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Proteção Internacional dos Direitos do Homem nos sistemas regionais americano e europeu: uma introdução ao estudo comparado dos direitos protegidos

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09/09/2013 às 09:02
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3. Comparação quanto ao conteúdo protegido

3.1 Questão metodológica

Na exposição do conteúdo protegido aparecem alguns problemas ligados à técnica de apresentação dos direitos. Tais questões se tornam ainda mais complexas quando, diante da forma de redação das Convenções, emerge uma espécie de sinonímia entre os direitos e as suas garantias.[79] Esta variável impede a exposição baseada no agrupamento dos direitos, de um lado, e de suas garantias, de outro.

Poder-se-ia adotar um segundo método, nos termos do qual cumpriria explorar cada artigo comparado ao similar da outra convenção. O objetivo final seria a construção de um quadro comparativo geral. Essa técnica não é adequada por uma razão essencial: – a comparação seria empobrecida pelo seu caráter de precária elaboração. Ademais, exigiria um espaço que não cabe nos limites do presente texto.

Uma variante do método poderia ser abraçada. Ela envolveria o inventário dos direitos protegidos em ambos os documentos, verificando, ademais, a extensão da proteção assegurada a cada um pelos dois textos, concluindo com uma síntese comparativa capaz de dar conta da economia geral de cada convenção e das lacunas de uma em relação à extensão da outra. Esta técnica apresenta a vantagem da simplicidade. Entretanto, não deixa de apresentar algumas dificuldades. A primeira (e mais significativa) diz respeito a uma questão preliminar. Como falar de direitos sem um ensaio prévio de definição? Os dois Pactos, como afirmado, contemplam direitos e garantias normativas. Ora, as garantias, como antes afirmado, são, não poucas vezes, enunciadas como direitos num texto e como garantias (constituindo mero parágrafo num artigo destinado a afirmar outro conteúdo) no outro. Qualquer definição a priori, necessariamente abstrata, poderá ser arbitrária, não cobrindo as especificidades de cada convenção. Por isso, o método referido não é o mais adequado aos propósitos do presente estudo.

Um terceiro método justificaria o estudo não dos direitos, mas, antes, dos domínios jurídicos protegidos. Esta técnica de exposição tem a vantagem de, no contexto de uma mesma atividade humana, referir-se ao mesmo tempo aos direitos e garantias, sem a necessidade da prévia delimitação conceitual dos termos. Depois, apresenta a vantagem da síntese ao aglutinar vários artigos e parágrafos (relativos a vários direitos e garantias) sob um mesmo título. Esta é a técnica que será adotada.

Da análise das duas Convenções, resultam sete principais domínios jurídicos protegidos. São os domínios relativos à (i) integridade corporal, à (ii) liberdade individual, à (iii) atividade intelectual, à (iv) proteção da intimidade, à (v) atividade social e política, à (vi) propriedade e, finalmente, à (vii) liberdade de locomoção e residência.

Alguns domínios são melhor protegidos por uma das Convenções. Outros alcançam, nos dois Pactos, a mesma significação. De um modo geral, as diferenças entre os dois textos referem-se a aspectos parciais de cada campo jurídico. A matéria constitui objeto do item 3.3.

Ao lado do patrimônio comum, há outras dimensões da atividade humana disciplinadas pela Convenção Americana, mas não pela Europeia. Tais dimensões serão expostas no item 3.2, a seguir.

3.2 Conteúdos regulados pela Convenção Americana e não regulados pela Convenção Europeia

Entre os conteúdos regulados pelo Texto Americano e não regulados pelo Pacto Europeu, encontram-se os direitos (i) à proteção da honra e dignidade humana, (ii) ao nome; (iii) de igualdade em face da lei, (iv) ao reconhecimento da personalidade jurídica e (v) alguns de natureza econômica, social ou cultural.

3.2.1 Proteção da honra e dignidade humana

O art. 11 da Convenção Americana apresenta duplo conteúdo. De uma parte (§§ 1º e 2º), um conteúdo relativo à proteção da dignidade. Este conteúdo assume o mesmo significado da proteção da intimidade no documento europeu.  O assunto será tratado depois. Mas o § 1º ultrapassa um pouco essa significação, porque cuida da dignidade humana. Ora, a sua inclusão no texto convencional pode parecer supérflua. Afinal, os documentos jurídicos internacionais e os mecanismos de garantia por eles criados não têm outro objetivo senão o de reconhecer, promover e proteger a dignidade da pessoa humana.[80] Presta-se, todavia, como modo retórico de reafirmação da dignidade da pessoa humana.

O segundo conteúdo apresentado pelo art. 11 refere-se à proteção da honra e da reputação da pessoa humana. Se, em relação ao primeiro conteúdo, o documento americano não apresenta grande inovação em face do disciplinado pelo Tratado Europeu, a novidade aparece no segundo conteúdo. Entretanto, uma possível superioridade do documento americano sobre o europeu, neste particular, deve ser relativizada. Com efeito, tratando-se de norma que se contenta em afirmar o direito ao respeito da honra e ao reconhecimento da dignidade humana, seu alcance pode, espera-se que não, ser identificado com um mero programa de ação a ser observado pelas partes contratantes.[81]

3.2.2 Direito ao nome

Conforme dispõe o art. 18 da Convenção Americana, “toda pessoa tem direito a um prenome próprio e ao nome de seus pais ou de um entre eles”. Cabe à lei disciplinar esse direito. O artigo autoriza um recurso dirigido à sua satisfação.

3.2.3 Direito a uma nacionalidade[82]

O direito à nacionalidade assume três faces: (i) direito a uma nacionalidade, (ii) direito de não ser privado da nacionalidade e (iii) direito de mudar de nacionalidade. Uma quarta face não deixa de ser significativa. Disposta no art. 20 § 2º, manifesta-se como direito de aquisição, para o indivíduo, não dispondo de outra, da nacionalidade do Estado em que nasceu.

O reiterado exercício desse direito pode conduzir, em terras americanas, ao desaparecimento da injusta condição de apátrida.[83] Sua aplicação não desafia maior dificuldade vez que o critério qualificador da nacionalidade, na maior parte dos Estados americanos, é o jus soli. É mais difícil para os países que adotam o critério jus sanguinis.

3.2.4 Direito de igualdade em face da lei

A Convenção Europeia assegura, nos termos do art. 14, o exercício dos direitos por ela garantidos, sem distinção alguma. Não há, porém, o reconhecimento da igualdade perante a lei com o alcance de princípio geral.[84] O projeto do segundo Protocolo Adicional compreendia essa garantia.[85] Entretanto, acabou sendo concluído sem ela. Diante disso, permanece a situação segundo a qual, frente à Corte Europeia, “toda diferenciação não constitui forçosamente uma discriminação”.[86]

Tudo se passa de modo distinto com o Tratado Americano. Aqui, no art. 24, encontra-se proclamado, em termos generosos, o direito à igualdade: “Todas as pessoas são iguais perante a lei; por consequência, todas elas têm direito a uma proteção igual da lei, sem discriminação alguma”.

Nesse particular, a Convenção pode ser invocada para a satisfação da igualdade de todos diante da Administração Pública, nos Tribunais, vinculando também o Legislador. A situação muda em outras hipóteses, especialmente aquelas envolvendo situações fáticas de desigualdade implicando necessidade de adoção de mecanismos de discriminação positiva. As manifestações da Comissão e da Corte serão preciosas no sentido de elucidar os limites possíveis de tal conteúdo protegido. Resta conferir se a interpretação do direito de igualdade, levada a cabo por tais órgãos, será também generosa.[87]

3.2.5 Direito ao reconhecimento da personalidade jurídica

O primeiro direito proclamado no capítulo II garante o reconhecimento, a toda pessoa, de sua personalidade. O dispositivo reitera, de algum modo, preocupação já acentuada no Pacto das Nações Unidas (art. 16).

A proposta de inscrever este direito na Convenção Europeia foi aventada por ocasião dos estudos dirigidos à conclusão do quarto Protocolo Adicional. Porém, a proposição não chegou a ser aceita.[88]

A condição de possuidor (titular) de direitos exige uma condição prévia, a de sujeito de direito. Disso decorre a relativa desnecessidade de proclamação da garantia. Tal hipótese se vê fortalecida quando se percebe que a noção de personalidade jurídica é a própria ideia mestra do Direito moderno.[89] O Estado moderno exige a racionalidade de um Direito que não pode subsistir sem a noção de pessoa. Por essa razão, é possível indagar da utilidade de um tal reconhecimento num texto internacional. Crê-se que melhor seria se, nos contextos americano e europeu, houvesse tratamento adequado para o tratamento jurídico da capacidade jurídica. Tal questão tocaria num ponto delicado, principalmente nas Américas, aquele vinculado ao estatuto jurídico dos indígenas.

O que acima foi dito, porém, não se aplica quando se trata de um texto internacional de caráter universal, como o Pacto de Direitos Civis e Políticos da ONU. Com efeito, aqui aparece claramente a importância do direito. Ainda há regiões no mundo não integradas à modernidade, onde imperam, muitas vezes, relações de produção marginais, próximas às escravistas. Ora, o escravo é um ser que sofre a expropriação dos seus atributos de humanidade. É, por isso, tratado como coisa, objeto de relações comerciais (compra e venda). Falta-lhe a liberdade, atributo que, aliado à vontade, constitui o elemento-chave da noção de sujeito de direito. Quem não é livre não tem vontade e não pode, portanto, ser titular de direitos e obrigações. Ora, acabar com essa injusta situação em várias partes do mundo constitui o objetivo principal do art. 16 do Pacto das Nações Unidas.

3.2.6 Direitos econômicos, sociais e culturais

A presença desse conjunto de direitos na Convenção Americana, como já se anunciou, a distancia da concluída no âmbito do Conseil de l'Europe. Com efeito, esta cuida apenas dos direitos civis e políticos, seguindo uma política específica também adotada pela ONU.[90]

Os direitos econômicos, sociais e culturais[91] estão, em princípio, regulados pelo art. 26, que monopoliza o capítulo dedicado ao tema. A redação final da Convenção alterou a forma mediante a qual, anteriormente, o Conselho Interamericano de Jurisconsultos desenvolvera o assunto. Com efeito, o Capítulo III do então projeto elaborado em 1959, em Santiago do Chile, compreendia os direitos (i) ao trabalho, (ii) dos povos à livre determinação, (iii) à sindicalização, (iv) à previdência social, (v) a condições dignas de trabalho, (vi) de constituir uma família, (vii) de receber educação, (viii) de tomar livremente parte na vida cultural e (ix) à propriedade privada, sujeitado seu uso ao interesse social.[92]

Na redação afinal adotada em São José da Costa Rica, em 1969, os direitos à propriedade privada,[93] à proteção da família[94] e da criança[95] foram dispostos entre os direitos civis e políticos. Os demais direitos econômicos, sociais e culturais, foram tratados, sem maior cuidado técnico, de modo meramente programático pelo art. 26 já referido, da seguinte forma:

“Artigo 26 – Desenvolvimento progressivo. Os Estados-Partes se comprometem a adotar as providências, tanto em nível interno como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, para lograr progressivamente a plena efetividade dos direitos que derivam das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, contidas na Carta de Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, pela adoção de disposições legislativas ou por outros meios apropriados.”

A disposição, como se vê, faz referência expressa à Carta da OEA. Este documento incluiu, por meio do protocolo de Buenos Aires, um conjunto de novas disposições concernentes à proteção da vida social,[96] econômica[97] e cultural,[98] constituindo, praticamente, uma declaração de direitos de natureza econômico-social.[99]

Entretanto, a redação dos dispositivos, como afirma Bauer, “deixa um tanto vaga, e até de certa forma inoperante, a obrigação dos Estados de promover e de proteger os referidos direitos (...)”.[100] Isto porque os próprios dispositivos normativos abrem saídas para o descumprimento das obrigações estatais, sob o pretexto da escassez de recursos ou outro motivo. Percebe-se que tais direitos, na forma como reconhecidos, implicando desenvolvimento progressivo, não autorizam eficácia integral, direta e imediata. Logo, no tocante à eficácia jurídica, os direitos econômico-sociais, no mundo prático da vida, acabam tendo o mesmo alcance na Convenção Europeia (que não os contemplou) e Americana, não obstante a diferença inicial entre as técnicas utilizadas. A técnica de redação dos dispositivos, assim como a natureza da matéria, não permitem uma intervenção pronta e eficiente dos mecanismos institucionais de controle. Era de se esperar, portanto, que, como a ONU e o Conselho da Europa, a Organização dos Estados Americanos aprovasse outro documento para cuidar, com maior grau de precisão, dos direitos econômicos, sociais e culturais. Isso ocorreu com o do Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de São Salvador), adotado pela Assembleia Geral em 17 de novembro de 1988 e em vigor desde 16 de novembro de 1999. O Brasil aprovou o Protocolo Adicional em 1995, por meio do Decreto Legislativo n. 56.[101]

Os Estados, no Preâmbulo do Protocolo Adicional, reconhecem que “só pode ser realizado o ideal do ser humano livre, isento de temor e da miséria, se forem criadas condições que permitam a cada pessoa gozar de seus direitos econômicos, sociais e culturais, bem como de seus direitos civis e políticos”. Diante disso, os países contratantes comprometem-se a adotar as medidas necessárias, tanto de ordem interna como por meio da cooperação entre os Estados, a fim de conseguir, progressivamente e de acordo com a legislação interna, a plena efetividade dos direitos econômicos, sociais e culturais (art. 1º). O compromisso inclui as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos esses direitos (art. 2º). Mais do que isso, comprometem-se os Estados também a garantir o exercício de tais direitos sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social” (art. 3º). Estabelecendo um mecanismo diferente de proteção e controle de tais direitos que inclui a atividade dos Conselhos Interamericano Econômico e Social e Interamericano da educação, Ciência e Cultura, além da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o art. 19.6 do Protocolo Adicional, admite, apenas para os direitos à educação (art. 13) e à livre associação sindical, incluindo o livre funcionamento dos sindicatos, das federações e confederações sindicais, na circunstância de violação imputável diretamente a um Estado-Parte, mediante a participação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e, sendo o caso, da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a aplicação do sistema de petições individuais regulado pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

3.2.7 Outros direitos

A comparação entre o Texto Americano e o Europeu pode se estender ainda sobre outros domínios jurídicos. É o caso, por exemplo, de certas garantias relativas à liberdade individual presentes no documento europeu, mas não no americano;[102] assim como de certos direitos políticos, do direito de asilo e do direito de retificação ou resposta presentes na Convenção Americana, mas não na Europeia. Como tais direitos e garantias podem se situar, sem dificuldade, nos domínios gerais a serem a seguir analisados, serão tratados, juntamente com estes, na próxima seção.

3.3 Conteúdos regulados pelas duas Convenções

Trata-se aqui não somente de expor os domínios regulados, ao mesmo tempo, pelos dois instrumentos internacionais, mas de analisar a amplitude do tratamento em ambos os instrumentos normativos internacionais.

3.3.1 Proteção da vida e integridade pessoal

A proteção da vida e integridade pessoal compreende três dimensões distintas: (i) uma primeira relativa ao direito à vida, (ii) uma segunda ligada à integridade da pessoa e (iii) uma terceira identificada com a interdição de práticas conducentes à escravidão, servidão e trabalho forçado. Importa analisar como se apresenta cada dimensão.

3.3.1.1 Direito à vida

O direito à vida está previsto no art. 1º do Pacto de Direitos Civis e Políticos da ONU, no art. 2º da Convenção Europeia e no 4º da Americana. No contexto do Conselho da Europa, o direito é tratado com limites mais precisos. Tal limitação de conteúdo operou-se, certamente, para adequar a legislação dos Estados-Partes à normação do Tratado. Diante disso, o alcance do direito, sem o qual os demais perdem a razão de existir, foi diminuído. Segundo o Pacto Europeu, o direito à vida deve ser protegido pela lei. Entretanto, admite-se a pena de morte, desde que aplicada por tribunal.[103]

O Texto Americano, por sua vez, é mais generoso, cuidando não só da proteção do direito à vida, como também do respeito à vida de cada pessoa. Por outro lado, se no instrumento europeu a questão do aborto não é resolvida (até que ponto a interrupção da gravidez pode ser compatibilizado com o direito à vida?),[104] o mesmo não se passa com o Tratado da OEA. Nos termos deste a vida deve ser protegida, “em geral, a partir da concepção”. Percebe-se, igualmente, no Texto Americano a intenção de restringir ao máximo a pena de morte, chegando mesmo a proibir sua aplicação aos crimes que ela não sanciona no momento de sua conclusão,[105] bem como a sua adoção por aqueles Estados que a aboliram.[106] Proíbe-se, ainda, a sua aplicação aos crimes políticos e aos de direito comum conexos àqueles (§ 4º do art. 4º), previsão que assume considerável importância nas Américas. Além disso, a pena de morte não pode ser aplicada às pessoas que, no momento do crime, contarem com menos de 18 ou mais de 70 anos. Não poderá, igualmente, ser aplicada às mulheres grávidas.[107]

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Apenas no espaço (reduzido) exterior àquelas limitações poderá a pena de morte ser adotada. Entretanto, esta, sempre pronunciada por um tribunal competente, deve estar circunscrita aos crimes mais graves.[108] Não obstante, toda pessoa condenada à morte poderá, em qualquer caso, pedir comutação da pena, graça ou anistia, não podendo a sentença ser executada enquanto tal pedido se encontrar pendente de resolução, segundo especifica o § 6º do art. 4º da CADH.

Como se pode notar, a pena de morte é praticamente abolida do âmbito convencional americano.

Não obstante, se neste aspecto o Tratado da OEA é mais generoso que o do Conselho da Europa, o mesmo não se passa em outro campo. Com efeito, segundo os termos do primeiro Pacto, ninguém pode ser privado da vida “arbitrariamente”. Por essa via, desde que a lei o admita, o Direito poderá aceitar, fora dos casos de aplicação da pena de morte, outras hipóteses justificáveis de privação do direito à vida. É o caso, por exemplo, da legítima defesa e do estado de necessidade. O Acordo Europeu, ao invés de empregar a fórmula vaga “arbitrariedade”, preferiu indicar os casos em que a morte não pode ser considerada como violadora do direito à vida.[109] Crê-se que esta fórmula, embora menos dinâmica que a outra, confere mais segurança.

3.3.1.2 Direito à integridade da pessoa

A Convenção Europeia (art. 3º da CEDH) não admite que o ser humano seja submetido à tortura, nem a penas desumanas ou degradantes. O mesmo ocorre com o Tratado Americano, que conta com disposição voltada à tutela do direito à integridade física, psíquica e moral da pessoa humana.[110]

O art. 5º do Acordo da OEA, relativo ao direito à integridade da pessoa, contém, ainda, outras disposições sobre as quais algo será dito mais adiante. As disposições do parágrafo precedente, veiculam regras absolutas que não toleram exceção.[111]

3.3.1.3 Interdição de escravidão, servidão e trabalho forçado

O Acordo Americano, de certa forma, repete o conteúdo protegido pelo Europeu. Mas, vai adiante. Assim é que, nos termos do tratado, ninguém será mantido em escravidão ou servidão,[112] nem será compelido a executar trabalho forçado.[113] O Pacto do Conselho da Europa indica (art. 4º, § 3º) os casos em que certos trabalhos não serão tidos como forçados (no sentido do Tratado), o mesmo ocorrendo com a Convenção da OEA. É o caso da prestação de serviço militar, do trabalho requisitado em caso de perigo e calamidades que ameaçam a vida em comunidade, do decorrente das obrigações cívicas normais[114] e do trabalho exigido de pessoas submetidas ao cumprimento de pena de reclusão ou detenção em virtude de condenação penal.

Em relação ao último aspecto, o Acordo Americano é mais estrito e rigoroso que o Europeu. Seguindo a filosofia do Pacto da ONU (Direitos Civis e Políticos, de 1966), o primeiro autoriza o trabalho compulsório apenas para as pessoas detidas em virtude de execução de sentença ou decisão formal de autoridade judiciária competente.[115] Essa exceção é mais precisa que a adotada pelo Pacto do Conselho da Europa. Aqui, o trabalho poderá ser exigido de pessoas detidas “nas condições previstas pelo art. 5º (...)”. Ora, como lembra De Meyer, “certas categorias de pessoas privadas de sua liberdade em razão do art. 5º não devem necessariamente estar detidas em razão de uma decisão da justiça”.[116] Isto ocorre, por exemplo, com os menores, doentes contagiosos, bêbados habituais, toxicômanos ou com os doentes mentais, conforme autoriza a legislação deste ou daquele Estado europeu.

O Tratado Americano precisa, ainda, que o trabalho forçado não deve prejudicar a dignidade nem a capacidade física e intelectual do detido. Esta restrição não é encontrada no Texto Europeu. Pode-se, porém, suprir esta lacuna, aplicando-se à situação o disposto no art. 3º, também presente na Convenção da OEA, que proíbe tratamentos ou penas degradantes ou desumanas.

3.3.2 Proteção da liberdade e segurança individuais

3.3.2.1 Princípio

Os artigos 7º e 5º, respectivamente, dos Acordos Americano e Europeu, com maior ou menor intensidade, proclamam o direito à liberdade e segurança individuais. O mesmo direito é objeto do art. 9º do Pacto da ONU.

A Convenção concluída no âmbito do Conselho da Europa contempla as situações que justificam a privação da liberdade. O Pacto Americano deixa a disciplina da matéria às Constituições dos Estados contratantes, bem como às leis promulgadas nos termos das disposições constitucionais. Esta fórmula, mais aberta, pode dar lugar a um número maior de situações excepcionais que autorizam a privação da liberdade. Essa mesma técnica foi adotada pelo Pacto da ONU. Seu inconveniente está em atribuir ao Legislador o poder de definir as situações ensejadoras da privação de liberdade, conferindo, em consequência, aos Estados contratantes, uma enorme margem de apreciação.[117]

Dispõe o Texto Europeu, por outro lado, que as detenções, sempre limitadas às hipóteses previstas no art. 5º, devem ser regulares, obedecendo às prescrições fixadas pela lei. O Pacto Americano limita-se a desautorizar as detenções “arbitrárias”.[118] A redação não atinge o grau de precisão da Convenção Europeia. Afinal, o que é arbitrário, ilegal ou injusto? Para o Direito moderno, vinculado à ideia de legalidade,[119] o arbitrário corresponde, em princípio, à esfera da ilegalidade. Pode, entretanto, ir além. Assim considerando, a linguagem usada pela CADH corresponde ao adjetivo regular preferido pelos europeus. Neste sentido, nos casos prescritos em lei (lei ou Constituição dos Estados contratantes), a prisão de qualquer pessoa somente ocorrerá se de acordo com as regras de forma e de fundo previamente estabelecidas para a execução do ato.

Um último aspecto a ser ressaltado, no âmbito principiológico, concerne à proibição da privação da liberdade por “dívida”[120] (exceto no caso de inexecução de obrigações alimentares). O Texto Americano, assim disposto, é mais generoso que o Tratado Europeu. Este interdita a privação da liberdade no caso de “inexecução de obrigação contratual”.[121] Parece que a palavra “dívida” compreende toda sorte de obrigações inadimplidas, inclusive as relativas a obrigações públicas de natureza compulsória como, por exemplo, as tributárias. Não é esse o sentido da expressão utilizada pelo Pacto Europeu, que apresenta um conteúdo mais limitado, não abrangente das dívidas não resultantes de contrato.[122] Mas uma possível superioridade do sistema americano, no assunto em análise, deve ser relativizada. Note-se que enquanto o Pacto Americano proíbe a prisão por motivo de dívida, o Europeu proíbe que alguém seja “privado de sua liberdade”. Esta redação oferece maior proteção neste aspecto, pois a vedação envolve “toda forma de privação, momentânea ou durável da liberdade (...)”[123] e não simplesmente a prisão.

Com efeito, enquanto o Tratado Europeu é mais favorável à proteção da liberdade sob um aspecto, o Tratado Americano o é, igualmente, mas em relação a aspecto diverso.[124]

3.3.2.2 Garantias da pessoa privada da liberdade

a) Direito de ser informado das razões da prisão

A informação deve ser dada no prazo mais curto possível. Tal garantia é assegurada pelos arts. 5º, § 2º e 7º, § 4º, das Convenções Europeia e Americana, respectivamente.

b) Direito de ser apresentado ao juiz

Parece que o art. 7º, § 5º, da Convenção Americana encontra sua fonte de inspiração no art. 5º, § 3º, do Pacto Europeu. Não obstante, não apresentam alcance idêntico. A última cuida apenas das detenções previstas no § 1º, C, do mesmo artigo.[125] Quanto à primeira, dispõe sobre o assunto em termos mais largos, exigindo que toda pessoa detida seja levada à presença do juiz, sem nenhuma exceção.

Os dois instrumentos reconhecem, também, como direito de todo acusado, ser julgado sem demora injustificada ou aguardar o julgamento em liberdade.

c) Direito de recorrer

O recurso deve ser decidido em “curto prazo”, segundo a CEDH, e “sem demora”, nos termos do CADH.[126] Esta cuida, ainda, da possibilidade de interposição de recurso nas circunstâncias de privação (ou ameaça de) ilegal da liberdade. Interessante é a disposição segundo a qual qualquer pessoa pode interpor o referido recurso, não necessariamente aquela implicada na situação. Todos esses aspectos chegam a delinear a arquitetura do habeas corpus, recurso originário da experiência jurídica inglesa.[127]

d) Direito de obter uma reparação em caso de detenção arbitrária

Segundo Karel Vasak, a reparação autorizada pelo art. 5º, § 5º, do Pacto Europeu somente ocorrerá no caso de privação da liberdade que não satisfaça às condições estabelecidas no art. 5º:

“Será assim, por exemplo, quando a privação da liberdade não entra em nenhum dos seis casos limitativos enumerados, ou quando o detido não foi julgado por prazo razoável. Uma pessoa mantida em prisão preventiva e liberada em seguida não será indenizada senão no caso em que a duração de sua detenção foi julgada excessiva em comparação às acusações que pesavam sobre ela”.[128]

Esse direito não é previsto pela CADH.

e) Direito de reparação em caso de condenação ou erro judiciário

Em compensação, esta Convenção (CADH) prevê, nos termos do art. 10, indenização em caso de condenação fundada em erro judicial. O Tratado Europeu não trata da matéria.

f) Direitos relativos ao regime penitenciário

As garantias relativas ao regime penitenciário são asseguradas unicamente pelo Pacto Americano: direito a tratamento digno (art. 5º, § 2º), separação dos detidos preventivamente dos condenados (art. 5º, § 4º), separação do menor dos adultos (art. 5º, § 5º) e à finalidade educativa da pena (art. 5º, § 6º).

3.3.2.3 Direito a uma boa administração da justiça

a) Direitos garantidos a toda pessoa

a.1) Direito a um recurso efetivo

Este direito é previsto em ambas as Convenções (artigos 13 da CEDH e 25 da CADH), embora de modo distinto. Na sistemática europeia, há uma ligação estreita entre os direitos protegidos pela Convenção e a efetividade do recurso.[129] No sistema interamericano, o recurso tem por função garantir não apenas os direitos reconhecidos pelo Pacto Americano, mas também os contemplados nas Constituições ou no direito infraconstitucional interno dos Estados contratantes Por outro lado, além da efetividade, a Convenção de 1969 exige que o recurso seja simples e rápido. Diante disso, no âmbito da OEA, o recurso referido deixa de constituir mero mecanismo assecuratório da Convenção para se transformar em garantia instrumental de todos os direitos e liberdades fundamentais reconhecidos pelos ordenamentos jurídicos dos países-partes.

a.2) Direito a um processo equitativo

Nos termos do art. 8º, § 1º, da CADH,

“(...) toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza”.

Esta disposição não se aparta radicalmente do estabelecido no art. 6º, § lº, do Documento Europeu, segundo o qual “qualquer pessoa tem direito a que sua causa seja examinada equitativa e publicamente, num prazo razoável, por um Tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei (...)”.

b) Direitos garantidos a todo acusado

b.1) Tipicidade dos delitos e das penas

Talvez o mais importante dos direitos tratados sob a rubrica “direitos garantidos a todo acusado” seja o relativo à legalidade em matéria penal. Neste campo, mais uma vez, as concepções que informam ambas as Convenções não são coincidentes. Não obstante, adotam um mesmo princípio inicial: (i) não há crime, ou infração penal, sem lei que anteriormente tenha definido tal ação ou omissão como tal (artigos 7º, § lº, da CEDH e 9º da CADH) e (ii) não pode ser aplicada pena maior que aquela prevista em lei no momento da ação ou omissão qualificada como delituosa (artigos 7º, § 2º, da CEDH e 9º CADH).

A diferença aparece em função do direito à retroatividade da lei penal mais favorável. Segundo o Pacto Americano, a pena posterior mais leve, cominada para a infração, retroage em benefício do réu. Esse princípio não é mencionado no congênere europeu.

Radicaliza-se a diferença anunciada diante das concepções de legalidade penal que presidem as formulações dos dois documentos. Segundo a Convenção Americana, só há infração penal quando, no momento da ação ou omissão, estas eram tipificadas pela lei. O mesmo não ocorre no Tratado Europeu, nos termos do qual é admissível “o julgamento e a punição de uma pessoa culpada de uma ação ou de uma omissão que, quando cometida, constituía crime diante dos princípios gerais de direito reconhecidos pelas nações civilizadas”.[130]

Este dispositivo legitima a ação do Tribunal de Nuremberg após a Segunda Grande Guerra. Entretanto, a elasticidade inerente à noção utilizada não deixa de carregar certo perigo para os direitos humanos. O Texto americano, posterior ao Europeu, não quis seguir a mesma filosofia.

b.2) Outros direitos e garantias

Podem ser identificados vários direitos comuns a ambos os Tratados: (i) presunção de inocência (artigos 6º, § 1º, da CEDH e 8º, § 2º, da CADH), (ii) direito de ser informado sobre a natureza da acusação (artigos 8º, § 3º, da CEDH e 8º, § 2º, “b”, da CADH), (iii) direito de dispor do tempo e facilidades necessárias à preparação da defesa (artigos 6º, § 3º, “b”, da CEDH e 8º, § 2º, “c”, da CADH), (iv) direito de defesa, compreendendo a defesa técnica, inclusive proporcionada por advogado dativo, sendo o caso (artigos 6º, § 3º, “c”, da CEDH e 8º, § 2º, “d”, e “e”, da CADH), (v) direito de se fazer assistir, gratuitamente, por um intérprete, sendo necessário (artigos 6º, § 3º, “e”, da CEDH e 8º, § 2º, “a”, da CADH) e (vi) direito de obter a convocação de testemunhas (artigos 6º, § 3º, “d”, da CEDH e 8º, § 2º, “f”, da CADH).

Outros direitos são contemplados apenas na Convenção Americana: (i) direito de se comunicar livremente com o defensor, sem testemunha (art. 8º, § 2º, “d”), (ii) direito do acusado não ser obrigado a se declarar culpado (art. 8º, § 2º, “g”), (iii) direito de interpor recurso junto a tribunal superior (art. 8º, § 2º, “h”), (iv) interdição de bis in idem em matéria penal (art. 8º, § 4º) e (v) garantia relativa à publicidade do processo penal (salvo exceções no interesse da justiça) (art. 8º, § 5º).

Ao lado dos direitos acima referidos, todos de natureza penal, pode ser citado um último, previsto no Pacto Americano. Trata-se da garantia de individualização da pena (art. 5º, § 3º, da CADH).

3.3.3 Proteção da intimidade

3.3.3.1 Princípio

Os dois Pactos garantem, de forma análoga, o respeito à vida privada e familiar, ao domicílio e ao sigilo da correspondência. O art. 11, § 2º, do Tratado Americano dispõe que “ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na vida de sua família, no seu domicílio ou em sua correspondência (...).” A Convenção Europeia trata da questão em termos positivos: “toda pessoa tem direito ao respeito de sua vida privada e familiar, de seu domicílio e de sua correspondência”.[131]

3.3.3.2 Delimitação do conteúdo protegido

Como se pode verificar, a proteção da intimidade pode se desdobrar em dois domínios jurídicos protegidos. O primeiro, relativo à vida familiar (respeito da vida familiar), e o segundo, relativo à proteção da vida privada (proteção do domicílio e da correspondência).

A terceira dimensão da proteção da intimidade é assegurada pelo direito de casamento e de instituição de uma família, anunciado pelos artigos 12 e 17 das Convenções, respectivamente, Europeia e Americana. O alcance dos dois artigos parece ser o mesmo. Cumpre verificar, entretanto, se o mesmo pode ser dito dos dois domínios citados no parágrafo anterior.

Dois elementos são reveladores da extensão da garantia, em cada documento. O primeiro informa quem é titular da obrigação de respeitar a intimidade do ser humano. O segundo delimita os casos em que os direitos derivados da proteção à intimidade podem sofrer restrição e quem pode operar tais restrições.

Quanto à primeira questão, as duas Convenções identificam-se. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da vida privada, familiar e do seu domicílio, incluído o sigilo da correspondência. O direito é oponível erga omnes: toda e qualquer pessoa é titular da obrigação negativa vinculada ao direito. A afirmação, entretanto, desafia algum refinamento. É que os particulares não são responsáveis diretos diante das Convenções.[132] Diante disso, esse direito não é, via Convenção, diretamente oponível a particulares. Mas o é contra o Estado, que desempenha duas funções em face da Convenção. A primeira voltada para a organização dos meios de proteção no âmbito interno, punindo as ações ilegais dos particulares; a segunda referida à obrigação de prestação negativa, ou seja, ao dever de abstenção em face da intimidade de seus cidadãos.[133]

Em relação ao segundo elemento (ou, antes, questão) a Convenção Europeia é mais precisa. A redação do artigo parece indicar que são permitidas apenas ingerências da autoridade pública. O Acordo Americano silencia a respeito. Nos dois casos, porém, as ingerências devem se dar apenas em casos justificados. Mais uma vez, aqui, o instrumento europeu é mais preciso. A autoridade pública não pode restringir o exercício, por qualquer pessoa, dos direitos relativos à proteção da vida privada, senão quando autorizada pela lei. Porém, o campo de discricionariedade do Legislador não é absoluto. A atividade do Poder Público deve se circunscrever às medidas admitidas numa sociedade democrática (o que diminui a intensidade da ingerência) e apenas com o objetivo de perseguir uma das seguintes finalidades: (i) segurança nacional, (ii) segurança pública, (iii) bem-estar econômico do país, (iv) defesa da ordem, (v) prevenção de infrações penais, (vi) proteção da saúde ou da moral e (vii) proteção dos direitos e liberdades de terceiros.[134]

Já o Tratado Americano limita-se a vedar “ingerências arbitrárias ou abusivas”. A redação adotada, em virtude de seu nível de abstração, permite a concomitância de interpretações diferentes. Entretanto, o art. 11, § 3º, reclama a proteção, pela lei, dos direitos relativos à vida privada, incluída a familiar. Parece que, no Texto da OEA, o caráter arbitrário da ingerência poderá ser definido em função de sua legalidade ou ilegalidade. Por sua vez, o caráter abusivo poderá ser medido pela intensidade da ingerência estatal. Exige-se que a ingerência seja razoável ou que não ultrapasse os padrões de razoabilidade. Esta interpretação encontra seu fundamento na disjunção “ou” que acompanha, segundo a redação do § 2º do art. 11, os significantes “arbitrária” (ou) “abusiva”.[135] Diante do exposto, a ação estatal deverá ser legal (nada de arbitrariedade) e, mais do que isso, razoável (não abusiva). Se esta for a interpretação adotada pela Comissão e Corte de Direitos Humanos, então a proteção acordada pelo Tratado Americano se aproximará daquela oferecida, na mesma área, pela Convenção Europeia.

3.3.4 Proteção da atividade intelectual

A liberdade da atividade intelectual é assegurada pelo art. 9º do Tratado Europeu e pelos artigos 12 e 13 do Tratado Americano. Referido direito pode ser visto sob três ângulos. O primeiro ângulo está ligado à liberdade de pensamento, consciência e religião; o segundo reporta-se à liberdade de expressão, e o terceiro, à liberdade dos pais quanto à educação dos filhos.[136]

Desde o primeiro ângulo, uma comparação entre as Convenções permitirá notar que os direitos concernentes à atividade intelectual assumem, nas duas, igual alcance. Esses direitos referem-se à liberdade de religião (ou crença), assim como à liberdade de pensamento. O segundo ângulo anunciado exige mais atenção.

Em relação ao terceiro aspecto referido, as Convenções orientam-se, também, no mesmo sentido. Tanto em um caso como no outro, os pais poderão exigir, para os filhos, educação religiosa e moral conforme suas próprias convicções. A única diferença é que tal direito é expressamente assegurado, igualmente, nas Américas, aos tutores. O Tratado Europeu silencia[137] a respeito.

3.3.4.1 Liberdade de manifestação e expressão

a) Liberdade de manifestação religiosa

A liberdade de religião é protegida nos dois Pactos.[138] Sob o prisma das restrições, o art. 12, § 3º, do Pacto Interamericano limitou-se a adaptar o art. 9º, § 2º, do Tratado Europeu. Segundo este, a referida liberdade não impede a adoção de restrições ao seu exercício, sempre previstas pela lei. A autorização para a adoção de restrições vem temperada com a cláusula democrática, de forma que a competência do Legislador deve ser interpretada no contexto de uma sociedade democrática. Além desta limitação, outras se impõem, desta vez cuidando da finalidade das restrições (assegurar as situações previstas no final do § 2º do art. 9º). A Convenção Americana silencia quanto a isto, embora a democracia também nela esteja pressuposta. Esta é a única diferença entre os Acordos neste particular.

b) Liberdade de manifestação e expressão do pensamento

b.1) Princípio

Há diferenças entre os artigos 13 do Tratado Americano e o art. 10 do Europeu. O primeiro protege os direitos de “procurar”, “receber” e “divulgar” informação, enquanto o Europeu reporta-se apenas aos direitos de “receber e divulgar” informações.[139] Por outro lado, a generalidade com a qual este Pacto tratou de tal liberdade e a maneira exemplificativa mediante a qual o Tratado Americano relacionou os meios de seu exercício autorizam afirmar que, tanto na Europa como no contexto da OEA, esse direito pode se exteriorizar de várias formas.

b.2) Restrições admitidas pela CEDH

A Convenção Europeia proíbe a “ingerência das autoridades públicas” no exercício da liberdade de expressão do pensamento e opinião. Não obstante, admite que as empresas de radiodifusão, cinema e televisão possam ser submetidas a um regime de autorização imposto pelos Estados-Partes. O exercício da liberdade pode ainda ser submetido a “certas formalidades, condições, restrições ou sanções previstas pela lei”, sempre, na forma do § 2º do art. 10. Estas medidas concedem um campo considerável de ação discricionária aos poderes públicos dos Estados contratantes.

b.3) Restrições admitidas pela CADH

A proteção outorgada por este Pacto é mais extensa. Com efeito, não admite censura prévia, a não ser nos casos dos espetáculos públicos, desde que prevista pela lei e unicamente em função da proteção da moral das crianças e dos adolescentes.[140] A liberdade de expressão pode ser submetida a um regime de responsabilidade, desde que fixado por lei,[141] visando, unicamente, ao “respeito dos direitos e a reputação dos outros” e “à salvaguarda da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.”[142]

Garantia importante é a proibição da restrição indireta da liberdade, seja por meio de monopólio público ou privado dos meios necessários ao seu exercício, seja por outro veículo qualquer.[143]

Outra restrição à liberdade de expressão que, na verdade, funciona como verdadeira garantia foi regulada pelo Pacto das Nações Unidas para autorizar a proibição, pela lei, de “toda propaganda em favor da guerra, ou todo apelo ao ódio nacional, racial ou religioso que constituem incitações à violência (...)”.[144] Esta restrição à livre manifestação do pensamento é exigida em favor da realização da paz.

c) Direito de retificação ou de resposta

Para assegurar a liberdade de expressão, o Pacto Americano não se limita a proibir os monopólios e a censura prévia e mesmo a restringir a interferência injustificada do Poder Público. Vai mais adiante, contemplando, inclusive, os direitos de retificação e de resposta, ignorados pelo Tratado Europeu. O art. 14 daquele instrumento serve não apenas para assegurar a liberdade em análise, mas também para garantir os direitos à honra e à reputação. Os direitos em questão reclamam a publicação de retificação ou da resposta pelo órgão responsável pela ofensa ou pelo erro na informação.

Diante dos dados estudados, a proteção da liberdade de expressão do pensamento parece ser mais ampla e sensivelmente mais significativa no território regulado pelo Pacto Americano.

3.3.5 Proteção da atividade social e política

Cumpre, nesta altura, chamar a atenção para a garantia dos direitos de reunião e associação e dos direitos políticos propriamente ditos.

3.3.5.1 Direitos de reunião e de associação

Os direitos de reunião e de associação estão previstos nos artigos 11 da Convenção Europeia e 15 e 16 do Pacto Interamericano. Em ambos, as restrições admitidas são as previstas em lei, mas desde que constituam medidas necessárias em uma sociedade democrática, “à segurança nacional, à segurança pública, à proteção da saúde ou da moral – o Tratado Americano menciona ainda saúde e moralidade públicas – ou à proteção dos direitos e liberdades dos outros”. Seguindo a redação oferecida por artigo análogo do Pacto das Nações Unidas, a Convenção Americana refere-se ainda à “ordem pública”, enquanto o Tratado Europeu prefere a expressão “defesa da ordem e prevenção do crime”. A distinção não é significativa.

Outra vez acompanhando o Pacto da ONU, a Convenção Americana tolera a adoção de “restrições legais” ao exercício desses direitos para os membros das forças armadas e da polícia. O Tratado Europeu autoriza restrições igualmente (além das forças armadas e da polícia) aplicáveis aos funcionários da administração do Estado, desde que “legítimas”. Parece que os direitos de reunião e de associação encontram-se melhor protegidos na Convenção Americana. Num aspecto, entretanto, a afirmação pode não ser verdadeira. O documento interamericano não se refere expressamente – como o europeu – à liberdade sindical como uma das modalidades de exercício da liberdade de associação. Preferiu falar em “associações de fins econômicos, profissionais (...)”, o que pode compreender, ou não, a liberdade sindical. A questão tem importância considerável. Se o art. 16 compreende a liberdade sindical, então, esta liberdade encontrará proteção mais eficaz aqui do que no art. 26, relativo aos direitos econômicos, sociais e culturais. De qualquer modo, esta questão ficou, em parte, superada com a aprovação do Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de São Salvador).

3.3.5.2 Direitos políticos propriamente ditos

a) Tratado Europeu

No âmbito do Conselho da Europa, os direitos políticos são regulados pelo art. 3º do Protocolo Adicional. Segundo o referido artigo, as partes contratantes se comprometem a organizar, em intervalos razoáveis, eleições livres em condições que assegurem a livre expressão da opinião do povo sobre a escolha do corpo legislativo.

 Interessante notar a timidez com a qual o Pacto Europeu reconhece direitos que representam um dos pilares de sustentação dos regimes políticos consagrados na Europa ocidental, particularmente depois da Segunda Guerra Mundial. Os direitos políticos limitam-se à expressão (por meio do voto, em intervalos razoáveis) da opinião popular sobre a escolha, não de todos os governantes, mas apenas dos membros do Poder Legislativo (muitos Estados europeus adotam o regime parlamentar, constituindo também monarquias ou repúblicas com Presidentes eleitos de modo indireto). A Convenção não concede um verdadeiro direito subjetivo de voto, como pretendem alguns. O direito tem como contrapartida apenas a obrigação de os Estados tomarem medidas de direito interno necessárias à sua concretização de tempos em tempos (normas de organização e procedimento). Essa interpretação, como lembra Vasak, foi adotada pela Comissão por ocasião de decisão prolatada no pedido (requête) n. 1.065/1961.[145] Segundo a decisão, por meio do art. 3º do Protocolo Adicional, os Estados contratantes não “reconhecem a toda pessoa o direito de participar das eleições”, ou seja, “o direito de voto não é, enquanto tal, consagrado pelo art. 3º como a Comissão já constatou, em sua decisão de 4 de janeiro de 1960, sobre a admissibilidade do pedido n. 530/1959”. Diante disso, “os Estados contratantes podem excluir do escrutínio certas categorias de cidadãos, por exemplo aqueles que residem além-mar, pelo tempo que esta exclusão não impeça a livre expressão do povo sobre a escolha do corpo legislativo (...)”.[146]

b) Tratado Americano

Este instrumento internacional, no art. 23, concede a todos os cidadãos verdadeiros direitos subjetivos oponíveis ao Estado, envolvendo (i) a participação na “direção dos negócios públicos, diretamente ou por intermédio de representantes livremente eleitos”, (ii) a possibilidade “de eleger ou de ser eleito através de consultas periódicas e autênticas, segundo o sufrágio universal e igual, e por escrutínio secreto, garantindo a livre expressão da vontade dos eleitores” e, finalmente,  (iii) a possibilidade de “aceder, em igualdade de condições gerais, às funções públicas de seu país.”

A CADH prevê a regulamentação desses direitos por meio de lei. Entretanto, a lei somente pode restringi-los em função de idade, nacionalidade, residência, língua, capacidade de ler e escrever, capacidade civil ou mental, ou no caso de condenação penal por juiz competente.[147]

Como se pode perceber, os direitos políticos no continente americano assumem uma significação que o Tratado Europeu, tributário de iniciativas sempre cautelosas, está longe de conceder. Com efeito, a CADH reconhece direitos não consagrados pelo Tratado do Conselho da Europa. Quanto ao direito à realização de eleições periódicas, os dois textos acompanham filosofias radicalmente distintas. Bastam três exemplos: (i) A CADH exige que o sufrágio seja universal e igual, já a CEDH cuida do tema de modo menos preciso; (ii) a CADH não admite discriminação, quanto ao voto, por motivo de sexo, enquanto a CEDH silencia a respeito; por fim, (iii) as eleições segundo a CADH não se limitam à composição do corpo legislativo (inclusive porque nas Américas, em geral, os Estados constituem repúblicas presidencialistas), enquanto este é o caso da garantia proclamada pela CEDH.

Conclui-se que a atividade política é protegida com mais intensidade no âmbito da Organização dos Estados Americanos. A Convenção, neste particular, demonstra que quer desempenhar uma função pedagógica (e, portanto, política) nas Américas, traduzindo-se como obstáculo à ressurgência dos regimes autoritários que, desgraçadamente, com tanta frequência se manifestam na América Latina.

3.3.6 Proteção da propriedade privada

Os dois Pactos reconhecem o direito de toda pessoa ao respeito (art. 1º do Protocolo Adicional da Convenção Europeia) ou à fruição e posse (art. 21 da Convenção Americana) de seus bens. O documento americano admite que a lei possa subordiná-lo ao interesse social. A possibilidade de restrição é mais ampla no contexto do Conselho da Europa. Aqui, as restrições podem ser adotadas em função do “interesse geral”, assim como para assegurar o pagamento de impostos ou de outras contribuições ou multas. Perceba-se que a noção de “interesse geral” é sensivelmente mais ampla que a de “interesse social”.

A possibilidade de privação do direito de propriedade é admitida, em certos casos, por ambos os documentos. Enquanto o Pacto Europeu exige que o procedimento expropriatório se opere em função de “utilidade pública” e nas “condições previstas em lei ou pelos princípios gerais de direito internacional”, o Americano reporta-se às noções de “interesse público” e de “interesse social”, mas sempre nos “casos e segundo as formas previstas em lei”.

Uma última questão vincula-se ao tópico “princípios gerais de direito internacional”. Esta referência estaria relacionada com os limites da intervenção estatal na propriedade de particulares? Parece que sim, já que “os princípios gerais de direito internacional” referidos pela Convenção Europeia identificam-se com as regras estabelecidas pelo Direito Internacional para, em geral, interditar o confisco de bens de estrangeiros. Substanciam, pois, garantias aos estrangeiros (quanto à indenização pela privação de bens) que podem não estar previstas de modo satisfatório nas leis nacionais. Conclui-se, pois, que neste particular o documento europeu é mais completo que o americano.

3.3.7 Proteção da liberdade de locomoção e residência

3.3.7.1 Princípio

Esta esfera da liberdade é garantida pelos artigos 1º, 2º, 3º e 4º do Quarto Protocolo Adicional à Convenção Europeia e pelo art. 22 da Convenção Americana. Nas duas situações, de modo muito próximo,[148] assegura-se a toda pessoa que se encontre regularmente no território de um Estado o direito de circular livremente e de escolher o local de sua residência. Reconhece-se ainda a qualquer pessoa o direito de deixar qualquer país, inclusive o seu.

Esses direitos podem ser submetidos a certas restrições. Tanto na Convenção Europeia como na Americana, as restrições devem ser previstas em lei e satisfazer determinadas condições que, semelhantes (salvo diferenças menores)[149] nos dois instrumentos, dizem respeito às medidas necessárias para proteger a segurança nacional, a ordem pública, a saúde e a moralidade públicas, os direitos e liberdades de terceiros, bem como a prevenção das infrações penais. Permite-se, ainda, na Europa e na América, que as liberdades de locomoção e residência sejam objeto, em certas zonas determinadas, de outras restrições definidas em lei e “justificadas pelo interesse público”.[150]

Por outro lado, os tratados dispõem que ninguém pode ser privado do direito de entrar no território do Estado do qual é jurisdicionado.

3.3.7.2 Expulsões

A CEDH especifica que “ninguém pode ser expulso, por via de medida individual ou coletiva, do território do Estado do qual é jurisdicionado”.[151] Esta proibição também alcança os estrangeiros quanto às expulsões coletivas.[152] A CADH também prevê idênticas garantias; entretanto, as reveste de alcance maior, eis que o estrangeiro não poderá ser expulso senão em virtude de decisão conforme a lei.[153] O Tratado do Conselho da Europa silencia quanto a isto. Garantia igualmente ausente no Pacto Europeu é a de que o estrangeiro não poderá ser enviado a outro país, seja o seu ou não, caso “seu direito à vida ou à liberdade individual corra risco de se fazer objeto de violação em razão de sua raça, de sua nacionalidade, de sua religião, de sua condição social ou em razão de suas opiniões políticas”.[154]

Finalmente, uma terceira garantia, ausente no Tratado Europeu, refere-se ao direito de asilo,[155] tão caro ao continente americano.

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Sobre o autor
Clèmerson Merlin Clève

Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná. Professor Titular de Direito Constitucional do Centro Universitário Autônomo do Brasil - UniBrasil. Professor Visitante dos Programas Máster Universitario en Derechos Humanos, Interculturalidad y Desarrollo e Doctorado en Ciencias Jurídicas y Políticas da Universidad Pablo de Olavide, em Sevilha, Espanha. Pós-graduado em Direito Público pela Université Catholique de Louvain – Bélgica. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Líder do NINC – Núcleo de Investigações Constitucionais em Teorias da Justiça, Democracia e Intervenção da UFPR. Autor de diversas obras, entre as quais se destacam: Doutrinas Essenciais - Direito Constitucional, Vols. VII - XI, RT (2015); Doutrina, Processos e Procedimentos: Direito Constitucional, RT (Coord., 2015); Direitos Fundamentais e Jurisdição Constitucional, RT (Co-coord., 2014) - Finalista do Prêmio Jabuti 2015; Direito Constitucional Brasileiro, RT (Coord., 3 volumes, 2014); Temas de Direito Constitucional, Fórum (2.ed., 2014); Fidelidade partidária, Juruá (2012); Para uma dogmática constitucional emancipatória, Fórum (2012); Atividade legislativa do poder executivo, RT (3. ed. 2011); Doutrinas essenciais – Direito Constitucional, RT (2011, com Luís Roberto Barroso, Coords.); O direito e os direitos, Fórum (3. ed. 2011); Medidas provisórias, RT (3. ed. 2010); A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro, RT (2. ed. 2000). Foi Procurador do Estado do Paraná e Procurador da República. Advogado e Consultor na área de Direito Público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CLÈVE, Clèmerson Merlin. Proteção Internacional dos Direitos do Homem nos sistemas regionais americano e europeu: uma introdução ao estudo comparado dos direitos protegidos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3722, 9 set. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25237. Acesso em: 16 abr. 2024.

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