou do despacho motivado que o determinam, o indiciamento compreende três peças:
1) o auto de qualificação e interrogatório do indivíduo;
2) as informações acerca de sua vida pregressa e;
3) o boletim de identificação (ou documento equivalente), o qual pode ser acompanhado da identificação criminal pelo processo datiloscópico caso o indiciado, ainda que apresente documento de identificação civil, esteja nas exceções previstas na Lei Federal nº 12.037/2009, adiante comentadas.
Essas três peças integram o chamado “formal indiciamento”, imediatamente oriundo do indiciamento material, o qual, como visto, consiste na exteriorização da convicção jurídica fundamentada do Delegado de Polícia ao reputar determinada pessoa como provável autor ou partícipe do fato delituoso investigado. Em suma, o indiciamento formal é a documentação resultante do indiciamento material, representado pela manifestação motivada da Autoridade Policial (via despacho fundamentado ou auto prisional).
O fundamento legal das citadas peças encontra-se nos incisos V (qualificação e interrogatório), IX (vida pregressa) e VIII (identificação), do artigo 6º do Código de Processo Penal (Decreto-lei nº 3.689/1941).
Na deliberação pelo indiciamento, seja no auto de prisão em flagrante delito seja mediante despacho no curso do inquérito policial, o Delegado de Polícia aponta os elementos fáticos e jurídicos motivadores de seu convencimento quanto à materialidade e autoria delitivas, assim como no que tange à classificação jurídica do fato apurado.[3]
O mencionado dispositivo legal (Lei Federal nº 12.830/2013, art. 2º, § 6º) sedimenta expressamente o indiciamento (a manifestação do juízo de probabilidade decorrente da convicção jurídica motivada da Autoridade Policial) como ato privativo do Delegado de Polícia, razão pela qual não pode ser requisitado por Autoridade Judiciária ou por Promotor de Justiça.[4]
Da mesma maneira que o Delegado de Polícia deve determinar que se proceda ao formal indiciamento quando entender que o sujeito investigado é o provável autor do fato delituoso perscrutado, deixará de deliberar pelo indiciamento quando vislumbrar circunstâncias que possam afastar a responsabilidade penal do suspeito, como a presença e o reconhecimento provisório de causas excludentes de ilicitude ou mesmo de culpabilidade, consignando tais situações por meio de manifestação fundamentada em histórico de boletim de ocorrência circunstanciado (sobretudo em se tratando de possível estado flagrancial), no curso do inquérito policial via despacho, ou ainda no corpo do relatório final do procedimento investigatório criminal, sempre adotando as demais providências legais que o caso prático reclamar.[5] A deliberação e a convicção jurídica da Autoridade Policial, conquanto não vinculem a Autoridade Judiciária tampouco o órgão acusatório, servirão de primordial diretriz para o prosseguimento (ou não) ou para o deslinde de eventual ação penal.
Tais juízos decorrentes da análise técnico-jurídica do fato investigado ilustram a necessária e inerente independência funcional do Delegado de Polícia, identificada na aplicação do princípio da motivação pelo sistema da liberdade na apreciação das provas, consentâneo à “livre convicção motivada” (ou “persuasão racional”), pela qual há independência na apreciação legal dos elementos probatórios pelos órgãos públicos julgadores, sem escala de valores entre as provas coligidas, desde que a decisão seja devidamente fundamentada. [6]
A base do referido sistema reside no artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal, e no artigo 155, do Código de Processo Penal, no tocante às Autoridades Judiciárias, também aplicável às Autoridades Policiais, assentando o aludido princípio da motivação e a indispensável independência funcional nos atos de polícia judiciária.
2 - Momento do indiciamento
Como anotado, o indiciamento pode ocorrer tanto no curso do inquérito policial inaugurado via portaria quanto no momento da deliberação do Delegado de Polícia pela prisão em flagrante delito, ocasião em que o respectivo auto prisional ensejará o formal indiciamento.
Desse modo, na hipótese de prisão flagrancial, o instante do indiciamento (e a lavratura dos atos formais que o integram) coincide com a própria elaboração do respectivo auto prisional, o qual também desencadeia a instauração de inquérito policial, servindo como peça inaugural do procedimento investigatório criminal.[7]
Já o indiciamento durante o trâmite do inquérito policial, concretizado mediante despacho fundamentado, deverá ocorrer quando e se a Autoridade Policial vislumbrar que os elementos amealhados são suficientes para apontar a autoria da infração penal perscrutada à determinado sujeito investigado. Por essa razão, espera-se que o indiciamento, nesses casos, somente seja levado a efeito após a obtenção de lastro probatório mínimo que, consoante privativo juízo técnico-jurídico do Delegado de Polícia presidente da investigação criminal, permita conferir a condição de provável autor ou partícipe ao indivíduo, o qual deixa de ser “mero suspeito” na visão da Autoridade Policial.
Por tal motivo, não é incomum na prática, sendo inclusive salutar para o bom rumo da persecução penal extrajudicial a depender da dinâmica com que os elementos probatórios sejam obtidos, que o sujeito investigado, antes do indiciamento, seja ouvido em declarações, ainda enquanto figurar como “parte” ou “mero suspeito”, oportunidade em que poderá oferecer argumentos defensivos e versão que lhe seja favorável e que implique na realização de diligências investigatórias para cabal e justa apuração dos fatos e revelação da verdade.[8]
Nesse sentido, Aury Lopes Junior e Roberta Coelho Klein, ao comentarem o momento do indiciamento após o advento da Lei Federal nº 12.830/2013, sustentam que o ideal é que o investigado seja previamente ouvido para só então ser decidido pelo indiciamento ou não, devendo a Autoridade Policial expor claramente caso delibere pelo indiciamento, permitindo o exercício do direito de defesa antes da conclusão do procedimento investigatório.[9]
Após o encerramento do inquérito policial via relatório final e remessa ao Poder Judiciário para apreciação, não há mais que se falar em indiciamento. Ou os autos são arquivados mediante requerimento do titular da ação penal e homologação da Autoridade Judiciária, ou há oferecimento da peça acusatória ou, no máximo, requisição de novas diligências legais imprescindíveis para tanto (CPP, art.16). É inadmissível por lei o retorno do feito requisitando unicamente o indiciamento. Conforme já reportado e de acordo com amplo entendimento doutrinário e jurisprudencial expressamente sedimentado no artigo 2º, § 6º, da Lei Federal nº 12.830/2013, o indiciamento consubstancia ato privativo do Delegado de Polícia presidente da investigação criminal, pelo qual a Autoridade Policial exara sua livre convicção jurídica motivada.
É de bom alvitre repisar que referido posicionamento encontra-se pacificado nos Tribunais Superiores, inclusive com didática decisão do Egrégio Supremo Tribunal Federal proferida após o advento da Lei Federal nº 12.830/2013, abaixo transcrita:[10]
HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. CRIME CONTRA ORDEM TRIBUTÁRIA. REQUISIÇÃO DE INDICIAMENTO PELO MAGISTRADO APÓS O RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. MEDIDA INCOMPATÍVEL COM O SISTEMA ACUSATÓRIO IMPOSTO PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988. INTELIGÊNCIA DA LEI 12.830/2013. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CARACTERIZADO. SUPERAÇÃO DO ÓBICE CONSTANTE NA SÚMULA 691. ORDEM CONCEDIDA.
1. Sendo o ato de indiciamento de atribuição exclusiva da Autoridade Policial, não existe fundamento jurídico que autorize o Magistrado, após receber a denúncia, requisitar ao Delegado de Polícia o indiciamento de determinada pessoa. A rigor, requisição dessa natureza é incompatível com o sistema acusatório, que impõe a separação orgânica das funções concernentes à persecução penal, de modo a impedir que o Juiz adote qualquer postura inerente à função investigatória. Doutrina. Lei 12.830/2013.
2. Ordem concedida (grifamos).
3 - Consequências do indiciamento
Em síntese, podem ser apontadas como consequências jurídicas do indiciamento:
1ª) a alteração da situação jurídica formal na investigação, de investigado (mero suspeito) para indiciado (provável autor);
2ª) um maior grau de sujeição do indiciado aos atos legais e medidas cautelares afetos à polícia judiciária;
3ª) a concentração dos elementos informativos acerca da autoria delitiva na pessoa do então indiciado, como principal referência no prosseguimento da persecução criminal;
4ª) os reflexos da ampla defesa e do contraditório na investigação criminal, tendo em vista que, por meio do indiciamento, há expressa ciência do conjunto probatório coligido e será uma oportunidade para o indiciado ofertar sua versão (autodefesa), constituir advogado (defesa técnica), requerer diligências ou mesmo intentar medidas judiciais.
4 - Qualificação e interrogatório
A qualificação compreende a obtenção dos dados pessoais do sujeito: seu nome completo, filiação, naturalidade e data de nascimento, bem como endereço domiciliar, e é acompanhada de seu interrogatório, vale dizer, da oitiva do indiciado, observando-se, na etapa policial, o regramento da fase judicial do Código de Processo Penal, dentro do possível.
Conquanto possam estar contidos no mesmo documento (“auto de qualificação e interrogatório”), é usual, sobretudo quando da lavratura do auto de prisão em flagrante delito, que o interrogatório e a qualificação sejam formalizados em peças autônomas, sendo admissível também que à qualificação venham agregadas as informações sobre a vida pregressa e o interrogatório do indiciado, formalizando-se um “auto de qualificação, interrogatório e vida pregressa”.
Como já antecipado, embora o Código de Processo Penal mencione como diligência a oitiva do “indiciado” (art.6º, inciso V), nada impede que, de acordo com a marcha das apurações, o sujeito investigado seja primeiro ouvido em declarações, figurando provisoriamente como “parte”, oportunidade em que poderá expor sua versão dos fatos e eventuais argumentos de defesa, e assim corroborar com a devida e justa elucidação do episódio perscrutado. Referida providência se coaduna aos princípios constitucionais basilares do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório e da presunção de inocência.
A formalização do interrogatório é disciplinada no Capítulo III do Título VII do Código de Processo Penal (Da Prova), compreendido pelos artigos 185 a 196, dispositivos que devem ser observados, no que for aplicável e conforme já mencionado, à oitiva do indiciado no inquérito policial, por expresso comando do inciso V, do artigo 6º do mesmo diploma adjetivo criminal.
Enfatiza-se que, no tocante ao indiciado, sua inquirição (interrogatório) é formalizada após deliberação pelo formal indiciamento, seja em sede de prisão em flagrante delito, seja em virtude de despacho fundamentado do Delegado de Polícia no transcorrer do inquérito policial.
De fato, em sentido amplo, o interrogatório judicial é dividido em duas partes: a primeira sobre a pessoa do acusado e a segunda sobre os fatos (CPP, art.187, caput).
Assim, a primeira parte abrange também a identificação, mediante a qual é confirmada a qualificação para a individualização do réu (dados pessoais como nome, filiação, data de nascimento, naturalidade e endereço) e o pregressamento do sujeito (meio de vida ou profissão, oportunidades sociais, vida pregressa criminal, dados familiares etc.), atos estes que na fase policial são materializados nas peças que compõem o formal indiciamento: qualificação (CPP, art.6º, V), boletim de identificação (CPP, art.6º, VIII) e informações sobre a vida pregressa (CPP, art.6º, IX), embora nada impeça que todos os dados sejam condensados num mesmo documento conforme já ponderado.
Já na segunda parte, que versa sobre os fatos propriamente ditos, essência do interrogatório, primeiro é importante lembrar que o imputado é cientificado do direito de permanecer calado (CF, art.5º, LXIII e CPP, art.186, caput). Desejando se manifestar, o acusado será perguntado sobre os pontos principais do evento criminoso: a veracidade ou não da acusação, eventuais suspeitos ou álibis em caso de negativa de autoria, seu conhecimento acerca da vítima, das testemunhas e dos instrumentos da infração e quaisquer outras questões que possam ser relevantes de acordo com as circunstâncias do caso concreto apurado, além das alegações que possam ser prestadas em defesa do réu (CPP, art.187, § 2º, incisos I a VIII).
No que tange ao interrogatório policial, o procedimento é similar. Embora não seja obrigatória a presença de defensor como ocorre na etapa judicial (CPP, art.185, caput), o indiciado poderá exercer seu direito de permanecer calado e, desejando falar, será inquirido nos mesmos moldes das indagações previstas para o interrogatório em juízo.
Consigna-se que o indiciado, conquanto possa se quedar silente e não esteja compromissado em dizer a verdade caso prefira se manifestar, não tem “direito de mentir”. Se o sujeito ofertar versão inverídica, os fatos falsos alegados, ainda que em sede de declarações, antes de ser formalmente indiciado, poderão lhe ser desfavoráveis no cotejo dos dados amealhados na investigação criminal (e poderão resultar na deliberação pelo indiciamento).
O fato de não existir infração penal de perjúrio ao indiciado (tampouco ao acusado) no ordenamento brasileiro, não significa que os eventuais argumentos falaciosos e distorcidos que ele vier a expor em seu interrogatório não possam ser avaliados e interpretados em seu prejuízo, embora sempre se exigindo a devida comprovação via complementação e confronto com outras provas, ao contrário do que ocorre com o silêncio que, por si só, não é suficiente nem para condenar e tampouco para indiciar alguém (CPP, art. 186, p.u.).[11]
4.1 - Prestação de dados falsos e recusa de dados sobre a própria identidade
Prevalece o entendimento segundo o qual a oferta de dados qualificativos falsos pelo indiciado caracteriza o delito de falsa identidade (CP, art. 307), enquanto a negativa omissiva em fornecer referidas informações pessoais configura a contravenção penal de recusa de dados sobre a própria identidade ou qualificação (Lei das Contravenções Penais - Decreto-lei nº 3.688/1941, art.68, caput). O indiciado não pode invocar o direito de não produzir prova contra si tampouco o seu desdobramento de direito ao silêncio porque tais medidas não implicam em assunção de responsabilidade pelo fato investigado.[12]
Desse modo, caso o indiciado não forneça elementos suficientes para esclarecer sua identidade, além de responder criminalmente, poderá permanecer preso preventivamente, e o Delegado de Polícia está legitimado a representar ao Magistrado nesse sentido, com fulcro nos artigos 313, parágrafo único, 311, 312 (conveniência da instrução e garantia da aplicação da lei penal) e artigo 13, inciso IV, todos do Código de Processo Penal.
4.2 - Confissão
A confissão consiste, no âmbito policial, no reconhecimento pelo indiciado da prática do fato investigado e, como regra, se opera em sede de interrogatório, embora possa ocorrer fora dele, como, por exemplo, mediante juntada de documentos ou de requerimento de diligências com manifestação da defesa, quando deve ser ratificada e tomada a termo nos autos, em oitiva complementar se for o caso (CPP, art.199).
O instituto é disciplinado nos artigos 197 a 200, do Código de Processo Penal os quais, como sabido, aplicam-se ao inquérito policial no que couberem.
É certo que a confissão possui força probatória relativa, e deve sempre ser confrontada com os demais elementos coligidos e, para tanto, devem sempre ser angariados todos os elementos probatórios que estejam ao alcance da Autoridade Policial, justamente para confirmar ou infirmar a versão do indiciado (CPP, art.197).
Por tal razão, a análise da confissão deve levar em conta a verossimilhança (probabilidade da versão confessada), a clareza (narrativa compreensível e com sentido inequívoco) e a coincidência entre o relato do confitente e o conjunto probatório haurido.[13]
Além do mais, por ser divisível e retratável (CPP, art. 200), nada impede que o indiciado confesse apenas parte do fato investigado ou mesmo que ele posteriormente mude sua versão.
Como asseverado, a confissão ocorre, em regra, no bojo do interrogatório. Quando o indiciado apenas admite a prática delitiva, é denominada de “confissão simples”. Se houver alegação de excludente de ilicitude ou de culpabilidade, recebe o batismo doutrinário de “confissão qualificada” e, por fim, rotula-se “confissão delatória” na hipótese do sujeito, além de confessar o cometimento do delito, delatar terceiros concorrentes do fato ilícito, quando poderá se estar diante do instituto da “colaboração premiada”, se a delação resultar em benefícios legais, comentada no tópico seguinte.[14]
4.3 - A colaboração premiada, a delação e a Lei Federal nº 12.850/2013 (nova lei sobre organização criminosa)
Até o advento da Lei Federal nº 12.850, de 02 de agosto de 2013 (o novo diploma legal de repressão às chamadas “organizações criminosas”), a doutrina costumava chamar de “delação premiada” o instituto que considera como causa de diminuição ou de isenção de pena a “delação” de criminosos ou de outros dados relevantes, por parte de um dos comparsas ou cúmplices envolvidos em determinado fato delitivo.
O instituto, como meio de obtenção de prova, agora passa a ser oficialmente intitulado de “colaboração premiada”, com seus parâmetros legais de aplicação estabelecidos nos artigos 3º, inciso I, e artigos 4º a 7º, todos da mencionada Lei Federal nº 12.850/2013.
Adota-se legalmente, ainda que sob um viés de eufemismo, o termo “colaboração”, levando em conta o ponto de vista da contribuição e cooperação com o poder público na persecução penal, no lugar do vocábulo “delação”, tradicional na doutrina e na jurisprudência e com carga simbólica carregada de preconceitos visto considerar sobretudo o prisma dos agentes “traídos”, embora ambas as expressões, na prática, consistam na revelação de fatos ou pessoas até então ignoradas pelos órgãos estatais, que sejam relacionados a um fato criminoso objeto de investigação.[15]
A colaboração, em princípio, seria tratada como uma confissão (“confissão delatória”), a ser formalizada no interrogatório. De fato, antes da Lei Federal nº 12.850/2013, vários diplomas já veiculavam hipóteses de “colaboração premiada”: a lei de crimes hediondos (Lei nº 8.072/90, art.8º, p.u.), a lei de crimes contra a ordem tributária (Lei nº 8.137/90, art.16,p.u.), o próprio Código Penal nos delitos de extorsão mediante sequestro (art.159, § 4º, com a redação dada pela Lei Federal nº 9.269/1996), a lei antidrogas (Lei nº 11.343/06, art.41), a lei de crimes contra o sistema financeiro (Lei nº 7.492/86, art.25, § 2º), a lei reguladora da proteção a vítimas e testemunhas (Lei nº 9.807/99, arts.13 e 14), a lei de crimes de “lavagem de capitais” (Lei nº 9.613/99, art.1º, § 5º), a lei estruturadora do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (Lei Federal nº 12.529/2011, artigos 86 e 87) e mesmo a antiga lei de repressão às organizações criminosas (Lei Federal nº 9.034/1995, art. 6º), expressamente revogada pelo artigo 26 da Lei nº 12.850/2013 ora em comento. Nenhum desses diplomas, entretanto, previa uma materialização esmiuçada e diferenciada para a colaboração premiada.
Nesse panorama, a Lei Federal nº 12.850/2013 inaugurou nova perspectiva ao instituto, ao veicular menção expressa de um “acordo de colaboração”, disciplinado nos parágrafos 6º a 16, de seu artigo 4º, a ser negociado entre o Delegado de Polícia, o investigado e o Defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou, conforme o caso, entre o Promotor de Justiça e o investigado ou acusado e seu Defensor. Assim, a documentação da colaboração premiada segue procedimento específico, justamente para assegurar as benesses e proteções legais ao “colaborador”, e poderá alterar a aplicação formal da medida no sistema jurídico brasileiro, que não seria mais inserida diretamente no interrogatório.[16]